sábado

Capítulo IX





      O CORONEL Gerineldo Márquez foi o primeiro que percebeu o vazio da guerra. Na sua condição de chefe civil e militar de Macondo, mantinha duas vezes por semana conversas telegráficas com o Coronel Aureliano Buendía. No princípio, essas entrevistas determinavam o curso de uma guerra de carne e osso, cujos contornos perfeitamente definidos permitiam estabelecer a qualquer momento o ponto exato em que se encontrava e prever os seus rumos futuros. Embora nunca se deixasse arrastar para o terreno das confidências, nem sequer pelos seus amigos mais íntimos, o Coronel Aureliano Buendía conservava na época o tom familiar que permitia identificá-lo no outro extremo da linha. Muitas vezes prolongou a conversa além do tempo previsto e a deixou derivar para comentários de caráter doméstico. Pouco a pouco, no entanto, e à medida a guerra ia se intensificando e estendendo, a sua imagem foi se apagando num universo de irrealidade. Os pontos e traços da sua voz eram cada vez mais remotos e incertos, e se uniam e se combinavam para formar palavras que paulatinamente foram perdendo todo o sentido. O Coronel Gerineldo limitava-se então a escutar, assustado pela impressão de estar em contato telegráfico com um desconhecido do outro mundo.
      — Entendido, Aureliano — concluía no manipulador. —Viva o Partido Liberal!
      Acabou por perder todo o contato com a guerra. O que em outros tempos fora uma atividade real, uma paixão irresistível da sua juventude, converteu-se para ele numa referência remota: um vácuo. O seu único refúgio era o quarto de costura de Amaranta. Visitava-a todas as tardes. Gostava de contemplar as suas mãos enquanto franzia babados de cambraia na máquina de manivela que Remedios, a bela, fazia girar. Ficavam muitas horas sem falar, satisfeitos com a companhia recíproca, mas enquanto Amaranta se alegrava intimamente por manter vivo o fogo da sua devoção, ele ignorava quais eram os secretos desígnios daquele coração indecifrável. Quando se teve notícia da sua volta, Amaranta sufocou de ansiedade. Quando o viu entrar em casa, porém, confundido com a ruidosa escolta do Coronel Aureliano Buendia, e o viu maltratado pelo rigor do desterro, envelhecido pela idade e pelo esquecimento, sujo de suor e poeira, cheirando a estábulo, feio, com o braço esquerdo na tipóia, sentiu-se desfalecer de desilusão. “Meu Deus”, pensou, “não era este que eu esperava.” No dia seguinte, entretanto, ele voltou à casa barbeado e limpo, com o bigode perfumado de água de alfazema e sem a tipóia ensangüentada. Trazia-lhe um breviário de capa nacarada.
      — Como os homens são esquisitos! — ela disse, porque não encontrava outra coisa para dizer. — Levam a vida lutando contra os padres e dão livros de oração de presente.
      A partir de então, mesmo nos dias mais críticos da guerra, ele a visitava todas as tardes. Muitas vezes, quando Remedios, a bela, não estava presente, era ele quem tocava a máquina de costura. Amaranta se sentia perturbada pela perseverança, pela lealdade, pela submissão daquele homem investido de tanta autoridade e que no entanto se despojava das armas na sala para entrar indefeso no quarto de costura. Mas durante quatro anos ele lhe reiterou o seu amor, e ela encontrou sempre a maneira de recusá-lo sem feri-lo, porque, embora não conseguisse amá-lo, já não podia viver sem ele. Remedios, a bela, que parecia indiferente a tudo, e de quem se pensava que era débil mental, não foi insensível a tanta devoção, e interveio em favor do Coronel Gerineldo Márquez. Amaranta descobriu de repente que aquela menina que havia criado, que mal despertava para a adolescência, já era a criatura mais bela que se havia visto em Macondo. Sentiu renascer no seu coração o rancor que em outra época experimentara contra Rebeca, e rogando a Deus que não a arrastasse até o extremo de lhe desejar a morte, expulsou-a do quarto de costura. Foi por essa época que o Coronel Gerineldo Márquez começou a sentir o fastio da guerra. Apelou para as suas reservas de persuasão, para a sua imensa e reprimida ternura, disposto a renunciar por Amaranta a uma glória que lhe tinha custado o sacrifício dos seus melhores anos. Mas não conseguiu convencê-la. Uma tarde de agosto, agoniada pelo peso insuportável da sua própria obstinação, Amaranta se trancou no quarto para chorar a sua solidão até morrer, depois de dar a resposta definitiva ao seu pretendente tenaz:
      — Vamos esquecer isso para sempre — disse a ele — já somos velhos demais para estas coisas.
