sábado

Capítulo I

Cem Anos de Solidão



      MUITOS anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, construídas à margem e um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos. O mundo era tão recente que muitas coisas careciam e nome e para mencioná-las se precisava apontar com o dedo. Todos os anos, pelo mês de março, uma família de ciganos esfarrapados plantava a sua tenda perto da aldeia e, com um grande alvoroço de apitos e tambores, dava a conhecer os novos inventos. Primeiro trouxeram o imã. Um cigano corpulento, de barba rude e mãos de pardal,* que se apresentou com o nome de Melquíades, fez uma truculenta demonstração pública daquilo que ele mesmo chamava de a oitava maravilha dos sábios alquimistas da Macedônia. Foi de casa em casa arrastando dois lingotes metálicos, e todo o mundo se espantou ao ver que os caldeirões, os tachos, as tenazes e os fogareiros caíam do lugar, e as madeiras estalavam com o desespero dos pregos e dos parafusos tentando se desencravar, e até os objetos perdidos há muito tempo apareciam onde mais tinham sido procurados, e se arrastavam em debandada turbulenta atrás dos ferros mágicos de Melquíades. “As coisas têm vida própria”, apregoava o cigano com áspero sotaque, “tudo é questão de despertar a sua alma.” José Arcadio Buendía, cuja desatada imaginação ia sempre mais longe que o engenho da natureza, e até mesmo além do milagre e da magia, pensou que era possível se servir daquela invenção inútil para desentranhar o ouro da terra. Melquíades, que era um homem honrado, preveniu-o: “Para isso não serve.” Mas José Arcadio Buendía não acreditava, naquele tempo, na honradez dos ciganos de modo que trocou o seu jumento e um rebanho de cabritos pelos dois lingotes imantados. Úrsula Iguarán sua mulher, a que contava com aqueles animais para aumentar o raquítico patrimônio doméstico, não conseguiu dissuadi-lo. “Muito em breve vamos ter ouro de sobra para assoalhar a casa”, respondeu o marido. Durante vários meses empenhou-se em demonstrar o acerto das suas conjeturas. Explorou palmo a palmo a região, inclusive o fundo do rio, arrastando os dois lingotes de ferro e recitando em voz alta o conjuro de Melquíades. A única coisa que conseguiu desenterrar foi uma armadura do século XV, com todas as suas partes soldadas por uma camada de óxido, cujo interior tinha a ressonância oca de uma enorme cabaça cheia de pedras. Quando José Arcadio Buendía e os quatro homens da sua expedição conseguiram desarticular a armadura, encontraram um esqueleto calcificado que trazia pendurado no pescoço um relicário de cobre com um cacho de cabelo de mulher. Em março os ciganos voltaram. Desta vez traziam um óculos ao alcance e uma lupa do tamanho de um tambor, que exibiram como a última descoberta dos judeus de Amsterdam. Sentaram uma cigana num extremo da aldeia e instalaram o óculo de alcance na entrada da tenda. Mediante o pagamento cinco reais, o povo se aproximava do óculo e via a cigana ao alcance da mão. “A ciência eliminou as distâncias”, apregoava Melquíades. “Dentro em pouco o homem poderá ver acontece em qualquer lugar da terra, sem sair de sua casa.“ Num meio-dia ardente, fizeram uma assombrosa demonstração com a lupa gigantesca: puseram um montão de seco na metade da rua e atearam fogo nele pela concentração dos raios solares. José Arcadio Buendía, que ainda não se consolara de todo do fracasso dos seus ímãs, concebeu a idéia de utilizar aquele invento como uma arma de guerra. Melquíades, outra vez, tratou de dissuadi-lo. Mas terminou os dois lingotes imantados e três peças de dinheiro colonial em troca da lupa. Úrsula chorou de consternação. Aquele dinheiro fazia parte de um cofre de moedas de ouro que seu pai acumulara em toda uma vida de privações e que havia enterrado debaixo da cama, à espera de uma boa ocasião para investi-las. José Arcadio Buendía nem sequer tentou consolá-la, entregue que estava por inteiro às suas experiências táticas, com a abnegação de um cientista e até mesmo com o risco da própria vida. Tentando demonstrar os efeitos da lupa na tropa inimiga, ele mesmo se expôs à concentração dos raios solares e sofreu queimaduras que se transformaram em úlceras e demoraram muito tempo para sarar. Diante dos protestos da mulher, alarmada por tão perigosa inventiva por pouco não incendiou a casa. Passava longas horas no quarto, fazendo os cálculos das possibilidades estratégicas da nova arma, até que conseguiu compor um manual de uma assombrosa clareza didática e um poder de convicção irresistível. Enviou-o às autoridades, acompanhado de numerosos testemunhos sobre as suas experiências e de vários apêndices de desenhos explicativos, aos cuidados de um mensageiro que atravessou a serra, extraviou-se em pântanos desmesurados, subiu rios tormentosos e esteve a ponto de perecer sob o ataque das feras, o desespero e a peste, até encontrar um caminho que o levasse às mulas do correio. Embora a viagem à capital fosse naquele tempo quase impossível, José Arcadio Buendía prometia tentá-la logo que o Governo ordenasse, com o fim de fazer demonstrações práticas do seu invento diante dos poderes militares, e adestrá-los pessoalmente nas complicadas artes da guerra solar. Durante vários anos esperou a resposta. Por fim, cansado de esperar, lamentou-se diante de Melquíades do fracasso da sua iniciativa e o cigano, então, deu uma prova convincente de honradez: devolveu-lhe os dobrões em troca da lupa e deixou, para ele, além disso, uns mapas portugueses e vários instrumentos de navegação. De seu próprio punho e letra escreveu uma apertada síntese dos estudos do monge Hermann, que deixou à sua disposição para que pudesse se servir do astrolábio, da bússola e do sextante. José Arcadio Buendía passou os longos meses de chuva fechado num quartinho que construíra no fundo da casa, para que ninguém perturbasse as suas experiências. Tendo abandonado completamente as obrigações domésticas, permaneceu noites inteiras no quintal, vigiando o movimento dos astros, e quase sofreu uma insolação, por tentar estabelecer um método exato para determinar o meio-dia. Quando se tornou perito no uso e manejo dos seus instrumentos, passou a ter uma noção do espaço que lhe permitiu navegar por mares incógnitos, visitar territórios desabitados e travar relações com seres esplêndidos, sem necessidade de abandonar o seu gabinete. Foi por essa ocasião que adquiriu o hábito de falar sozinho, passeando pela casa sem se incomodar com ninguém, enquanto Úrsula e as crianças suavam em bicas na horta cuidando da banana e da taioba, do aipim e do inhame, do cará e da berinjela. De repente, sem anúncio prévio, a sua atividade febril se interrompeu e foi substituída por uma espécie de fascinação. Esteve vários dias como que enfeitiçado, repetindo para si mesmo em voz baixa um rosário de assombrosas conjeturas, sem dar crédito ao próprio entendimento. Por fim, numa terça-feira de dezembro, na hora do almoço, soltou de uma vez todo peso do seu tormento. As crianças haviam de recordar o resto da vida a augusta solenidade com que o pai se sentou na cabeceira da mesa, tremendo de febre, devastado pela prolongada vigília e pela pertinácia da sua imaginação, e revelou a eles a sua descoberta:
      — A terra é redonda como uma laranja.
      Úrsula perdeu a paciência. “Se você pretende ficar louco fique sozinho”, gritou. “Não tente incutir nas crianças as suas idéias de cigano.” José Arcadio Buendía, impassível, não se deixou amedrontar pelo desespero da mulher que, num impulso de cólera, destroçou o astrolábio contra o solo. Construiu outro, reuniu no quartinho os homens do povoado e demonstrou a eles, com teorias que acabaram sendo incompreensíveis para todos, a possibilidade de regressar ao ponto de partida navegando sempre para o Oriente. A aldeia inteira já estava convencida de que José Arcadio Buendía tinha perdido juízo, quando Melquíades chegou para pôr a coisa em pratos limpos. Ressaltou em público a inteligência daquele homem que, por pura especulação astronômica, construíra uma teoria já comprovada na prática, se bem que desconhecida até então em Macondo, e como uma prova da sua admiração deu lhe um presente que havia de exercer uma influência decisiva o futuro da aldeia: um laboratório de alquimia.
      Por essa época, Melquíades tinha envelhecido com uma rapidez assombrosa. Nas suas primeiras viagens parecia ter a mesma idade de José Arcadio Buendía. Mas enquanto este conservava a sua força descomunal, que lhe permitia derrubar um cavalo agarrando-o pelas orelhas, o cigano parecia estragado por um mal tenaz. Era, na realidade, o resultado de múltiplas estranhas doenças contraídas nas suas incontáveis viagens o redor do mundo. Conforme ele mesmo contou a José Arcadio Buendía, enquanto o ajudava a montar o laboratório, morte o seguia por todas as partes, farejando-lhe as calças, as sem se decidir a dar o bote final. Era um fugitivo de quantas pragas e catástrofes haviam flagelado o gênero humano. Sobreviveu à pélagra na Pérsia, ao escorbuto no arquipélago da Malásia, à lepra em Alexandria, ao beribéri no Japão, à peste bubônica em Madagascar, ao terremoto na Sicília e a um naufrágio multitudinário no estreito de Magalhães. Aquele ser prodigioso que dizia possuir as chaves de Nostradamus era um homem lúgubre, envolto numa aura triste, com um olhar asiático que parecia conhecer o outro lado das coisas. Usava um chapéu grande e negro, como as asas estendidas de um corvo, e um casaco de veludo patinado pelo limo dos séculos. Mas, apesar da sua imensa sabedoria e de sua aura misteriosa, tinha um peso humano, uma condição terrestre que o mantinha atrapalhado com os minúsculos problemas da vida cotidiana. Queixava-se de achaques de velho, sofria pelos mais insignificantes prejuízos econômicos e tinha deixado de rir há muito tempo, porque o escorbuto lhe havia arrancado os dentes. No sufocante meio-dia em que revelou os seus segredos, José Arcadio Buendía teve a certeza de que aquele era o princípio de uma grande amizade. As crianças se assombraram com os seus relatos fantásticos. Aureliano, que naquele tempo não tinha mais de cinco anos, havia de recordar pelo resto da vida como o viu naquela tarde, sentado contra a claridade metálica e reverberante da janela, iluminando com a sua profunda voz de órgão os territórios mais escuros da imaginação, enquanto esguichava pelas têmporas a gordura derretida pelo calor. José Arcadio, seu irmão mais velho, havia de transmitir aquela imagem maravilhosa, corno uma recordação hereditária, toda a sua descendência. Úrsula, pelo contrário, conservou uma lembrança desagradável daquela visita, porque entrou no quarto no momento em que Melquíades quebrava por distração um frasco de bicloreto de mercúrio.
      — É o cheiro do demônio—ela disse.
      — Absolutamente — corrigiu Melquíades. — Está comprovado que o demônio tem propriedades sulfúricas, e isto não passa de um pouco de sublimado corrosivo.
      Sempre didático, fez uma sábia exposição sobre as virtudes diabólicas do cinabre, mas Úrsula não lhe deu a menor atenção e levou as crianças para rezar. Aquele cheiro acre ficaria para sempre em sua memória vinculado à lembrança de Melquíades.
      O laboratório rudimentar — não se falando na profusão e caçarolas, funis, retortas, filtros e coadores — estava composto de uma tubulação primitiva; uma proveta de cristal, de pescoço comprido e estreito, imitação do ovo filosófico; e um alambique construído pelos próprios ciganos, de acordo com as descrições daquele de três braços, de Maria, a judia. Além destas coisas, Melquíades deixou amostras dos sete metais correspondentes aos Sete planetas, as fórmulas de Moisés e Zózimo para a duplicação do ouro, e uma série de notas e desenhos sobre os processos do Grande Magistério, que permitiam a quem os soubesse interpretar a tentativa de fabricação da pedra filosofal. Seduzido pela simplicidade das fórmulas para duplicar o ouro, José Arcádio Buendía adulou Úrsula durante várias semanas, para que lhe permitisse desenterrar as suas moedas coloniais e aumentá-las tantas vezes quantas fosse possível subdividir o azougue. Úrsula cedeu, como acontecia sempre, diante da inquebrantável obstinação do marido. Então, José Arcádio Buendía jogou trinta dobrões numa caçarola e os fundiu com raspa de cobre, ouro-pigmento, enxofre e chumbo. Pôs tudo para ferver em fogo forte, num caldeirão de óleo de rícino, até obter um xarope espesso e fedorento, mais parecido com uma calda vulgar do que com o ouro magnífico. Em azarados e desesperados processos de destilação, fundida com os sete metais planetários, trabalhada com o mercúrio hermético e o vitríolo de Chipre, e novamente cozida em banha de porco na falta de óleo de rábano, a preciosa herança de Úrsula ficou reduzida a um torresmo carbonizado que não pôde ser desprendido do fundo do caldeirão.
      Quando os ciganos voltaram, Úrsula já havia predisposto toda a população contra eles. Mas a curiosidade pôde mais que o temor, porque daquela vez os ciganos percorreram a aldeia fazendo um barulho ensurdecedor com todo tipo de instrumentos musicais, enquanto o pregoeiro anunciava a exibição da mais fabulosa descoberta dos nasciancenos. De modo que todo mundo foi à tenda, e com o pagamento de um centavo viu um Melquíades juvenil, refeito, desenrugado, com uma dentadura nova e radiante. Os que recordavam as suas gengivas destruídas pelo escorbuto, as suas bochechas flácidas e os seus lábios murchos, estremeceram de pavor diante daquela prova decisiva dos poderes sobrenaturais do cigano. O pavor se converteu em pânico quando Melquíades tirou os dentes, intactos, engastados nas gengivas, e mostrou-os ao público por um instante — um instante fugaz em que voltou a ser o mesmo homem decrépito dos anos anteriores — e botou-os outra vez e sorriu de novo com um domínio pleno da sua juventude restaurada. Até o próprio José Arcádio Buendía considerou que os conhecimentos de Melquíades tinham chegado a extremos intoleráveis, mas experimentou um saudável alvoroço quando o cigano lhe explicou a sós o mecanismo da sua dentadura postiça. Aquilo lhe pareceu ao mesmo tempo tão simples e prodigioso, que da noite para o dia perdeu todo o interesse pelas pesquisas de alquimia; sofreu uma nova crise de mau humor, não voltou a comer de maneira regular e passava o dia dando voltas pela casa. “Estão ocorrendo coisas incríveis pelo mundo”, dizia a Úrsula. “Aí mesmo, do outro lado do rio, existe todo tipo de aparelho mágico, enquanto nós continuamos vivendo como os burros.” Os que o conheciam desde os tempos da fundação de Macondo se assombravam do quanto ele havia mudado sob a influencia de Melquíades.
      No princípio, José Arcadio Buendía era uma espécie de patriarca juvenil, que dava instruções para o plantio e conselhos para a criação de filhos e animais, e colaborava com todos, mesmo no trabalho físico, para o bom andamento da comunidade. Posto que a sua casa fosse desde o primeiro momento a melhor da aldeia, as outras foram arranjadas à sua imagem e semelhança. Tinha uma saleta ampla e bem iluminada, uma sala de jantar em forma de terraço com flores de cores alegres, dois quartos, um quintal com um castanheiro gigantesco, um jardim bem plantado e um curral onde viviam em comunidade pacífica os cabritos, os porcos e as galinhas. Os únicos animais proibidos não só em casa, mas também em todo o povoado, eram os galos de briga.
      A diligência de Úrsula andava de braços com a de seu marido. Ativa, miúda, severa, aquela mulher de nervos inquebrantáveis, a quem em nenhum momento da vida se ouviu cantar, parecia estar em todas as partes desde o amanhecer até a noite já bem avançada, sempre perseguida pelo suave sussurro das suas anáguas de cambraia. Graças a ela, o chão de terra batida, os muros de barro sem caiação, os rústicos móveis de madeira construídos por eles mesmos estavam sempre limpos, e as velhas arcas onde se guardava a roupa exalavam um cheiro tênue de manjericão.
      José Arcadio Buendía, que era o homem mais empreendedor que se poderia ver na aldeia, determinara de tal modo a posição das casas que a partir de cada uma se podia chegar ao rio e se abastecer de água com o mesmo esforço; e traçara as ruas com tanta habilidade que nenhuma casa recebia mais sol que a outra na hora do calor. Dentro de poucos anos, Macondo se tornou uma aldeia mais organizada e laboriosa que qualquer das conhecidas até então pelos seus 300 habitantes. Era na verdade uma aldeia feliz, onde ninguém tinha mais de trinta anos e onde ninguém ainda havia morrido.
      Desde os tempos da fundação, José Arcadio Buendía construíra alçapões e gaiolas. Em pouco tempo, encheu de corrupiões, canários, azulões e pintassilgos não só a própria casa, mas todas as da aldeia. O concerto de tantos pássaros diferentes chegou a ser tão aturdidor que Úrsula tapou os ouvidos com cera de abelha para não perder o senso da realidade. Na primeira vez que chegou a tribo de Melquíades, vendendo bolas de vidro para dor de cabeça, todo mundo se surpreendeu por terem podido encontrar aquela aldeia perdida no marasmo do pântano, e os ciganos confessaram que haviam se orientado pelo canto dos pássaros.
      Aquele espírito de iniciativa social desapareceu em pouco tempo, arrastado pela febre dos ímãs, pelos cálculos astronômicos, sonhos de transmutação e ânsias de conhecer as maravilhas do mundo. De empreendedor e limpo, José Arcadio Buendía se converteu num homem de ar vadio, descuidado no vestir, com uma barba selvagem a que Úrsula conseguia dar forma a duras penas, com uma faca de cozinha. Não faltou quem o considerasse vítima de algum estranho sortilégio. Mas até os mais convencidos da sua loucura abandonaram o trabalho e a família para segui-lo, quando atirou ao ombro as foices e machados, e pediu a participação de todos para abrir uma picada que pusesse Macondo em contato com os grandes inventos.
      José Arcadio Buendía ignorava por completo a geografia da região. Sabia que para o Oriente estava a serra impenetrável, e do outro lado da serra a antiga cidade de Riohacha, onde em épocas passadas — segundo lhe havia contado o primeiro Aureliano Buendía, seu avô — Sir Francis Drake era dado ao esporte de caçar jacarés a tiros de canhão. Os bichos eram depois remendados, recheados de palha e mandados para a Rainha Elizabeth. Na sua juventude, ele e seus homens, com mulheres e crianças e animais e toda espécie de utensílios domésticos, atravessaram a serra procurando uma saída para o mar, e ao fim de vinte e seis meses desistiram da empresa e fundaram Macondo, para não ter que empreender o caminho de volta. Era, pois, uma rota que não lhe interessava, porque só podia conduzi-lo ao passado. Ao Sul estavam os charcos cobertos de uma eterna nata vegetal, e o vasto universo do grande pantanal, que, segundo testemunho dos ciganos, carecia de limites. O grande pantanal se confundia ao Ocidente com uma extensão aquática sem horizontes, onde havia cetáceos de pele delicada, cabeça e torso de mulher, que perdiam os navegantes com o feitiço das suas tetas descomunais. Os ciganos navegavam seis meses por essa rota antes de alcançar a faixa de terra firme por onde passavam as mulas do correio. De acordo com os cálculos de José Arcadio Buendía, a única possibilidade de contato com a civilização era a rota do Norte. De modo que dotou de foices, facões e armas de caça os mesmos homens que o acompanharam na fundação de Macondo; pôs numa mochila os seus instrumentos de orientação e os seus mapas, e empreendeu a temerária aventura.
      Nos primeiros dias, não encontraram nenhum obstáculo apreciável. Desceram pela pedregosa margem do rio até o lugar onde anos antes haviam achado a armadura do guerreiro e ali penetraram na mata por um caminho de laranjeiras silvestres. Ao fim da primeira semana, mataram e assaram um veado, mas se conformaram em comer a metade e salgar o resto para os próximos dias. Trataram de adiar com essa precaução a necessidade de continuar comendo azaras, cuja carne azul tinha um áspero sabor de almíscar. Em seguida, durante mais de dez dias, não voltaram a ver o sol. O solo tornou-se mole e úmido, como cinza vulcânica, e a vegetação fez-se cada vez mais insidiosa, e ficaram cada vez mais longínquos os gritos dos pássaros e a algazarra dos macacos, e o mundo ficou triste para sempre. Os homens da expedição se sentiram angustiados pelas lembranças mais antigas, naquele paraíso de umidade e silêncio, anterior ao pecado original, onde as botas se afundavam em poças de óleos fumegantes e os facões destroçavam lírios sangrentos e salamandras douradas. Durante uma semana, quase sem falar, avançaram como sonâmbulos por um universo de depressão, iluminados apenas por uma tênue reverberação de insetos luminosos e com os pulmões agoniados por um sufocante cheiro de sangue. Não podiam regressar, porque a picada que iam abrindo em pouco tempo tornava a se fechar com uma vegetação nova que ia crescendo a olhos vistos. “Não tem importância”, dizia José Arcadio Buendía. “O essencial é não perder a orientação.” Sempre de olho na bússola, continuou guiando os seus homens para o Norte invisível, até que conseguiram sair da região encantada. Era uma noite densa, sem estrelas, mas a escuridão estava impregnada de um ar novo e limpo. Esgotados pela prolongada travessia, penduraram as redes e dormiram profundamente pela primeira vez em duas semanas. Quando acordaram, já com o sol alto, ficaram pasmos de fascinação. Diante deles, rodeado de fetos e palmeiras, branco e empoeirado na silenciosa luz da manhã, estava um enorme galeão espanhol. Ligeiramente inclinado para estibordo, de sua mastreação intacta penduravam-se os fiapos esquálidos do velame, entre a enxárcia enfeitada de orquídeas. O casco, coberto por uma lisa couraça de caracas e musgo tenro, estava firmemente encravado num chão de pedras. Toda a estrutura parecia ocupar um âmbito próprio, um espaço de solidão e esquecimento, vedado aos vícios do tempo e aos maus hábitos dos pássaros. No interior, que os expedicionários exploraram com um secreto fervor, não havia nada além de um espesso bosque de flores.
      O achado do galeão, indício da proximidade do mar, quebrantou o ímpeto de José Arcadio Buendía. Considerava como uma brincadeira do seu destino travesso ter procurado o mar sem encontrá-lo, ao preço de sacrifícios e incômodos sem conta, e tê-lo encontrado agora sem procurá-lo, atravessado no seu caminho como um obstáculo intransponível. Muitos anos depois, o Coronel Aureliano Buendía voltou a atravessar a região, quando já era uma rota regular do correio, e a única coisa que encontrou da nave foi o esqueleto carbonizado no meio de um campo de amapolas. Só então convencido de que aquela história não tinha sido fruto da imaginação de seu pai, perguntou-se como pudera o galeão penetrar até aquele ponto na terra firme. Mas José Arcadio Buendía não levantou esse problema quando encontrou o mar, ao fim de outros quatro dias de viagem, a doze quilômetros de distância do galeão. Seus sonhos terminavam diante desse mar de cor cinza, espumoso e sujo, que não merecia os riscos e sacrifícios da sua aventura.
      — Porra! — gritou. — Macondo está cercado de água por todos os lados.
      A idéia de um Macondo peninsular prevaleceu durante muito tempo, inspirada no mapa arbitrário que José Arcadio Buendía desenhou ao regressar da sua expedição. Traçou-o com raiva, exagerando de má fé as dificuldades de comunicação, como que para castigar-se a si mesmo da absoluta falta de senso com que escolheu o lugar. “Nunca chegaremos a parte alguma”, lamentava-se para Úrsula. “Aqui haveremos de apodrecer em vida sem receber os benefícios da ciência.” Essa certeza, ruminada por vários meses no quartinho do laboratório, levou-o a conceber o projeto de trasladar Macondo para um lugar mais propício. Mas desta vez, Úrsula se antecipou aos seus desígnios febris. Num secreto e implacável trabalho de formiga, predispôs as mulheres da aldeia contra a veleidade dos seus homens, que já começavam a se preparar para a mudança. José Arcadio Buendía não soube em que momento, nem em virtude de que forças adversas, seus planos se foram emaranhando numa teia de pretextos, contratempos e evasivas, até se transformarem em pura e simples ilusão. Úrsula observou-o com uma atenção inocente, e até sentiu por ele um pouco de piedade na manhã em que o encontrou no quarto dos fundos comentando entre dentes os seus sonhos de mudança, enquanto colocava nas suas caixas originais as peças do laboratório. Deixou-o terminar. Deixou-o pregar as caixas e pôr as suas iniciais em cima com um pincel cheio de tinta sem lhe fazer nenhuma censura, mas já sabendo que ele (porque o ouviu dizer em seus surdos monólogos) que os homens do povoado não o seguiriam na empresa. Só quando começou a desmontar a porta do quartinho é que Úrsula se atreveu a lhe perguntar por que o fazia, e ele lhe respondeu com certa amargura: “Já que ninguém quer ir embora, nós iremos sozinhos.” Úrsula não se alterou.
      — Nós não iremos — disse. — Ficaremos aqui, porque aqui tivemos um filho.
      — Ainda não temos um morto — ele disse. — A gente não é de um lugar enquanto não tem um morto enterrado nele.
      Úrsula replicou, com uma suave firmeza:
      Se é preciso que eu morra para que vocês fiquem aqui, eu morro.
      José Arcadio Buendía não acreditou que fosse tão rígida a vontade de sua mulher. Tratou de seduzi-la com o feitiço da sua fantasia, com a promessa de um mundo prodigioso onde bastava derramar uns líquidos mágicos na terra para que as plantas dessem frutos à vontade do homem, e onde se vendiam a preço de banana toda espécie de aparelhos contra a dor. Mas Úrsula foi insensível à sua clarividência.
      — Em vez de andar por aí com essas novidades malucas, você devia era se ocupar dos seus filhos — replicou. — Olhe como estão, abandonados ao deus-dará, como os burros.
      José Arcadio Buendía tomou ao pé da letra as palavras da mulher. Olhou pela janela e viu os dois meninos descalços na horta ensolarada, e teve a impressão de que só naquele instante tinham começado a existir, concebidos pelos rogos de Úrsula. Alguma coisa aconteceu então no seu íntimo; alguma coisa misteriosa e definitiva que o desprendeu do tempo atual e o levou à deriva por uma inexplorada região de lembranças. Enquanto Úrsula continuava varrendo a casa que agora estava certa de não abandonar peio resto da vida, ele permaneceu contemplando as crianças com um olhar absorto, até que seus olhos se encheram d’água e ele os enxugou com o dorso da mão, exalando um profundo suspiro de resignação.
      — Bem — disse. — Diga-lhes que venham me ajudar a tirar as coisas dos caixotes.
      José Arcadio, o mais velho dos meninos, havia completado quatorze anos. Tinha a cabeça quadrada, o cabelo hirsuto e o gênio voluntarioso do pai. Ainda que tivesse o mesmo impulso de crescimento e fortaleza física, já então era evidente que carecia de imaginação. Foi concebido e dado à luz durante a penosa travessia da serra, antes da fundação de Macondo, e seus pais deram graças aos céus ao comprovar que não tinha nenhum órgão de animal. Aureliano, o primeiro ser humano que nasceu em Macondo, ia fazer seis anos em março. Era silencioso e retraído. Tinha chorado no ventre da mãe e nasceu com os olhos abertos. Enquanto lhe cortavam o umbigo movia a cabeça de um lado para o outro, reconhecendo as coisas do quarto, e examinava o rosto das pessoas com uma curiosidade sem assombro. Depois, indiferente aos que vinham conhecê-lo, manteve a atenção concentrada no teto de palmas, que parecia estar quase desabando sob a tremenda pressão da chuva. Úrsula não tornou a se lembrar da intensidade desse olhar até o dia em que o pequeno Aureliano, na idade de três anos, entrou na cozinha no momento em que ela retirava do fogão e punha na mesa uma panela de caldo fervente. O garoto, perplexo na porta, disse: “Vai cair.” A panela estava posta bem no centro da mesa, mas, logo que o menino deu o aviso, iniciou um movimento irrevogável para a borda, como impulsionada por um dinamismo interior, e se espedaçou no chão. Úrsula, alarmada, contou o episódio ao marido, mas este o interpretou como um fenômeno natural. Sempre fora assim, alheio à existência dos filhos, em parte porque considerava a infância como um período de insuficiência mental, e em parte porque estava sempre absorto por demais nas suas próprias especulações quiméricas.