      O Coronel Gerineldo Márquez atendeu naquela tarde a um chamado telegráfico do Coronel Aureliano Buendía. Foi uma conversa de rotina que não havia de abrir nenhuma brecha para a guerra estancada. Ao terminar, o Coronel Gerineldo Márquez contemplou as ruas desoladas, a água cristalizada nas amendoeiras, e se encontrou perdido na solidão.
      — Aureliano — disse tristemente no manipulador — está chovendo em Macondo.
      Houve um longo silêncio na linha. De repente, os aparelhos saltaram com os signos desapiedados do Coronel Aureliano Buendia.
      — Não seja boboca, Gerineldo — disseram os signos. —É natural que esteja chovendo em agosto.
      Fazia tanto tempo que não se viam que o Coronel Gerineldo Márquez se desconcertou com a agressividade daquela reação. Entretanto, dois meses depois, quando o Coronel Aureliano Buendía voltou a Macondo, o desconcerto se transformou em espanto. Até Úrsula se surpreendeu com o quanto havia mudado. Chegou na calada, sem escolta, embrulhado numa manta apesar do calor, e com três amantes que instalou numa mesma casa, onde passava a maior parte do tempo estendido numa rede. Mal lia os informes telegráficos que falavam de operações de rotina. Certa ocasião o Coronel Gerineldo Márquez lhe pediu instruções para a evacuação de uma localidade fronteiriça que ameaçava se converter num conflito internacional.
      — Não me aborreça com coisinhas miúdas — ordenou ele. — Consulte a Divina Providência.
      Era talvez o momento mais crítico da guerra. Os proprietários de terra liberais, que no princípio apoiavam a revolução, entraram em aliança secreta com os proprietários de terra conservadores para impedir a revisão dos títulos de propriedade. Os políticos que capitalizavam a guerra já desde o exílio haviam repudiado publicamente as determinações drásticas do Coronel Aureliano Buendía, mas até mesmo essa desautorização parecia deixá-lo sem preocupações. Não voltara a ler os seus versos, que ocupavam mais de cinco tomos e que permaneciam esquecidos no fundo do baú. De noite, ou na hora da sesta, chamava à rede uma das suas mulheres e obtinha dela uma satisfação rudimentar, e logo dormia com um sono de pedra que não era perturbado pelo mais leve indício de preocupação. Só ele sabia, naquele tempo, que o seu aturdido coração estava condenado para sempre à incerteza. A princípio, embriagado pela glória do regresso, pelas vitórias inverossímeis, bordejara o abismo da grandeza. Satisfazia-se com trazer à cabeceira o Duque de Marlborough, seu grande mestre nas artes da guerra, cujo aparato de peles e unhas de tigre produzia o respeito dos adultos e o assombro das crianças. Foi então que decidiu que nenhum ser humano se aproximasse dele a menos de três metros. No centro do círculo de giz que os seus ajudantes de campo traçavam onde quer que ele chegasse, e no qual apenas ele podia entrar, decidia com ordens breves e inapeláveis o destino do mundo. Na primeira vez em que esteve em Manaure depois do fuzilamento do General Moncada, apressou-se em cumprir a última vontade da sua vítima, e a viúva recebeu os óculos, a medalha, o relógio e a aliança, mas não lhe permitiu passar da porta de entrada.
      — Não entre, coronel — disse a ele. — O senhor pode mandar na sua guerra, mas na minha casa mando eu.