      Desde a tarde, porém, em que chamou os meninos para que o ajudassem a desempacotar as coisas do laboratório, dedicou-lhes as suas melhores horas. No quartinho separado, paredes se foram enchendo pouco a pouco de mapas inverossímeis e gráficos fabulosos, ensinou-os a ler e escrever, fazer contas, e falou das maravilhas do mundo, não só até onde chegavam os seus conhecimentos, mas forçando a extremos incríveis os limites da sua imaginação. Foi assim que os meninos acabaram por aprender que no extremo meridional da África havia homens tão inteligentes e pacíficos que único entretenimento era sentar para pensar, e que era possível atravessar a pé o mar Egeu pulando de ilha em ilha porto de Salônica. Aquelas alucinantes sessões ficaram modo impressas na memória dos meninos, que muitos anos mais tarde, um segundo antes de que o oficial dos exércitos regulares desse a ordem de fogo ao pelotão de fuzilamento o Coronel Aureliano Buendía tornou a viver a suave tarde março em que seu pai interrompeu a lição de Física e ficou com a mão no ar e os olhos imóveis, ouvindo a distância os pífaros e tambores e guizos dos ciganos que uma vez chegavam à aldeia, apregoando a última e assombrosa descoberta dos sábios de Mênfis.
      Eram ciganos novos. Homens e mulheres jovens que só conheciam a sua própria língua, exemplares formosos de pele e mãos inteligentes, cujas danças e músicas semearam nas ruas um pânico de alvoroçada alegria, com as suas araras de todas as cores que recitavam romanças italianas, a galinha que punha uma centena de ovos de ouro ao som de um pandeiro, e o macaco amestrado que adivinhava o pensamento e a máquina múltipla que servia ao mesmo tempo para pregar botões e baixar a febre, e o aparelho para esquecer más recordações, e o emplastro para perder o tempo, e mil invenções tão engenhosas e insólitas, que José Arcadio Buendía gostaria de inventar a máquina da memória para se lembrar de todas. Num instante transformaram a aldeia. Os habitantes de Macondo se encontraram de repente perdidos nas suas próprias ruas, aturdidos pela feira multitudinária.
      Levando um garoto em cada mão, para não perdê-los no tumulto, tropeçando com saltimbancos de dentes encouraçados de ouro e malabaristas de seis braços, sufocado pelo confuso hálito de esterco e sândalo que exalava a multidão, José Arcadio Buendía andava como um louco procurando Melquíades por todas as partes, para que lhe revelasse os infinitos segredos daquele pesadelo fabuloso. Dirigiu-se a vários ciganos que não entenderam a sua língua. Por fim chegou ao lugar onde Melquíades costumava plantar a sua tenda e encontrou um armênio taciturno que anunciava em castelhano um xarope para se fazer invisível. Tinha tomado de um gole uma taça da substância ambarina, quando José Arcadio Buendía abriu passagem aos empurrões por entre o grupo absorto que presenciava o espetáculo e conseguiu fazer a pergunta. O cigano o envolveu no clima atônito do seu olhar, antes de se transformar numa poça de alcatrão fedorento e fumegante sobre a qual ficou boiando a ressonância de sua resposta: “Melquíades morreu.” Aturdido pela notícia, José Arcadio Buendía permaneceu imóvel, tratando de vencer a aflição, até que o grupo se dispersou, reclamando por outros artifícios, e a poça do armênio taciturno se evaporou completamente. Mais tarde, outros ciganos lhe confirmaram que na verdade Melquíades tinha sucumbido às febres, nas dunas de Cingapura, e o seu corpo tinha sido jogado no lugar mais profundo do mar de Java. Os meninos não se interessaram pela notícia. Teimavam para que seu pai os levasse para conhecer a portentosa novidade dos sábios de Mênfis, anunciada na entrada de uma tenda que, segundo diziam, pertenceu ao Rei Salomão. Tanto insistiram que José Arcadio Buendía pagou os trinta reais e os conduziu até o centro da barraca, onde havia um gigante de torso peludo e cabeça raspada, com um anel de cobre no nariz e uma pesada corrente de ferro no tornozelo, vigiando um cofre de pirata. Ao ser destampado pelo gigante, o cofre deixou escapar um hálito glacial. Dentro havia apenas um enorme bloco transparente, com infinitas agulhas internas nas quais se despedaçava em estrelas de cores a claridade do crepúsculo. Desconcertado, sabendo que os meninos esperavam uma explicação imediata, José Arcadio Buendía atreveu-se a murmurar:
      — É o maior diamante do mundo.
      — Não — corrigiu o cigano. — É gelo.
      José Arcadio Buendía, sem entender, estendeu a mão para bloco, mas o gigante afastou-a. “Para pegar, mais cinco”, disse. José Arcadio Buendía pagou, e então pôs a mão sobre o gelo, e a manteve posta por vários minutos, enquanto o coração crescia de medo e de júbilo ao contato do mistério.
      Sem saber o que dizer, pagou outros dez reais para que os seus filhos vivessem a prodigiosa experiência. O pequeno José Aurélio negou-se a tocá-lo. Aureliano, em compensação, deu um passo para diante, pôs a mão e retirou-a no ato. “Está fervendo“, exclamou assustado. Mas o pai não lhe prestou atenção. Embriagado pela evidência do prodígio, naquele momento esqueceu da frustração das suas empresas delirantes e do corpo de Melquíades abandonado ao apetite das lulas. Pagou outros cinco reais, e com a mão posta no bloco, como que prestando um juramento sobre o texto sagrado, exclamou:
      — Este é o grande invento do nosso tempo.




Capítulo II


      — QUANDO o pirata Francis Drake assaltou Riohacha, no século XVI, a bisavó de Úrsula Iguarán se assustou tanto com o toque de alarma e o estampido dos canhões que perdeu o controle dos nervos e se sentou num fogão aceso. As queimaduras converteram-na numa esposa inútil para toda a vida. Não podia sentar-se a não ser de lado, acomodada em almofadas, e seu andar deve ter ficado muito estranho, porque nunca voltou a caminhar em público. Renunciou a todo tipo de hábitos sociais, obcecada pela idéia de que o seu corpo desprendia um cheiro de coisa chamuscada. A aurora a surpreendia no quintal, sem se atrever a dormir, porque sonhava que os ingleses, com seus ferozes cães de fila, entravam pela janela de seu quarto e a submetiam a vergonhosas torturas com ferros em brasa. Seu marido, um comerciante aragonês com quem tinha dois filhos gastou metade da loja em remédios e divertimentos, procurando a maneira de aliviar os seus terrores. Por fim, liquidou o negócio e levou a família para viver longe do mar, aldeia de índios pacíficos na encosta da serra, onde construiu para a mulher um quarto sem janelas, para que os piratas dos seus pesadelos não tivessem por onde entrar.
      Na escondida encosta vivia há muito tempo um nativo plantador de tabaco, o Sr. José Arcadio Buendía, com quem o bisavô de Úrsula fez uma sociedade tão produtiva que em os anos os dois juntaram fortuna. Vários séculos depois, o tataraneto do nativo se casou com a tataraneta do aragonês. Por isso, cada vez que Úrsula subia pelas paredes com as loucuras do marido, pulava por cima de trezentos anos de coincidências e maldizia a hora em que Francis Drake assaltou Riohacha. Era um mero recurso de desabafo, porque na verdade estavam ligados até a morte por um vínculo mais sólido que o amor: uma dor comum de consciência. Eram primos entre si. Tinham crescido juntos na antiga encosta que antepassados de ambos haviam transformado com o trabalho e os bons costumes num dos melhores povoados da província. Apesar do casamento deles ser previsível desde que vieram ao mundo, quando expressaram a vontade de se casar os próprios parentes tentaram impedir. Tinham medo de que aqueles saudáveis fins de duas raças secularmente entrecruzadas passassem pela vergonha de engendrar iguanas. Já existia um precedente tremendo. Uma tia de Úrsula, casada com um tio de José Arcadio Buendía, teve um filho que passou toda vida de calças larguíssimas e frouxas, e que morreu de hemorragia depois de ter vivido quarenta e dois anos no mais puro estado de virgindade, porque nascera e crescera com uma cauda cartilaginosa em forma de saca-rolhas e com uma escova de pêlos na ponta. Um rabo de porco que nunca deixou ser visto por nenhuma mulher, e que lhe custou a vida quando um açougueiro amigo lhe fez o favor de cortá-lo com a machadinha de retalhar. José Arcadio Buendía, com a leviandade dos seus dezenove anos, resolveu o problema com uma só se: “Não me importa ter leitõezinhos, desde que possam falar.” Assim, casaram-se com uma festa de banda e foguetes que durou três dias. Teriam sido felizes desde então, se a mãe de Úrsula não a tivesse aterrorizado com toda espécie de prognósticos sinistros sobre a sua descendência, chegando ao extremo de conseguir que ela recusasse consumar o matrimônio. Temendo que o corpulento e voluntarioso marido a violasse adormecida, Úrsula vestia antes de se deitar umas calças compridas rudimentares que sua mãe lhe fabricou com lona de veleiro e reforçadas com um sistema de correias entrecruzadas, que se fechava na frente com uma grossa fivela de ferro. Assim estiveram vários meses. Durante o dia, ele cuidava de seus galos de briga e ela bordava em bastidor com a mãe. Durante a noite, lutavam várias horas com uma ansiosa violência que já parecia um substituto do ato de amor, até que a intuição popular farejou que algo de irregular estava acontecendo, e espalhou o boato de que Úrsula continuava virgem um ano depois de casada, porque o marido era impotente. José Arcadio Buendía foi o último a saber.
      — Está vendo, Úrsula, o que o povo anda dizendo — disse à mulher com muita calma.
      — Deixe falar — disse ela. — A gente sabe que não é verdade.
      De modo que a situação continuou igual por mais seis meses, até o domingo trágico em que José Arcadio Buendía ganhou uma briga de galos de Prudencio Aguilar. Furioso, exaltado pelo sangue do seu animal, o perdedor se afastou de José Arcadio Buendía para que toda a rinha pudesse ouvir o que lhe ia dizer.
      — Você está de parabéns — gritou. — Vamos ver se afinal esse galo resolve o caso da sua mulher.
      José Arcadio Buendía, sereno, pegou o galo. “Volto já”, disse a todos. E logo, a Prudencio Aguilar:
      — E você, vá pra casa e se arme, que eu vou matá-lo.
      Dez minutos depois voltou com a lança ensebada de seu avô. Na entrada da rinha, onde se havia concentrado metade do povoado, Prudencio Aguilar o esperava. Não teve tempo de defender-se. A lança de José Arcadio Buendía, atirada com a força de um touro e com a mesma mira certa com que o primeiro Aureliano Buendía exterminou os tigres da região, atravessou-lhe a garganta. Nessa noite, enquanto se velava o cadáver, José Arcadio Buendía entrou no quarto quando a sua mulher estava vestindo as calças de castidade. Brandindo a lança diante dela, ordenou: “Tire isso.” Úrsula não pôs em dúvida a decisão do marido. “Você será o responsável pelo que acontecer” murmurou. José Arcadio Buendía cravou a lança no chão de terra.
      — Se você tiver que parir iguanas, criaremos iguanas — disse — Mas não haverá mais mortos neste povoado por culpa sua.
      Era uma bela noite de junho, fresca e com lua, e estiveram acordados e brincando na cama até o amanhecer, indiferentes ao vento que passava pelo quarto, carregado com o pranto dos parentes de Prudencio Aguilar.
      O caso foi classificado como um duelo de honra, mas em ambos ficou uma dorzinha de consciência. Numa noite em que não conseguia dormir, Úrsula saiu para beber água no quintal e viu Prudencio Aguilar junto à tina. Estava lívido, com uma expressão muito triste, tentando tapar com uma atadura de esparto o buraco da garganta. Não lhe produziu medo, mas pena. Voltou ao quarto para contar ao esposo o que tinha visto, mas ele não ligou. “Os mortos não saem”, disse. “O que acontece é que não agüentamos com o peso da consciência.” Duas noites depois, Úrsula tornou a ver Prudencio Aguilar no banheiro, lavando com a atadura de esparto o sangue coagulado do pescoço. Outra noite, viu-o passeando na chuva. José Arcadio Buendía, irritado com as alucinações da mulher, foi para o quintal armado com a lança. Ali estava o morto com a sua expressão triste.
      — Vá pro caralho! — gritou-lhe José Arcadio Buendía. Cada vez que voltar, eu o mato de novo.
      Prudencio Aguilar não foi embora, nem José Arcadio Buendia se atreveu a arremessar a lança. Desde então não conseguiu mais dormir bem. Atormentava-o a enorme desolação com que o morto o havia olhado da chuva, a profunda nostalgia com que se lembrava dos vivos, a ansiedade com que revistava a casa procurando água para molhar a sua atadura de esparto. “Deve estar sofrendo muito”, dizia a Úrsula. “Vê-se que está muito só.” Ela estava tão comovida que, na vez seguinte que viu o morto destampando as panelas do fogão, entendeu o que procurava, e desde então colocou para ele bacias de água por toda a casa. Numa noite em que o encontrou lavando as feridas no seu próprio quarto, José Arcadio Buendía não pôde agüentar mais.
      — Está bem, Prudencio — disse-lhe. — Nós vamos embora deste povoado para o mais longe possível e não voltaremos nunca mais. Agora vá sossegado.
      Foi assim que empreenderam a travessia da serra. Vários amigos de José Arcadio Buendía, jovens como ele, encantados com a aventura, desfizeram as suas casas e carregaram com as mulheres e os filhos para a terra que ninguém lhes havia prometido. Antes de partir, José Arcadio Buendía enterrou a lança no quintal e degolou, um a um, os seus magníficos galos de briga, confiando em que dessa forma daria um pouco de paz a Prudencio Aguilar. A única coisa que Úrsula levou foi um baú com as suas roupas de recém-casada, uns poucos utensílios domésticos e o cofrezinho com as peças de ouro que herdou do pai. Não traçaram para si um itinerário definido. Apenas procuravam viajar em sentido contrário ao caminho de Riohacha para não deixar nenhum rastro nem encontrar gente conhecida. Foi uma viagem absurda. Ao fim de quatorze meses, com o estômago estragado pela carne de mico e a sopa de cobras, Úrsula deu à luz um filho com todas as suas partes humanas. Tinha feito a metade do caminho numa rede pendurada num pau que dois homens levavam nos ombros, porque a inchação lhe desfigurou as pernas, e as varizes arrebentavam como bolhas. Ainda que desse pena vê-las de barriga vazia e olhos lânguidos, as crianças resistiram à viagem melhor que os pais, e a maior parte do tempo acabou sendo divertido para elas. Certa manhã, depois de quase dois anos de travessia, foram eles os primeiros mortais que viram a vertente ocidental da serra. Do cume nublado contemplaram a imensa planície aquática do grande pântano, espraiada até o outro lado do mundo. Mas nunca encontraram o mar. Certa noite, depois de andarem vários meses perdidos entre os charcos, já longe dos últimos índios que haviam encontrado no caminho, acamparam às margens de um rio pedregoso cujas águas pareciam uma torrente de vidro gelado. Anos depois, durante a segunda guerra civil, o Coronel Aureliano Buendía tentou seguir aquela mesma rota para apanhar Riohacha de surpresa e aos seis dias de viagem compreendeu que era uma loucura. Entretanto, na noite em que acamparam junto ao rio, as hostes de seu pai tinham aspecto de náufragos sem escapatória, mas o seu número tinha aumentado durante a travessia e todos estavam dispostos a (e conseguiram) morrer de velhice. José Arcadio Buendía sonhou essa noite que naquele lugar se levantava uma cidade ruidosa, com casas de paredes de espelhos. Perguntou que cidade era aquela, e lhe responderam com um nome que nunca tinha ouvido, que não possuía significado algum, mas que teve no sonho uma ressonância sobrenatural: Macondo. No dia seguinte, convenceu os seus homens de que nunca encontrariam o mar. Ordenou-lhes derrubar as árvores para fazer uma clareira junto ao rio, no lugar mais fresco das margens, e ali fundaram a aldeia.
      José Arcadio Buendía não conseguiu decifrar o sonho das com paredes de espelhos até o dia em que conheceu o gelo. Então acreditou entender o seu profundo significado. Parecia que num futuro próximo poderiam fabricar blocos de gelo em grande escala, a partir de um material tão cotidiano, a água, e construir com eles as novas casas da aldeia. Macondo deixaria de ser um lugar ardente, cujas dobradiças e aldrabas se torciam de calor, para converter-se numa cidade invernal. Se não perseverou nas suas tentativas de construir a fábrica de gelo, foi porque no momento estava positivamente entusiasmado com a educação dos filhos, especialmente de Aureliano, que havia revelado desde o primeiro momento uma rara intuição alquímica. O laboratório tinha ressurgido da poeira. Passando em revista as notas de Melquíades agora serenamente, sem exaltação da novidade, em prolongadas e pacientes sessões, tentaram separar o ouro de Úrsula do entulho aderido ao fundo do caldeirão. O jovem José Arcadio mal participou do processo. Enquanto seu pai só tinha corpo e alma para o laboratório, o voluntarioso primogênito, que sempre fora grande demais para a sua idade, converteu-se num adolescente monumental. Mudou de voz. O buço povoou-se de uma penugem incipiente. Certa noite, Úrsula entrou no quarto quando ele tirava a roupa para dormir, e experimentou um confuso sentimento de vergonha e piedade: era o primeiro homem que via nu, além de seu marido, e estava tão bem equipado para a vida que lhe pareceu anormal. Úrsula, grávida pela terceira vez, viveu de novo os seus terrores de recém-casada.
      Naquela época ia à sua casa uma mulher alegre, desbocada, provocante, que ajudava nos trabalhos domésticos e sabia ler o futuro nas cartas. Úrsula falou-lhe do filho. Pensava que a sua desproporção era algo de tão desnaturado como o rabo de porco do primo. A mulher soltou uma gargalhada estridente que repercutiu por toda a casa como um riacho de vidro. “Pelo contrário”, disse. “Será feliz.” Para confirmar o seu prognóstico, trouxe o baralho à casa poucos dias depois, e se trancou com José Arcadio num depósito de grãos contíguo à cozinha. Colocou as cartas com muita calma sobre uma velha mesa de carpintaria, dizendo qualquer coisa, enquanto o rapaz esperava perto dela, mais chateado que curioso. De repente estendeu a mão e tocou. “Que monstro” disse, sinceramente assustada, e foi tudo o que pôde dizer. José Arcadio sentiu que os seus ossos se enchiam de espuma, que tinha um medo lânguido e uma enorme vontade de chorar. A mulher não lhe fez nenhuma insinuação. Mas José Arcadio a continuou procurando toda a noite, no cheiro de fumaça que ela tinha nas axilas e que lhe ficou metido debaixo da pele. Queria estar com ela a todo momento, queria que ela fosse a sua mãe, que nunca saíssem da despensa e que ela lhe dissesse “que monstro!” e que tornasse a tocá-lo e a dizer-lhe “que monstro!”. Um dia não pôde suportar mais e foi procurá-la em sua casa. Fez uma visita formal, incompreensível, sentado na sala sem pronunciar uma palavra. Naquele momento não a desejou. Achava-a diferente, inteiramente alheia à imagem que inspirava o seu perfume, como se fosse outra. Tomou o café e abandonou a casa, deprimido. Nessa noite, no espanto da insônia, tornou a desejá-la com uma ansiedade brutal, mas então não a queria como era na despensa, mas como havia sido naquela tarde.
      Dias depois, de um modo intempestivo, a mulher o chamou à sua casa, onde estava sozinha com a mãe, e o fez entrar no quarto com o pretexto de ensinar-lhe um truque de baralho. Então o tocou com tanta liberdade que ele sofreu uma desilusão depois do estremecimento inicial, e experimentou mais medo que prazer. Ela lhe pediu que nessa noite fosse procurá-la. Ele concordou, para sair da situação, sabendo que não seria capaz de ir. Mas de noite, na cama ardente, compreendeu que tinha de ir procurá-la, ainda que não fosse capaz. Vestiu-se às tontas, ouvindo na escuridão a repousada respiração do irmão, a tosse seca do pai no quarto vizinho, a asma das galinhas no quintal, o zumbido dos mosquitos, o bumbo do seu coração e o desmesurado bulício do mundo em não tinha reparado até então, e saiu para a rua adormecida. Desejava de todo coração que a porta estivesse trancada, e não simplesmente encostada, como ela lhe havia prometido. Mas estava aberta. Empurrou-a com a ponta dos dedos e as dobradiças soltaram um gemido lúgubre e articulado que uma ressonância gelada nas suas entranhas. Desde o momento em que entrou, meio de lado e tratando de não fazer barulho, sentiu o cheiro. Ainda estava na saleta onde os três irmãos da mulher penduravam as redes em posições que ele ignorava e que não podia determinar nas trevas, de modo que lhe faltava atravessá-la às cegas, empurrar a porta do quarto e orientar-se ali de maneira a que não fosse se enganar de cama. Conseguiu. Tropeçou com os punhos das redes, que estavam mais baixas do que ele supusera, e um homem que roncava até então mexeu-se no sonho e disse com uma espécie de desilusão: “Era quarta-feira.” Quando empurrou a porta do quarto, não pôde impedir que ela roçasse o desnível do chão. De repente, na escuridão absoluta, entendeu com uma irremediável nostalgia que estava completamente desorientado. Na estreita peça dormiam a mãe, outra filha com o marido e duas crianças, e a mulher, que talvez não o esperasse. Teria podido se guiar pelo cheiro se o cheiro não andasse em toda a casa, tão enganoso e ao mesmo tempo tão definido como tinha estado sempre na sua pele. Permaneceu imóvel um longo momento, perguntando-se assombrado como tinha feito para chegar a esse abismo de desamparo, quando uma mão com todos os dedos estendidos, que tateava nas trevas, tropeçou-lhe na cara. Não se surpreendeu porque, sem saber, tinha estado esperando por isso. Confiou-se então àquela mão, e num terrível estado de esgotamento deixou-se levar até um lugar sem formas onde lhe tiraram a roupa e o trabalharam como a um saco de batatas e o viraram para o avesso e para o direito, numa escuridão insondável em que lhe sobravam os braços, e onde já não cheirava mais a mulher, mas a amoníaco, e onde tentava se lembrar do rosto dela e topava com o rosto de Úrsula, confusamente consciente de que estava fazendo algo que há muito desejava que se pudesse fazer, mas que nunca havia imaginado que realmente se pudesse fazer, sem saber como estava fazendo porque não sabia onde estavam os pés e onde a cabeça, nem os pés de quem nem a cabeça de quem, e sentindo que não podia agüentar mais o ruído glacial dos seus rins e o ar do seu intestino, e o medo, e a ânsia aturdida de fugir e ao mesmo tempo de ficar para sempre naquele silêncio exasperado e naquela solidão terrível.
      Chamava-se Pilar Ternera. Fizera parte do êxodo que culminou com a fundação de Macondo, arrastada pela sua família, para separá-la do homem que a tinha violado aos quatorze anos e que a continuara amando até os vinte e dois, mas que nunca se decidira a tornar pública a situação, porque tinha outro compromisso. Prometera segui-la até o fim do mundo, porém mais tarde, quando tivesse arrumado as coisas; e ela se cansou de esperar, identificando-o sempre com os homens altos e baixos, louros e morenos, que as cartas lhe prometiam pelos caminhos da terra e pelos caminhos do mar, para dentro de três dias, três meses ou três anos. Tinha perdido na espera a força das coxas, a dureza dos seios, o hábito da ternura; mas conservava intacta a loucura do coração. Transtornado por aquele brinquedo prodigioso, José Arcadio seguia as suas pegadas todas as noites através do labirinto do quarto. Certa ocasião, encontrou a porta trancada, e tocou várias vezes, sabendo que, se tinha tido a ousadia de tocar a primeira vez, tinha que tocar até a última, e ao fim de uma espera interminável ela lhe abriu a porta. Durante o dia, caindo de sono, gozava em segredo as lembranças da noite anterior. Mas quando ela entrava em casa, alegre, indiferente, desbocada, não tinha que fazer nenhum esforço para dissimular a sua tensão, porque aquela mulher, cujo riso explosivo espantava os pombos, não tinha nada que ver com o poder invisível que ensinava a respirar para dentro e a controlar as batidas do coração, e lhe havia permitido entender por que os homens têm medo da morte. Estava tão ensimesmado que nem sequer a alegria de todos quando seu pai e irmão alvoroçaram a casa com a notícia de que haviam conseguido atingir o entulho metálico e separar o ouro de Úrsula.
      Com efeito, depois de complicados e perseverantes lances tinham conseguido. Úrsula estava feliz, e até deu graças Deus pela invenção da alquimia, enquanto as gentes da aldeia se espremiam no laboratório e lhes servia doce de goiaba com biscoitinhos para celebrar o prodígio e José Arcadio Buendía deixava ver o crisol com o ouro resgatado, como se acabasse de inventá-lo. De tanto mostrá-lo, terminou diante de seu filho mais velho, que nos últimos tempos mal aparecia pelo laboratório. Pôs diante dos seus olhos o emplastro seco e amarelado, e lhe perguntou: “Que tal te parece?” José Arcadio, sinceramente, respondeu:
      — Merda de cachorro.
      O pai deu-lhe com as costas da mão uma violenta bofetada na boca, que lhe fez saltarem o sangue e as lágrimas. Essa noite, Pilar Temera pôs compressas de arnica na inchação, adivinhando no escuro o frasco e os algodões, e fez-lhe todas as vontades sem que ele se incomodasse, para amá-lo sem machucá-lo. Chegaram a tal estado de intimidade que um momento depois, sem se dar conta, estavam falando por cochichos.
      — Quero ficar sozinho com você — dizia ele. — Um dia conto tudo a todo mundo e se acabam os segredos.
      Ela não tentou apaziguá-lo.
      — Seria ótimo — disse. — Se estivermos sozinhos, deixamos a luz acesa para nos vermos bem, e eu posso gritar tudo o que quiser sem que ninguém tenha que se meter, e você me diz no ouvido todas as porcarias que lhe vierem à cabeça. Esta conversa, o rancor magoado que sentia contra o pai, e a iminente possibilidade do amor desaforado, inspiraram-lhe uma serena valentia. De modo espontâneo, sem nenhuma preparação, contou tudo ao irmão.
      No princípio, o pequeno Aureliano só compreendia o risco, a imensa possibilidade de perigo que implicavam as aventuras de seu irmão, mas não conseguia imaginar a fascinação do objetivo. Pouco a pouco se foi contaminando de ansiedade. Fazia-o contar as minuciosas peripécias, identificava-se com o sofrimento e o gozo do irmão, sentia-se assustado e feliz. Esperava-o acordado até o amanhecer, na cama solitária que parecia ter uma esteira de brasas, e continuavam falando sem sono até a hora de levantar, de modo que em pouco tempo padeceram ambos da mesma sonolência, sentiram o mesmo desprezo pela alquimia e pela sabedoria do pai, e se refugiaram na solidão. “Estes meninos andam sorumbáticos”, dizia Úrsula. “Devem estar com lombrigas.” Preparou-lhes uma repugnante poção de erva-de-santa-maria amassada, que ambos beberam com imprevisto estoicismo, e se sentaram ao mesmo tempo nos penicos, onze vezes num só dia, e expulsaram umas parasitas rosadas, que mostraram a todos com grande júbilo, porque lhes permitiram enganar Úrsula quanto à origem das suas distrações e langores. Aureliano podia, então, não só entender, mas também viver como coisa própria as experiências de seu irmão, porque numa ocasião em que este explicava com muitos pormenores o mecanismo do amor, interrompeu-o para perguntar: “O que é que se sente?” José Arcadio deu-lhe uma resposta imediata:
      — É como um tremor de terra.