      O Coronel Aureliano Buendía não deu mostras de rancor, mas o seu espírito só encontrou sossego quando a sua guarda pessoal saqueou e reduziu a cinzas a casa da viúva. “Cuide do coração, Aureliano”, dizia-lhe então o Coronel Gerineldo Márquez. “Você está apodrecendo vivo.” Por essa época, convocou uma segunda assembléia dos principais comandantes rebeldes. Encontrou de tudo: idealistas, ambiciosos, aventureiros, ressentidos sociais e até delinqüentes comuns. Havia inclusive um antigo funcionário conservador, refugiado na revolta para fugir a um julgamento por desvio de fundos. Muitos não sabiam sequer por que lutavam. No meio daquela multidão heterogênea, cujas diferenças de critério estiveram a ponto de provocar uma explosão interna, destacava-se uma autoridade tenebrosa: o General Teófilo Vargas. Era um índio puro, selvagem, analfabeto, dotado de uma malícia taciturna e de uma vocação messiânica que provocava nos seus homens um fanatismo demente. O Coronel Aureliano Buendía convocou a reunião com o propósito de unificar o poder rebelde contra as manobras dos políticos. O General Teófilo Vargas adiantou-se às suas intenções: em poucas horas desbaratou a coligação dos comandantes melhor qualificados e se apoderou do poder central. “E uma fera digna de cuidado”, disse o
      Coronel Aureliano Buendía aos seus oficiais. “Para nós, esse homem é mais perigoso que o Ministro da Guerra.” Então, um capitão muito jovem que sempre se havia distinguido pela timidez levantou o dedo cauteloso:
      — É muito simples, coronel — propôs — nós temos de matá-lo.
      O Coronel Aureliano Buendía não se assustou com a frieza da proposta, e sim com a forma como ela se antecipou uma fração de segundo ao seu próprio pensamento.
      — Não esperem que eu dê essa ordem — disse. E não a deu, realmente. Mas quinze dias depois o General Teófilo Vargas foi despedaçado a golpes de facão numa emboscada, e o Coronel Aureliano Buendía assumiu o poder central. Na mesma noite em que a sua autoridade foi reconhecida por todos os comandos rebeldes, acordou sobressaltado, pedindo aos gritos uma manta. Um frio interior que lhe rachava os ossos e o mortificava inclusive em pleno sol impediu-lhe de dormir bem por vários meses, até que se transformou num hábito. A embriaguez do poder começou a se decompor em faixas de tédio. Procurando um remédio contra o frio, mandou fuzilar o jovem oficial que propôs o assassinato do General Teófilo Vargas. As suas ordens eram cumpridas antes de serem anunciadas, mesmo antes que ele as concebesse, e sempre iam muito mais longe do que ele se atreveria a fazê-las chegar. Extraviado na solidão do seu imenso poder, começou a perder o rumo. Incomodava-o o povo que o aclamava nas aldeias vencidas, e que lhe parecia o mesmo que aclamava o inimigo. Em toda parte encontrava adolescentes que o olhavam com os próprios olhos, que falavam com a sua própria voz, que o cumprimentavam com a mesma desconfiança com que ele os cumprimentava, e que diziam ser seus filhos. Sentiu-se jogado, repelido, e mais solitário do que nunca. Teve a certeza de que os seus próprios oficiais lhe mentiam. Brigou com o Duque de Marlborough. “O melhor amigo,” costumava dizer então, “é o que acaba de morrer.” Cansou-se da incerteza, do círculo vicioso daquela guerra eterna que sempre o encontrava no mesmo lugar, só que cada vez mais velho, mais acabado, mais sem saber por que, nem como, nem até quando. Sempre havia alguém fora do círculo de giz. Alguém que precisava de dinheiro, que tinha um filho com coqueluche ou que queria ir dormir para sempre porque já não podia suportar na boca o gosto de merda da guerra e que, entretanto, reunia as suas últimas reservas de energia para informar: “Tudo normal, coronel.” E a normalidade era precisamente o mais terrível daquela guerra infinita: não acontecia nada. Sozinho, abandonado pelos presságios, fugindo do frio que havia de acompanhá-lo até a morte, procurou um último refúgio em Macondo, ao calor das recordações mais antigas. Era tão grave a sua inércia que quando lhe anunciaram a chegada de uma comissão do seu partido, credenciada para discutir a encruzilhada da guerra, ele se mexeu na rede sem acordar de todo.
      — Levem-nos às putas — disse. Eram seis advogados de paletó e chapéu que suportavam com duro estoicismo o bravo sol de novembro. Úrsula hospedou-os em casa. Passavam a maior parte do dia trancados no quarto, em conciliábulos herméticos, e ao anoitecer pediam uma escolta e um conjunto de acordeões e tomavam conta da taberna de Catarino. “Não os incomodem”, ordenava o Coronel Aureliano Buendía. “Afinal, eu sei o que querem.” No início de dezembro, a entrevista longamente esperada, que muitos tinham previsto como uma discussão interminável, resolveu-se em menos de uma hora.