      Numa quinta-feira de janeiro, às duas da madrugada, nasceu Amaranta. Antes que alguém entrasse no quarto, Úrsula examinou-a minuciosamente. Era leve e aquosa como uma lagartixa, mas todas as suas partes eram humanas. Aureliano não se deu conta da novidade a não ser quando sentiu a casa cheia de gente. Protegido pela confusão, saiu em busca do irmão, que não estava na cama desde as onze, e foi uma decisão tão impulsiva que nem sequer teve tempo de se perguntar como faria para tirá-lo do quarto de Pilar Ternera. Esteve rondando a casa por várias horas, assoviando senhas próprias, que a proximidade da madrugada obrigou-o a regressar.No quarto da mãe, brincando com a irmãzinha recém-nascida e com uma cara que caía de inocente, encontrou José Arcadio.
      Úrsula mal havia cumprido o seu resguardo de quarenta dias quando os ciganos voltaram. Eram os mesmos saltimbancos e malabaristas que haviam trazido o gelo. Em contraste com a tribo de Melquíades, tinham demonstrado em pouco tempo que não eram arautos do progresso e sim mercadores de diversões. Inclusive, quando trouxeram o gelo, não o anunciaram em função da sua utilidade na vida dos homens, mas como uma mera curiosidade de circo. Desta vez, entre muitos os jogos de artifício, traziam um tapete voador. Não o ofereceram, porém, como uma contribuição fundamental para o desenvolvimento dos transportes e sim como um objeto de recreação. O povo, evidentemente, desenterrou os seus últimos tostões para desfrutar de um vôo fugaz sobre as casas aldeia. Amparados pela deliciosa impunidade da desordem coletiva, José Arcadio e Pilar viveram horas de folga. Foram namorados felizes entre a multidão, e até chegaram a suspeitar de que o amor podia ser um sentimento mais repousado e profundo que a felicidade arrebatada, mas momentânea, suas noites secretas. Pilar, entretanto, quebrou o encanto. Estimulada pelo entusiasmo com que José Arcadio desfrutava a sua companhia, escolheu errado a forma e a ocasião e de um só golpe jogou-lhe o mundo nos ombros. “Agora sim você é um homem”, disse a ele. E como não entendesse o que ela queria dizer, explicou-lhe letra por letra:
      — Você vai ser pai.
      José Arcadio não se atreveu a sair de casa durante vários dias. Bastava escutar a gargalhada trepidante de Pilar na cozinha para se esconder correndo no laboratório, onde os aparelhos de alquimia tinham revivido, com a bênção de Úrsula. José Arcadio Buendía recebeu com alvoroço o filho extraviado, e iniciou-o na busca da pedra filosofal, que tinha por fim empreendido. Uma tarde, os rapazes se entusiasmaram com o tapete voador, que passou veloz ao nível da janela do laboratório, levando o cigano condutor e várias crianças da aldeia, que faziam alegres cumprimentos com a mão, e José Arcadio Buendía nem sequer olhou. “Deixem que sonhem”, disse. “Nós voaremos melhor que eles, com recursos mais científicos que essa miserável colcha.” Apesar do seu fingido interesse, José Arcadio nunca entendeu os poderes do ovo filosófico, que simplesmente lhe parecia um frasco malfeito. Não conseguia fugir da preocupação. Perdeu o apetite e o sono, sucumbiu ao mau humor igual ao pai diante do fracasso de alguma das suas empresas, e foi tal o seu transtorno que o próprio José Arcadio Buendía o liberou dos deveres no laboratório, achando que ele tinha levado a sério demais a alquimia. Aureliano, evidentemente, percebeu que a aflição do irmão não tinha origem na busca da pedra filosofal, mas não lhe conseguiu arrancar nem uma confidência. Tinha perdido a sua antiga espontaneidade. De cúmplice e comunicativo fez-se hermético e hostil. Ansioso de solidão, picado por um virulento rancor contra o mundo, certa noite abandonou a cama como de costume, mas em vez de ir à casa de Pilar Ternera perdeu-se no tumulto da feira. Depois de perambular por toda espécie de máquinas de diversão sem se interessar por nenhuma, fixou-se em algo que não estava no jogo: uma cigana muito jovem, quase uma garota, afogada em miçangas, a mulher mais bela que José Arcadio tinha visto na vida. Estava entre a multidão que presenciava o triste espetáculo do homem que se transformara em víbora por desobedecer aos pais.
      José Arcadio não prestou atenção. Enquanto se desenrolava o triste interrogatório do homem-víbora, tinha aberto caminho entre a multidão até a primeira fila, onde se encontrava a cigana, e tinha se detido atrás dela. Apertou-se contra as suas costas. A moça tentou se afastar, mas José Arcadio se apertou com mais força contra as suas costas. Então, ela o sentiu. Ficou imóvel contra ele, tremendo de surpresa e pavor, sem poder acreditar na evidência, e por fim voltou a cabeça e olhou para ele com um sorriso trêmulo. Nesse instante, dois ciganos meteram o homem-víbora na jaula e o levaram para o interior da tenda. O cigano que dirigia o espetáculo anunciou:
      — E agora, senhoras e senhores, vamos apresentar a prova terrível da mulher que terá que ser decapitada todas as noites a esta hora, durante cento e cinqüenta anos, como castigo por ter visto o que não devia.
      José Arcadio e a moça não presenciaram a decapitação. Foram à barraca dela, onde se beijaram com uma ansiedade desesperada enquanto iam tirando a roupa. A cigana se desfez de suas camisetas superpostas, das suas numerosas anáguas de renda engomada, do seu inútil espartilho de arame, da sua carga de miçangas, e ficou praticamente reduzida a nada. Era uma rãzinha lânguida, de seios incipientes e pernas finas que não ganhavam em diâmetro aos braços de José Arcadio, mas tinha uma decisão e um calor que compensava sua fragilidade. Entretanto, José Arcadio não podia corresponder, porque estavam numa espécie de tenda pública, por onde os ciganos passavam com os seus instrumentos de circo e arrumavam as suas coisas, e até se demoravam junto à cama para jogar uma partida de dados. A lâmpada pendurada no mastro central iluminava todo o âmbito. Numa pausa das carícias, José Arcadio estirou-se nu na cama, sem saber o que fazer enquanto a moça tratava de excitá-lo. Uma cigana de carnes esplêndidas entrou pouco depois, acompanhada de um homem que não fazia parte da farândola, mas que tampouco era da aldeia, e ambos começaram a despir-se diante da cama. Distraidamente, a mulher olhou para José Arcadio e examinou com uma espécie de fervor patético o seu magnífico animal em repouso.
      — Rapaz — exclamou — que Deus o conserve para ti.
      A companheira de José Arcadio pediu-lhes que os deixassem em paz, e o casal se deitou no chão, muito perto da cama. A paixão dos outros despertou a febre de José Arcadio. Ao primeiro contato, os ossos da moça pareceram se desarticular, com um rangido desordenado como o de um fichário de dominó, e a sua pele se desfez num suor pálido e os seus se encheram de lágrimas e todo o seu corpo exalou um rito lúgubre e um vago cheiro de lodo. Mas suportou o impacto com uma firmeza de ânimo e uma valentia admiráveis. José Arcadio se sentiu então etereamente elevado a um estado de inspiração seráfica, onde o seu coração se desbaratou num manancial de obscenidades ternas que entravam na moça pelos ouvidos e lhe saíam pela boca, traduzidas ao seu idioma. Era quinta-feira. Na noite de sábado, José Arcadio amarrou um pano vermelho na cabeça e foi-se embora com os ciganos.
      Quando Úrsula descobriu a sua ausência, procurou-o por toda a aldeia. No acampamento desmanchado dos ciganos, não havia mais que uma vala de detritos, entre as cinzas ainda fumegantes das fogueiras apagadas. Alguém que andava por ali procurando miçangas no lixo disse a Úrsula que na noite anterior tinha visto o seu filho no tumulto da farândola, puxando uma carreta com a jaula do homem-víbora. “Entrou pra cigano!”, gritou ela ao marido, que não tinha dado o menor sinal de alarme pelo desaparecimento.
      — Oxalá seja verdade — disse José Arcadio Buendía, amassando no almofariz a matéria mil vezes amassada e reaquecida e tornada a amassar. — Assim vai aprender a ser homem.
      Úrsula perguntou por onde tinham ido os ciganos. Continuou perguntando no caminho que lhe indicaram, e pensando que ainda tinha tempo de alcançá-los, continuou se afastando da aldeia, até que teve consciência de estar tão longe que já não pensou mais em voltar. José Arcadio Buendía não deu falta da mulher senão às oito da noite, quando deixou a matéria esquentando numa camada de esterco, e foi ver o que estava acontecendo com a pequena Amaranta, que estava rouca de tanto chorar. Em poucas horas, reuniu um grupo de homens bem equipados, pôs Amaranta nas mãos de uma mulher que se ofereceu para amamentá-la, e se perdeu por caminhos invisíveis atrás de Úrsula. Aureliano os acompanhou. Alguns pescadores indígenas, cuja língua desconheciam, indicaram-lhes por sinais, ao amanhecer, que não tinham visto ninguém passar. Ao fim de três dias de busca inútil, regres-saram à aldeia.
      Durante várias semanas, José Arcadio Buendía deixou-se vencer pela consternação. Ocupava-se como mãe da pequena Amaranta. Banhava-a e mudava-lhe a roupa, levava-a para ser amamentada quatro vezes por dia e até cantava para ela, de noite, as canções que Úrsula nunca soube cantar. Certa ocasião, Pilar Ternera se ofereceu para fazer os serviços da casa, enquanto Úrsula não voltava. Aureliano, cuja misteriosa intuição se tinha sensibilizado com a desgraça, experimentou um fulgor de clarividência ao vê-la entrar. Então soube que, de um modo inexplicável, era dela a culpa da fuga do irmão e o conseqüente desaparecimento da mãe, e a perseguiu de tal maneira, com uma calada e implacável hostilidade, que a mulher não voltou mais à casa.
      O tempo pôs as coisas no lugar. José Arcadio Buendía e o filho viram-se outra vez no laboratório, sacudindo a poeira, botando fogo no alambique, entregues uma vez mais à paciente manipulação da matéria adormecida há vários meses na sua camada de esterco. Até Amaranta, deitada num cestinho de vime, observava com curiosidade o absorvente trabalho do pai e do irmão, no quartinho rarefeito pelos vapores do mercúrio. A certa altura, meses depois da partida de Úrsula, começaram a acontecer coisas estranhas. Um frasco vazio que durante muito tempo esteve esquecido num armário, fez-se tão pesado que foi impossível movê-lo. Uma chaleira d’água, colocada na mesa de trabalho, ferveu sem fogo durante meia hora, até evaporar-se a água por completo. José Arcadio Buendía e seu filho observavam aqueles fenômenos com assustado alvoroço, sem conseguir explicá-los, mas interpretando-os como anúncios da matéria. Um dia, o cestinho de Amaranta começou a se mover com impulso próprio e deu uma volta completa no quarto, diante da consternação de Aureliano, que se apressou em detê-lo. Mas seu pai não alterou. Pôs o cestinho no lugar e amarrou-o na perna de uma mesa, convencido de que o acontecimento esperado era iminente. Foi esta a ocasião em que Aureliano ouviu-o dizer:
      — Se você não teme Deus, tema os metais.
      De repente, quase cinco meses depois do seu desaparecimento, Úrsula voltou. Chegou exaltada, rejuvenescida, com roupas novas, de um estilo desconhecido na aldeia. José Arcadio Buendía mal pôde resistir ao impacto. “Era isto!”, gritava. “Eu sabia que ia acontecer.” E acreditava mesmo nisto, porque nas suas concentrações, enquanto manipulava a matéria, rogava do fundo do seu coração que o prodígio esperado não fosse a descoberta da pedra filosofal, nem a liberação do sopro que faz viverem os metais, nem a faculdade de transformar em ouro as dobradiças e fechaduras da casa, mas o que agora tinha acontecido: a volta de Úrsula. Mas ela não compartilhava do seu alvoroço. Deu-lhe um beijo convencional, como se não tivesse estado ausente mais de uma hora, e lhe disse:
      — Chegue aqui na porta.
      José Arcadio Buendía levou muito tempo para se restabelecer da perplexidade, quando saiu na rua e viu a multidão. Não eram ciganos. Eram homens e mulheres como ele, de cabelos lisos e pele parda, que falavam a sua mesma língua e se lamentavam das mesmas dores. Traziam mulas carregadas de coisas de comer, carroças de bois com móveis e utensílios domésticos, puros e simples acessórios terrestres postos à venda sem estardalhaço pelos mercadores da realidade cotidiana. Vinham do outro lado do pântano, de a apenas dois dias de viagem, onde existiam povoados que recebiam o correio todos os meses e conheciam as máquinas do bem-estar. Úrsula não tinha alcançado os ciganos, mas encontrara a rota que seu marido não tinha podido descobrir na sua frustrada busca das grandes invenções.




Capítulo III


      O FILHO de Pilar Ternera foi levado para a casa dos avós com semanas de nascido. Úrsula admitiu-o de má vontade, mais uma vez pela teimosia do marido, que não pôde a idéia de que um rebento do seu sangue ficasse jogado por aí: mas impôs a condição de que se escondesse do menino a sua verdadeira identidade. Apesar de receber o nome de José Arcadio, acabaram por chamá-lo simplesmente de Arcadio, para evitar confusão. Havia naquela época tanta atividade no povoado e tanto movimento na casa que o cuidado das crianças ficou relegado a segundo plano. Recomendaram-nas Visitación, uma índia guajira que chegou ao povoado com um irmão, fugindo de uma peste de insônia que flagelava a sua tribo há vários anos. Ambos eram tão dóceis e serviçais que Úrsula ficou com eles para que a ajudassem nos afazeres domésticos. Foi assim que Arcadio e Amaranta falaram a língua guajira antes do castelhano e aprenderam a tomar sopa de lagartixas e a comer ovos de aranhas, sem que Úrsula reparasse, porque andava ocupada demais com um negócio de animaizinhos de caramelo que prometia um bom futuro. Macondo estava transformado. As pessoas que tinham vindo com Úrsula divulgaram a boa qualidade do solo e a sua posição privilegiada em relação ao pântano, de modo que a reduzida aldeia de outros tempos transformou-se logo num povoado ativo, com lojas e oficinas de artesanato, e uma rota de comércio permanente por onde chegaram os primeiros árabes de pantufas e argolas nas orelhas, trocando colares de vidro por papagaios. José Arcadio Buendía não teve um minuto de descanso. Fascinado por uma realidade imediata que no momento chegou a ser para ele mais fantástica que o vasto universo da sua imaginação, perdeu todo o interesse pelo laboratório de alquimia, deixou descansando a matéria extenuada por longos meses de manipulação, e voltou a ser o homem empreendedor dos primeiros tempos, que decidia o traçado das ruas e a posição das novas casas, de modo a que ninguém desfrutasse de privilégio que não possuíssem todos. Adquiriu tanta autoridade entre os recém-chegados que não se punha cimento nem se construíam cercas sem consultá-lo, e se estabeleceu que seria ele quem dirigiria a distribuição da terra. Quando os ciganos saltimbancos voltaram, agora com a sua feira ambulante transformada num gigantesco estabelecimento de jogos de sorte e azar, foram recebidos com alvoroço, porque se pensou que José Arcadio regressava com eles. Mas José Arcadio não voltou, e nem trouxeram o homem-víbora que, conforme pensava Úrsula, era o único que podia dar informações de seu filho; de modo que não se permitiu aos ciganos que se instalassem no povoado nem que voltassem a pisá-lo no futuro, porque os consideraram como mensageiros da concupiscência e da perversão. José Arcadio Buendía, entretanto, foi explícito no sentido de que a antiga tribo de Melquíades, que tanto contribuíra para o engrandecimento da aldeia, com milenária sabedoria e as suas fabulosas invenções, encontraria sempre as portas abertas. Mas a tribo de Melquíades, segundo o que contaram os saltimbancos, tinha sido varrida face da terra por haver ultrapassado os limites do conhecimento humano.
      Emancipado, pelo menos no momento, das torturas da fantasia, José Arcadio Buendía impôs em pouco tempo um estado de ordem e trabalho, dentro do qual só se permitiu uma licença: a libertação dos pássaros que desde a época da fundação alegravam o tempo com as suas flautas, e a instalação em seu lugar de relógios musicais em todas as casas. Eram maravilhosos relógios de madeira trabalhada que os árabes trocavam por papagaios e que José Arcadio Buendía sincronizou com tanta precisão que, de meia em meia hora, o povoado se alegrava com os acordes progressivos de uma mesma peça, até culminar o meio-dia exato e unânime com a valsa completa. Foi também José Arcadio Buendía quem decidiu por essa época que nas ruas do povoado se plantassem amendoeiras em vez de acácias, e quem descobriu, sem revelá-los nunca, os métodos de fazê-las eternas. Muitos anos depois, quando Macondo chegou a ser um acampamento de casas de madeira e tetos de zinco, ainda perduravam nas ruas mais antigas as amendoeiras quebradas e empoeiradas, sem que ninguém soubesse mais quem as havia plantado. Enquanto o pai colocava em ordem o povoado e a mãe consolidava o patrimônio doméstico com a sua maravilhosa indústria de galinhos e peixes açucarados, que duas vezes por dia saíam de casa enfiados em palitos, Aureliano vivia horas intermináveis no laboratório abandonado, aprendendo por pura pesquisa a arte da ourivesaria. Tinha crescido tanto que em pouco tempo deixou de lhe servir roupa abandonada pelo irmão e começou a usar a do pai, mas foi necessário que Visitación fizesse bainhas nas camisas e pregas nas calças, porque Aureliano não tinha puxado a corpulência dos outros. A adolescência havia tirado a doçura da sua voz e o tornara silencioso e definitivamente solitário, mas por outro lado tinha restituído a expressão intensa que teve nos olhos ao nascer. Estava tão concentrado nas suas experiência de ourivesaria que mal abandonava o laboratório, e só para comer. Preocupado com o seu ensimesmamento, José Arcadio Buendía deu-lhe as chaves da casa e um pouco de dinheiro, pensando que talvez fosse falta de mulher. Mas Aureliano gastou o dinheiro em ácido muriático para preparar água régia, e embelezou as chaves com um banho de ouro. As suas esquisitices, no entanto, mal eram comparáveis às de Arcadio e Amaranta, que já tinham começado a trocar os dentes e ainda andavam o dia inteiro agarrados às mantas dos índios, teimosos na sua decisão de não falar o castelhano e sim a língua índia. “Você não tem do que se queixar”, dizia Úrsula ao marido. “Os filhos herdam as loucuras dos pais.” E enquanto se lamentava da má sorte, convencida de que as extravagâncias dos filhos eram uma coisa tão terrível quanto um rabo de porco, Aureliano fixou nela um olhar que a envolveu numa aura de incerteza.
      — Alguém vai chegar — disse.
      Úrsula, como sempre que ele expressava um prognóstico, tratou de esfriá-lo com a sua lógica caseira. Era normal que alguém chegasse. Dezenas de forasteiros passavam diariamente por Macondo, sem suscitar inquietações nem antecipar avisos secretos. Entretanto, apesar de toda a lógica, Aureliano estava certo do seu presságio.
      — Não sei quem será — insistiu — mas seja quem for, já vem a caminho.
      No domingo, com efeito, chegou Rebeca. Não tinha mais de onze anos. Tinha feito a penosa viagem desde Manaure, com uns traficantes de peles que receberam o encargo de entregá-la, junto com uma carta, na casa de José Arcadio Buendía, mas que não puderam explicar com precisão quem era a pessoa que lhes havia pedido o favor. Toda a sua bagagem era composta de um bauzinho de roupa, uma pequena cadeira de balanço de madeira com florezinhas coloridas pintadas a mão e um saco de lona que fazia um eterno ruído de cloc cloc cloc, onde trazia os ossos de seus pais. A carta dirigida a José Arcadio Buendía estava escrita em termos muito carinhosos por alguém que continuava a estimá-lo muito apesar do tempo e da distância, e que se sentia obrigado, por um elementar senso de humanidade, a fazer a caridade de lhe mandar esta pobre orfãzinha desamparada, que era prima de Úrsula em segundo grau e, por conseguinte, parenta também de José Arcadio Buendía, ainda que em grau mais longínquo, porque era filha daquele inesquecível amigo que foi Nicanor Ulloa e sua mui digna esposa Rebeca Montiel, a quem Deus tenha no seu santo reino, e cujos restos juntava à presente para lhes desse sepultura cristã. Tanto os nomes mencionados quanto a assinatura da carta eram perfeitamente legíveis, mas José Arcadio Buendía nem Úrsula se lembravam de ter parentes com esses nomes, nem conheciam ninguém que se chamasse como o remetente, e muito menos na remota povoação de Manaure. Através da menina, foi impossível obter informação complementar. Desde o momento em que sentou-se na cadeirinha de balanço a chupar o dedo e observar a todos com os seus grandes olhos espantados, sinal algum de entender o que lhe perguntavam. Vestia uma roupa de diagonal tingida de negro, gasta pelo uso, botinas descascadas de verniz. Trazia o cabelo preso atrás das orelhas, em coques com fitas negras. Usava um escapulário com as imagens apagadas pelo suor e, na munheca uma presa de animal carnívoro engastada num suporte de cobre, como amuleto contra o mau-olhado. A sua pele verde, o seu ventre redondo e tenso como um tambor revelavam uma saúde ruim e uma fome mais velhas que ela mesma, mas quando lhe deram de comer ficou com o prato nos joelhos, sem tocá-lo. Chegou-se inclusive a acreditar que era surda-muda, até que os índios lhe perguntaram na sua língua se queria um pouco d’água e ela moveu os olhos como se os tivesse reconhecido e disse que sim com a cabeça.
      Ficaram com ela, porque não havia outro remédio. Decidiram chamá-la Rebeca, que, de acordo com a carta, era o nome da mãe, porque Aureliano teve a paciência de ler para ela todo o hagiológio e não conseguiu que reagisse diante de nenhum nome de santa. Como naquele tempo não havia cemitério em Macondo, pois até então não havia morrido ninguém, conservaram o saco de lona com os ossos, à espera de que houvesse um lugar digno para sepultá-lo, e durante muito tempo eles rolaram por toda parte e se encontravam onde menos se esperava, sempre com o seu eloqüente cacarejo de galinha choca. Muito tempo correu até que Rebeca se incorporasse à vida familiar. Sentava-se na cadeirinha de balanço chupando o dedo, no canto mais escondido da casa. Nada lhe chamava a atenção, salvo a música dos relógios, que de meia em meia hora procurava com os olhos assustados, como se esperasse encontrá-la em algum pedaço do ar. Não conseguiram que comesse, durante vários dias. Ninguém entendia como não tinha morrido de fome, até que os índios, que percebiam tudo, porque percorriam a casa sem parar, com seus pés sigilosos, descobriram que Rebeca só gostava de comer a terra úmida do quintal e as tortas de cal que arrancava das paredes com as unhas. Era evidente que seus pais, ou quem quer que a tivesse criado, tinham-lhe repreendido esse hábito, pois o praticava às escondidas e com consciência de culpa, procurando guardar as rações para comê-las quando ninguém visse. A partir de então, submeteram-na a uma vigilância implacável. Derramavam fel de vaca no quintal e untavam de pimenta as paredes, acreditando curar com esses métodos o seu vício pernicioso, mas ela deu tais provas de astúcia e engenho para procurar a terra que Úrsula se viu forçada a empregar recursos mais drásticos. Punha suco de laranja com ruibarbo numa panela, que deixava ao sereno uma noite inteira, e lhe dava a poção no dia seguinte, em jejum. Ainda que ninguém lhe tivesse dito que aquele era o remédio específico para o vicio de comer terra, pensava que qualquer substância amarga no estômago vazio tinha que obrigar o fígado a reagir. Rebeca era tão rebelde e tão forte, apesar do seu raquitismo, que tinham de agarrá-la como a um bezerro para que engolisse o remédio, e mal se podiam evitar as suas convulsões e suportar os arrevesados hieróglifos que ela alternava com mordidas e cuspidelas e que, segundo o que diziam os escandalizados índios, eram as obscenidades mais grossas que se podiam conceber no seu idioma. Quando Úrsula soube disso, complementou o tratamento com correadas. Não se esclareceu nunca se o que surtiu efeito foi o ruibarbo ou as sovas, ou as duas coisas combinadas, mas a verdade é que, em poucas semanas, Rebeca começou a dar mostras de restabelecimento. Participou das brincadeiras de Arcadio e Amaranta, que a receberam como a uma irmã mais velha, e comeu com apetite, servindo-se bem dos talheres. Logo se revelou que falava o castelhano com tanta fluidez como a língua dos índios, que tinha uma habilidade notável para os trabalhos manuais e que cantava a valsa dos relógios com uma letra muito engraçada que ela mesma tinha inventado. Não tardaram a considerá-la um membro a mais da família. Era mais afetuosa com Úrsula que os seus próprios filhos, e chamava de maninhos Amaranta e Arcadio, de tio a Aureliano e de vovô a José Arcadio Buendía. De modo que acabou por merecer, tanto como os outros, o nome de Rebeca Buendía, o único que teve e que carregou com dignidade até a morte.
      Uma noite, na época em que Rebeca se curou do vício comer terra e foi levada para dormir no quarto das outras crianças, a índia que dormia com eles acordou por acaso e ouviu um estranho ruído intermitente no canto. Sentou-se alarmada pensando que tinha entrado algum animal no quarto, viu Rebeca na cadeira de balanço, chupando o dedo os olhos fosforescentes como os de um gato na escuridão. Pasmada de terror, perseguida pela fatalidade do destino, Visitación reconheceu nesses olhos os sintomas da doença cuja ameaça os havia obrigado, a ela e ao irmão, a se desterrarem para sempre de um reino milenário no qual eram príncipes. Era a peste da insônia.
      Cataure, o índio, não amanheceu em casa. Sua irmã ficou, porque o coração fatalista lhe indicava que a doença letal haveria de persegui-la de todas as maneiras até o último lugar da terra. Ninguém entendeu o pânico de Visitación. “Se não voltar a dormir, melhor”, dizia José Arcadio Buendía de bom-humor. “Assim a vida rende mais.” Mas a índia explicou que o mais temível da doença da insônia não era a impossibilidade de dormir, pois o corpo não sentia cansaço mas sim a sua inexorável evolução para uma manifestação mais crítica: o esquecimento. Queria dizer que quando o doente se acostumava ao seu estado de vigília, começavam a apagar-se da sua memória as lembranças da infância, em seguida o nome e a noção das coisas, e por último a identidade das pessoas e ainda a consciência do próprio ser, até se afundar numa espécie de idiotice sem passado. José Arcadio Buendía, morto de rir, considerou que se tratava de mais uma das tantas enfermidades inventadas pela superstição dos indígenas. Mas Úrsula, por via das dúvidas, tomou a precaução de separar Rebeca das outras crianças.
      Ao fim de várias semanas, quando o terror de Visitación parecia aplacado, José Arcadio Buendía encontrou-se uma noite rolando na cama sem poder dormir. Úrsula, que também tinha acordado, perguntou-lhe o que estava acontecendo e ele respondeu: “Estou pensando outra vez em Prudencio Aguilar.” Não dormiram um minuto sequer, mas no dia seguinte se sentiam tão descansados que se esqueceram da noite ruim. Aureliano comentou assombrado na hora do almoço que se sentia muito bem, apesar de ter passado toda a noite no laboratório, dourando um broche que pensava dar a Úrsula no dia do seu aniversário. Não se alarmaram até o terceiro dia, quando na hora de deitar se sentiram sem sono, e deram conta de que estavam há mais de cinqüenta horas sem dormir.
      — As crianças também estão acordadas — disse a índia com a sua convicção fatalista. — Uma vez que a peste entra em casa, ninguém escapa.
      Haviam contraído, na verdade, a doença da insônia. Úrsula, que tinha aprendido da mãe o valor medicinal das plantas, preparou, e fez todos tomarem, uma beberagem de acônito, mas não conseguiram dormir, e passaram o dia inteiro sonhando acordados. Nesse estado de alucinada lucidez não só viam as imagens dos seus próprios sonhos, mas também uns viam as imagens sonhadas pelos outros. Era como se a casa se tivesse enchido de visitas. Sentada na cadeira de balanço, num canto da cozinha, Rebeca sonhou que um homem muito parecido com ela, vestido de linho branco e com o colarinho da camisa fechado por um botão de ouro, trazia-lhe um ramo de rosas. Acompanhava-o uma mulher de mãos delicadas que separou uma rosa e pôs no cabelo da menina. Úrsula entendeu que o homem e a mulher eram os pais de Rebeca, mas ainda que fizesse um grande esforço para reconhecê-los, confirmou-se a certeza de que nunca os havia visto. Enquanto isso, por um descuido que José Arcadio Buendía não se perdoou nunca, os animaizinhos de caramelo fabricados em casa continuavam sendo vendidos no povoado. Crianças e adultos chupavam encantados os deliciosos galinhos verdes da insônia, os refinados peixes rosados da insônia e os ternos cavalinhos amarelos da insônia, de modo que a alvorada de segunda-feira surpreendeu todo o povoado de pé. No princípio, ninguém se alarmou. Pelo contrário, alegraram-se de não dormir porque havia então tanto o que fazer em Macondo que o tempo mal chegava. Trabalharam tanto que logo não tiveram nada mais que fazer, e se encontraram às três da madrugada com os braços cruzados, contando o número de notas que tinha a valsa dos relógios. Os que queriam dormir, não por cansaço, mas por saudade dos sonhos, recorreram a toda sorte de métodos de esgotamento. Reuniam-se para conversar sem trégua, repetindo durante horas e horas as mesmas piadas complicando até os limites da exasperação a história do galo capão, que era um jogo infinito em que o narrador perguntava se queriam que lhes contasse a história do galo capão e quando respondiam que sim, o narrador dizia que não havia pedido que dissessem que sim, mas se queriam que lhes contasse a história do galo capão, e quando respondiam que não, o narrador dizia que não lhes tinha pedido que dissessem que não, mas se queriam que lhes contasse a história do capão, e quando ficavam calados o narrador dizia que não lhes tinha pedido que ficassem calados, mas se queriam que lhes contasse a história do galo capão, e ninguém podia ir embora porque o narrador dizia que não lhes tinha pedido que fossem embora, mas se queriam que lhes contasse a história do galo capão, e assim sucessivamente, num círculo vicioso que se prolongava por noites inteiras.
      Quando José Arcadio Buendía percebeu que a peste tinha invadido a povoação, reuniu os chefes de família para explicar-lhes o que sabia sobre a doença da insônia, e estabeleceram medidas para impedir que o flagelo se alastrasse para as outras povoações do pantanal. Foi assim que se tiraram dos cabritos os sininhos que os árabes trocavam por papagaios, se puseram na entrada do povoado, à disposição dos que desatendiam os conselhos e as súplicas dos sentinelas e insistiam em visitar a aldeia. Todos os forasteiros que por aquele tempo percorriam as ruas de Macondo tinham que fazer soar o sininho para que os doentes soubessem que estavam sãos. Não se lhes permitia comer nem beber nada durante a sua estada, pois não havia dúvidas de que a doença só se transmitia pela boca, e todas as coisas de comer e de beber estavam contaminadas pela insônia. Desta forma, manteve-se a peste circunscrita ao perímetro do povoado. Tão eficaz foi a quarentena, que chegou o dia em que a situação de emergência passou a ser encarada como coisa natural e se organizou a vida de tal maneira que o trabalho retomou o seu ritmo e ninguém voltou a se preocupar com o inútil costume de dormir.
      Foi Aureliano quem concebeu a fórmula que havia de defendê-los, durante vários meses, das evasões da memória. Descobriu-a por acaso. Insone experimentado, por ter sido um dos primeiros, tinha aprendido com perfeição a arte da ourivesaria. Um dia, estava procurando a pequena bigorna que utilizava para laminar os metais, e não se lembrou do seu nome. Seu pai lhe disse: “tás”. Aureliano escreveu o nome num papel que pregou com cola na base da bigorninha: tás. Assim, ficou certo de não esquecê-lo no futuro. Não lhe ocorreu que fosse aquela a primeira manifestação do esquecimento, porque o objeto tinha um nome difícil de lembrar. Mas poucos dias depois, descobriu que tinha dificuldade de se lembrar de quase todas as coisas do laboratório. Então, marcou-as com o nome respectivo, de modo que bastava ler a inscrição para identificá-las. Quando seu pai lhe comunicou o seu pavor por ter-se esquecido até dos fatos mais impressionantes da sua infância, Aureliano lhe explicou o seu método, e José Arcadio Buendía o pôs em prática para toda a casa e mais tarde o impôs a todo o povoado. Com um pincel cheio de tinta, marcou cada coisa com o seu nome: mesa, cadeira, relógio, porta, parede, cama, panela. Foi ao curral e marcou os animais e as plantas: vaca, cabrito, porco, galinha, aipim, taioba, bananeira. Pouco a pouco, estudando as infinitas possibilidades do esquecimento, percebeu que podia chegar um dia em que se reconhecessem as coisas pelas suas inscrições, mas não se recordasse a sua utilidade. Então foi mais explícito. O letreiro que pendurou no cachaço da vaca era uma amostra exemplar da forma pela qual os habitantes de Macondo estavam dispostos a lutar contra o esquecimento: Esta é a vaca, tem-se ordenhá-la todas as manhãs para que produza o leite e preciso ferver para misturá-lo com o café e fazer café com leite. Assim, continuaram vivendo numa realidade escorregadia momentaneamente capturada pelas palavras, mas que de fugir sem remédio quando esquecessem os valores da letra escrita.
      Na entrada do caminho do pântano, puseram um cartaz que dizia Macondo e outro maior na rua central que dizia Deus existe. Em todas as casas haviam escrito lembretes para memorizar os objetos e os sentimentos. Mas o sistema exigia tanta vigilância e tanta fortaleza moral que muitos sucumbiram ao feitiço de uma realidade imaginária, inventada por eles mesmos, que acabava por ser menos prática, porém mais reconfortante. Pilar Ternera foi quem mais contribuiu para popularizar essa mistificação, quando concebeu o artifício de ler o passado nas cartas como antes tinha lido o futuro. Com esse recurso, os insones começaram a viver num mundo construído pelas alternativas incertas do baralho, onde o pai se lembrava de si apenas como o homem moreno que havia chegado no princípio de abril, e a mãe se lembrava de si apenas como a mulher trigueira que usava um anel de ouro na mão esquerda e onde uma data de nascimento ficava reduzida à última quarta-feira em que cantou a calhandra no loureiro. Derrotado por aquelas práticas de consolação, José Arcadio Buendía decidiu então construir a máquina da memória, que uma vez tinha desejado para se lembrar dos maravilhosos inventos ciganos. A geringonça se fundamentava na possibilidade de repassar, todas as manhãs, e do princípio ao fim, a totalidade dos conhecimentos adquiridos na vida. Imaginava-a como um dicionário giratório que um indivíduo situado no eixo controlar com uma manivela, de modo que em poucas horas passassem diante dos seus olhos as noções mais necessárias para viver. Tinha conseguido escrever já cerca de quatorze mil fichas, quando apareceu pelo caminho do pântano um ancião mal-ajambrado, com o sininho triste dos que dormem, carregando uma mala barriguda, amarrada com cordas, e um carrinho coberto de trapos negros. Foi diretamente à casa de José Arcadio Buendía.
      Visitación não o reconheceu ao abrir-lhe a porta, e pensou que tinha o propósito de vender alguma coisa, ignorante de que nada se podia vender num povoado que se afundava sem remédio no atoleiro do esquecimento. Era um homem decrépito. Embora a sua voz estivesse também oscilante pela incerteza e as suas mãos parecessem duvidar da existência das coisas, era evidente que vinha do mundo onde os homens ainda podiam dormir e recordar. José Arcadio Buendía encontrou-o sentado na sala, abanando-se com um remendado chapéu negro, enquanto lia com atenção compassiva os letreiros pregados na parede. Cumprimentou-o com amplas demonstrações de afeto, temendo tê-lo conhecido em outra época e agora não se lembrar mais dele. Mas o visitante percebeu a falsidade. Sentiu-se esquecido, não com o esquecimento remediável do coração, mas com outro esquecimento mais cruel e irrevogável que ele conhecia muito bem, porque era o esquecimento da morte. Então entendeu. Abriu a mala entupida de objetos indecifráveis, e dentre eles tirou uma maleta com muitos frascos. Deu para beber a José Arcadio Buendía uma substância de cor suave, e a luz se fez na sua memória. Seus olhos se umedeceram de pranto, antes de ver-se a si mesmo numa sala absurda onde os objetos estavam marcados, e antes de envergonhar-se das solenes bobagens escritas nas paredes, e ainda antes de reconhecer o recém-chegado numa deslumbrante explosão de alegria. Era Melquíades. Enquanto Macondo festejava a reconquista das lembranças, José Arcadio Buendía e Melquíades sacudiram a poeira da velha amizade. O cigano estava disposto a ficar no povoado. Tinha estado à morte, realmente, mas tinha voltado porque não pôde suportar a solidão. Repudiado pela sua tribo, desprovido de toda faculdade sobrenatural como castigo pela sua fidelidade à vida, decidiu se refugiar naquele cantinho do mundo ainda não descoberto pela morte, dedicado à exploração de um laboratório de daguerreotipia. José Arcadio Buendía nunca tinha ouvido falar desse invento. Mas quando se viu a si mesmo e a toda a sua família plasmados numa idade eterna sobre uma lâmina de metal com reflexos, ficou mudo de espanto. Dessa época data o oxidado daguerreótipo em que José Arcadio Buendía com o cabelo arrepiado e cinzento, o engomado colarinho da camisa fechado por um botão de cobre, e uma expressão de solenidade assombrada, e que Úrsula descrevia morta de rir como “um general assustado”. Na verdade, José Arcadio Buendía estava assustado, na diáfana manhã de dezembro em que lhe fizeram o daguerreótipo porque pensava que a pessoa se ia gastando pouco a pouco que à medida que a sua imagem passava para as placas metálicas. Por uma curiosa inversão do costume, foi Úrsula que lhe tirou aquela idéia da cabeça, assim como foi também ela quem esqueceu as antigas mágoas e decidiu que Melquíades ficaria na casa deles, embora nunca permitisse que lhe fizessem um daguerreótipo porque (segundo as suas próprias palavras textuais) não queria ficar para a chacota dos netos. Na manhã, vestiu as crianças com as suas melhores roupas, empoou-lhes a cara e deu uma colherada de xarope de tutano a cada um, para que pudessem permanecer absolutamente imóveis durante quase dois minutos diante da aparatosa câmara de Melquíades. No daguerreótipo familiar, o único que sempre existiu, Aureliano apareceu vestido de veludo negro, entre Amaranta e Rebeca. Tinha a mesma languidez e o mesmo olhar clarividente que haveria de ter, anos mais tarde, diante do pelotão de fuzilamento. Mas ainda não havia sentido a premonição do seu destino. Era um ourives experimentado, estimado em todo o pantanal pelo preciosismo do seu trabalho. Na oficina que compartilhava com o disparatado laboratório de Melquíades, mal se ouvia ele respirar. Parecia refugiado no tempo, enquanto seu pai e o cigano interpretavam aos gritos as predições de Nostradamus, entre um estrépito de frascos e cubas, e o desastre dos ácidos derramados e o brometo de prata perdido pelas cotoveladas e tropeções que davam a cada instante. Aquela consagração ao trabalho e o bom senso com que administrava os seus interesses haviam permitido a Aureliano ganhar em pouco tempo mais dinheiro que Úrsula com a sua deliciosa fauna de caramelo, mas todo mundo estranhava que fosse já um homem feito e não se tivesse notícia de nenhuma mulher na sua vida. Na verdade, não tinha tido.
      Meses depois, voltou Francisco, o Homem, um ancião errante de quase 200 anos, que passava com freqüência por Macondo, divulgando as canções compostas por ele mesmo. Nelas, Francisco, o Homem, relatava com detalhes minuciosos os fatos acontecidos nos outros povoados do seu itinerário, de Manaure até os confins do pantanal, de modo que se alguém tinha um recado para mandar ou um acontecimento para divulgar pagava-lhe dois centavos para que o incluísse no seu repertório. Foi assim que Úrsula ficou sabendo da morte de sua mãe, por puro acaso, numa noite em que escutava as canções com a esperança de que dissessem algo sobre o seu filho José Arcadio. Francisco, o Homem, assim chamado porque venceu o diabo num desafio de improvisação de cantos, e cujo verdadeiro nome ninguém soube, desapareceu de Macondo durante a peste da insônia e certa noite reapareceu sem aviso na taberna de Catarino. Todo o povo foi escutá-lo, para saber o que tinha acontecido no mundo. Nessa ocasião, chegaram com ele uma mulher tão gorda que quatro índios tinham que levá-la carregada numa maca, e uma mulata adolescente de aspecto desamparado que a protegia do sol com uma sombrinha. Aureliano foi essa noite à taberna de Catarino. Encontrou Francisco, o Homem, como um camaleão monolítico, sentado no meio de um círculo de curiosos. Cantava as notícias com a sua velha voz desencordoada acompanhando-se com o mesmo acordeão arcaico que ganhara de Sir Walter Raleigh nas Guianas, enquanto marcava o compasso com os seus grandes pés andarilhos gretados pelo salitre. Diante da porta do fundo, estava sentada, e se abanava em silêncio, a matrona da maca. Catarino, com uma rosa de feltro na orelha, vendia à freguesia canecas de garapa fermentada e aproveitava a ocasião para se aproximar dos homens pôr a mão onde não devia. Por volta da meia-noite o calor era insuportável. Aureliano escutou as notícias até o fim, sem encontrar nenhuma que interessasse à sua família. Dispunha-se a voltar para casa quando a matrona lhe fez um sinal com mão.
      — Entre você também — disse a ele. — Custa só vinte centavos.
      Aureliano jogou uma moeda no cofre que a matrona tinha nas pernas e entrou no quarto sem saber para quê. A mulata adolescente, com as suas tetazinhas de cadela, estava nua cama. Antes de Aureliano, nessa noite, sessenta e três homens tinham passado pelo quarto. De tanto ser usado, e amassado com suores e suspiros, o ar da alcova começava a se transformar em lodo. A moça tirou o lençol ensopado e pediu a Aureliano que o segurasse por um lado. Pesava como uma cortina. Espremeram-no, torcendo-o pelos extremos, até que voltou ao seu peso natural. Viraram a esteira, e o suor saía pelo outro lado. Aureliano ansiava para que essa operação não terminasse nunca. Conhecia a mecânica teórica do amor, mas não podia agüentar-se em pé por causa da fraqueza dos joelhos, e ainda que tivesse a pele arrepiada e ardente não podia suportar a urgência de expulsar o peso das tripas. Quando a moça acabou de arrumar a cama e lhe ordenou que se despisse ele deu uma explicação aparvalhada: “Me fizeram entrar. disseram para jogar vinte centavos no cofre e não demorar.“ A moça entendeu o seu embaraço. “Se você jogar outros vinte centavos na saída, pode demorar um pouco mais”, e suavemente. Aureliano se despiu, atormentado pelo pudor, sem poder afastar a idéia de que a sua nudez não resistia à comparação com a de seu irmão. Apesar dos esforços da moça, sentiu-se cada vez mais indiferente, e terrivelmente sozinho. “Vou jogar outros vinte centavos”, disse com voz desolada. A moça lhe agradeceu em silêncio. Tinha as costas em carne viva. Tinha a pele colada nas costelas e a respiração alterada por um esgotamento insondável. Dois anos antes, muito longe dali, havia adormecido sem apagar a vela e tinha acordado rodeada pelo fogo. A casa onde vivia com a avó que a havia criado ficou reduzida a cinzas. Desde então, a avó a levava de povoado em povoado, deitando-a por vinte centavos, a pagar o valor da casa incendiada. Pelos cálculos da moça ainda lhe faltavam uns dez anos de setenta homens por noite, porque tinha a pagar além do mais os gastos de viagem e alimentação das duas, e o ordenado dos índios que carregavam a maca. Quando a matrona bateu na porta pela segunda vez, Aureliano saiu do quarto sem ter feito nada, aturdido pela vontade de chorar. Essa noite não pôde dormir, pensando na moça com uma mistura de desejo e comiseração. Sentia uma necessidade irresistível de amá-la e protegê-la. Ao amanhecer, extenuado pela insônia e pela febre, tomou a serena decisão de se casar com ela para libertá-la do despotismo da avó e desfrutar todas as noites da satisfação que ela dava a setenta homens. Mas, às dez da manhã, quando chegou à taberna de Catarino, a moça já tinha ido embora do povoado.
      O tempo aplacou o seu propósito deslumbrado, mas agravou o seu sentimento de frustração. Refugiou-se no trabalho. Resignou-se a ser um homem sem mulher a vida inteira, para esconder a vergonha da sua inutilidade. Enquanto isso, Melquíades acabou de plasmar nas suas placas tudo o que era plasmável em Macondo e abandonou o laboratório de daguerreotipia aos delírios de José Arcadio Buendía, que tinha resolvido utilizá-lo para obter a prova científica da existência de Deus. Mediante um complicado processo de exposições superpostas, tomadas em lugares diferentes da casa, estava certo de fazer mais cedo ou mais tarde o daguerreótipo de Deus, se existisse, ou acabar de uma vez por todas com a suposição da sua existência. Melquíades aprofundou-se nas interpretações de Nostradamus. Ficava até muito tarde, sufocando-se dentro do seu desbotado casaco de veludo, traçando garranchos em papéis, com as suas minúsculas mãos de pardal, cujos anéis tinham perdido o brilho de outra época. Certa noite, acreditou encontrar uma predição sobre o futuro de Macondo. Seria uma cidade luminosa, com grandes casas de vidro, onde não restava nem rastro da estirpe dos Buendía. “É engano”, trovejou José Arcadio Buendía. “Não serão casas de vidro, mas de gelo, como eu sempre sonhei, e sempre haverá um Buendía, pelos séculos dos séculos.” Naquela casa extravagante, Úrsula lutava para preservar o bom senso, tendo ampliado o negócio de animaizinhos de caramelo com um forno que produzia, durante toda a noite, cestos e cestos de pão e uma prodigiosa variedade de pudins, suspiros e biscoitinhos, que se esfumavam em poucas horas pelas veredas do pantanal. Havia atingido a idade em que tinha direito a descansar, mas era cada vez mais ativa. Tão ocupada andava com as suas prósperas empresas que uma tarde olhou por distração para o quintal enquanto a índia a ajudava a adoçar a massa, e viu duas adolescentes desconhecidas e formosas bordando no bastidor à luz do crepúsculo. Eram Rebeca e Amaranta. Mal haviam tirado o luto da avó, que guardaram com inflexível rigor durante três anos, e a roupa de cor parecia haver dado a elas um novo lugar no mundo. Rebeca, ao contrário do que se pôde esperar, era a mais bela. Tinha uma pele diáfana, olhos grandes e repousados, e umas mãos mágicas que pareciam elaborar com fios invisíveis a trama do bordado. Amaranta, a menor era um pouco sem graça, mas tinha a distinção natural, a altivez interior da avó morta. Junto delas, embora já se revelasse o impulso físico de seu pai, Arcadio parecia um menino. Tinha-se dedicado a aprender a arte da ourivesaria com Aureliano, que além disso lhe ensinara a ler e escrever. Úrsula percebeu de repente que a casa se havia enchido de gente, seus filhos estavam quase para casar e ter filhos, e que veriam obrigados a se dispersar por falta de espaço. Então tirou o dinheiro juntado em longos anos de trabalho duro, assumiu compromissos com os seus clientes, e empreendeu a ampliação da casa. Ordenou que se construíssem uma sala formal para as visitas, outra mais cômoda e fresca para o uso diário, um refeitório com uma mesa de doze lugares, onde se sentasse a família com todos os seus convidados; nove quartos com janelas para o quintal e uma longa varanda protegida do esplendor do meio-dia por um jardim de rosas, com uma amurada para colocar vasos de fetos e de begônias. Mandou alargar a cozinha para construir dois fornos, destruir a velha despensa onde Pilar Ternera tinha lido o futuro de José Arcadio, e construir outra duas vezes maior, para que nunca faltasse alimentos em casa. Mandou construir no quintal, à sombra do castanheiro, um banheiro para as mulheres e outro para os homens, e ao fundo uma cavalariça grande, um galinheiro um estábulo de ordenha e uni viveiro aberto aos quatro ventos para que se instalassem a seu gosto os pássaros sem rumo. Seguida por dúzias de pedreiros e carpinteiros, como se tivesse contraído a febre alucinante do marido, Úrsula ordenava a posição da luz e a conduta do calor, e dividia o espaço sem a menor noção dos seus limites. A primitiva construção dos fundadores se encheu de ferramentas e materiais, de operários agoniados pelo suor, que pediam a todo mundo o favor de não atrapalhar, sem pensar que eram eles que atrapalhavam, exasperados pelo saco de ossos humanos que os perseguia por todas as partes com o seu surdo chocalhar. Naquele ambiente incômodo, todos respirando cal viva e melados de alcatrão, ninguém entendeu muito bem como foi surgindo das entranhas da terra não só a maior casa que jamais haveria no povoado, como também a mais hospitaleira e fresca que jamais houvera no âmbito do pantanal. José Arcadio Buendía, tentando surpreender a Divina Providência no meio do cataclismo, foi quem menos entendeu. A nova casa estava quase terminada quando Úrsula o tirou do seu mundo quimérico para informá-lo de que havia uma ordem para pintar a fachada de azul e não de branco, como eles que riam. Mostrou-lhe a disposição oficial escrita num papel. José Arcadio Buendía, sem compreender o que dizia a sua esposa, decifrou a assinatura.
      — Quem é esse sujeito? — perguntou.
      — O delegado — disse Úrsula desconsolada. — Dizem que é uma autoridade que o governo mandou.
      O Sr. Apolinar Moscote, o delegado, tinha chegado a Macondo na surdina. Baixou no Hotel do Jacob — instalado por um dos primeiros árabes que chegaram mascateando bugigangas por papagaios — e no dia seguinte alugou um quartinho com porta para a rua, a duas quadras da casa dos Buendía. Pôs uma mesa e uma cadeira que comprou de Jacob, pregou na parede um escudo da República que tinha trazido consigo, e pintou na porta o letreiro: Delegacia. Sua primeira atitude foi ordenar que todas as casas se pintassem de azul para celebrar o aniversário da independência nacional. José Arcadio Buendía, com a cópia da ordem na mão, encontrou-o dormindo a sesta na rede que tinha pendurado no estreito escritório. “Foi o senhor que escreveu este papel?”, perguntou. O Sr. Apolinar Mascote, um homem maduro, tímido de compleição sanguínea, respondeu que sim. “Com que direito?”, voltou a perguntar José Arcadio Buendía. O Sr. Apolinar procurou um papel na gaveta da mesa e mostrou; “Fui nomeado delegado deste povoado.” José Arcadio Buendía nem sequer olhou para a nomeação.
      — Neste povoado não mandamos com papéis — disse sem perder a calma. — E para que fique sabendo de uma vez, não precisamos de nenhum delegado, porque aqui não há nada para delegar.
      Diante da impavidez do Sr. Apolinar Moscote, sempre sem levantar a voz, fez um pormenorizado relato de como haviam fundado a aldeia, de como tinham repartido a terra, aberto caminhos e introduzido as melhoras que lhes fora exigindo a necessidade, sem ter incomodado governo nenhum e ninguém os incomodasse. “Somos tão pacíficos que sequer morremos de morte natural”, disse. “Veja que não temos cemitério.” Não estava magoado pelo governo não os haver ajudado. Pelo contrário, alegrava-se de até então os tivesse deixado crescer em paz, e esperava continuasse deixando, porque eles não tinham fundado povoado para que o primeiro que chegasse lhes fosse dizer o que deviam fazer. O Sr. Apolinar Moscote havia posto um paletó de linho, branco como as suas calças, sem perder um só momento a pureza dos seus gestos.
      — De modo que se o senhor quiser ficar aqui, como outro cidadão comum e corrente, seja bem-vindo — concluiu José Buendía. — Mas se vem implantar a desordem, obrigando o povo a pintar as casas de azul, pode juntar os trapos para o lugar de onde veio. Porque a minha casa vai ser branca como uma pomba. O Sr. Apolinar Moscote ficou pálido. Deu um passo atrás e apertou os maxilares para dizer com certa aflição:
      — Quero adverti-lo de que estou armado. José Arcadio Buendía não pôde precisar em que momento subiu às mãos a força juvenil com que derrubava um cavalo. Agarrou o Sr. Apolinar Moscote pelo colarinho e levantou-o à altura dos olhos.
      — Faço isto — disse ele porque prefiro carregá-lo vivo e não ter de continuar a carregá-lo morto pelo resto de minha vida.
      Assim o levou, pelo meio da rua, suspenso pelo colarinho, até que o pôs sobre os seus dois pés no caminho do pântano. Uma semana depois, estava de volta com seis soldados descalços e esfarrapados, armados de espingardas, e um carro de boi onde viajavam sua mulher e suas sete filhas. Mais tarde chegaram mais duas carroças com os móveis, os baús e os utensílios domésticos. Instalou a família no Hotel do Jacob, enquanto arranjava uma casa, e voltou a abrir o escritório protegido pelos soldados. Os fundadores de Macondo, resolvidos a expulsar os invasores, foram com os seus filhos mais velhos colocar-se à disposição de José Arcadio Buendía. Mas ele se opôs, conforme explicou, porque o Sr. Apolinar Moscote tinha voltado com a mulher e as filhas, e não era coisa de homem envergonhar outro diante da família. De modo que decidiu resolver a situação por bem.
      Aureliano o acompanhou. Já então tinha começado a cultivar o bigode negro de pontas engomadas, e tinha a voz um pouco retumbante que haveria de caracterizá-lo na guerra. Desarmados, sem dar importância à guarda, entraram no escritório do delegado. O Sr. Apolinar Moscote não perdeu a serenidade. Apresentou-os a duas de suas filhas que se encontravam ali por acaso: Amparo, de 16 anos, morena como a mãe, e Remedios, de apenas nove anos, um cromo de menina com pele de lírio e olhos verdes. Eram graciosas e bem-educadas. Logo que eles entraram, antes de serem apresentadas, trouxeram-lhes cadeiras para que se sentassem. Mas ambos permaneceram de pé.
      — Muito bem, amigo — disse José Arcadio Buendía —o senhor fica aqui, mas não porque tem na porta esses bandoleiros de trabuco, e sim por consideração à senhora sua esposa e às suas filhas.
      O Sr. Apolinar Moscote se desconcertou, mas José Arcadio Buendía não lhe deu tempo para responder. “Só lhe impomos duas condições”, acrescentou. “A primeira: que cada um pinte a sua casa da cor que quiser. A segunda: que os soldados vão embora imediatamente. Nós garantimos a ordem.” O delegado levantou a mão direita com todos os dedos
      — Palavra de honra?
      Palavra de inimigo — disse José Arcadio Buendía. E num tom amargo: — Porque uma coisa eu quero lhe dizer: o senhor e eu continuamos sendo inimigos. Nessa mesma tarde os soldados foram embora. Poucos dias depois José Arcadio Buendía arranjou uma casa para a família do delegado. Todo mundo ficou em paz, menos Aureliano. A imagem de Remedios, a filha mais nova do delegado, que pela idade poderia ser sua filha, ficou doendo em alguma parte de seu corpo. Era uma sensação física que quase o incomodava para andar, como uma pedrinha no sapato.




Foto tirada por Patrick Curry.