      Na abafada sala de visitas, junto ao espectro da pianola amortalhada com um lençol branco, o Coronel Aureliano Buendía não se sentou desta vez dentro do círculo de giz que traçaram os seus ajudantes de campo. Ocupou uma cadeira entre os seus assessores políticos, e embrulhado na manta de lã escutou em silêncio as breves propostas dos emissários. Pediam, em primeiro lugar, renunciar à revisão dos títulos de propriedade da terra para recuperar o apoio dos proprietários liberais. Pediam, em segundo lugar, renunciar à luta contra a influência clerical para obter o suporte do povo católico. Pediam, por último, renunciar às aspirações de igualdade de direitos entre os filhos naturais e os legítimos para preservar a integridade dos lares.
      — Quer dizer — sorriu o Coronel Aureliano Buendía quando terminou a leitura — que só estamos lutando pelo poder.
      — São reformas táticas — respondeu um dos delegados.
      — No momento, o essencial é ampliar a base popular da guerra. Depois se vê.
      Um dos assessores políticos do Coronel Aureliano Buendía se apressou a intervir.
      — É um contra-senso — disse. — Se estas reformas são boas, quer dizer que bom é o regime conservador. Se com elas conseguimos ampliar a base popular da guerra, como dizem os senhores, quer dizer que o regime tem uma ampla base popular. Quer dizer, em suma, que durante quase vinte anos estivemos lutando contra os sentimentos da nação.
      Ia continuar, mas o Coronel Aureliano Buendía o interrompeu com um sinal. “Não perca tempo, doutor”, disse. “O importante é que a partir deste momento só lutamos pelo poder.” Sem deixar de sorrir, tomou os papéis que lhe entregaram os delegados e se dispôs a assinar.
      — Já que é assim — concluiu — não temos nenhum inconveniente em aceitar.
      Os seus homens se olharam consternados.
      — Desculpe, coronel — disse suavemente o Coronel Gerineldo Márquez — mas isto é uma traição.
      O Coronel Aureliano Buendía deteve no ar a pena com tinta, e descarregou sobre ele todo o peso de sua autoridade.
      — Entregue as suas armas — ordenou.
      O Coronel Gerineldo Márquez se levantou e pôs as armas na mesa.
      — Apresente-se no quartel — ordenou-lhe o Coronel Aureliano Buendía. — O senhor fica à disposição dos tribunais revolucionários.
      Assinou logo a declaração e entregou os papéis aos emissários, dizendo:
      — Senhores, aí têm o documento. Sirvam-se dele.
      Dois dias depois, o Coronel Gerineldo Márquez, acusado de alta traição, foi condenado à morte. Refestelado na rede, o Coronel Aureliano Buendía foi insensível às súplicas de demência. Na véspera da execução, desobedecendo à ordem de não ser incomodado, Úrsula o visitou no seu quarto. De luto fechado, investida de uma estranha solenidade, permaneceu de pé os três minutos da entrevista. “Sei que você vai fuzilar Gerineldo”, disse serenamente, “e eu não posso fazer nada para impedir. Mas uma coisa eu aviso: logo que eu veja o cadáver, juro pelos ossos de meu pai e de minha mãe, pela memória de José Arcadio Buendía, juro diante de Deus, que vou tirá-lo de onde você se meter e matá-lo com as minhas próprias mãos.” Antes de abandonar o quarto, sem esperar nenhuma resposta, concluiu:
      — E a mesma coisa que eu teria feito se você tivesse nascido com rabo de porco.
      Naquela noite interminável, enquanto o Coronel Gerineldo Márquez evocava as suas tardes mortas no quarto de costura de Amaranta, o Coronel Aureliano Buendía arranhou durante muitas horas, tentando rompê-la, a dura casca da sua solidão. Os seus únicos momentos felizes, desde a tarde remota em que seu pai o levara para conhecer o gelo, haviam transcorrido na oficina de ourivesaria, onde passava o tempo armando peixinhos de ouro. Tivera que promover 32 guerras, e tivera que violar todos os seus pactos com a morte e fuçar como um porco na estrumeira da glória, para descobrir com quase quarenta anos de atraso os privilégios da simplicidade.
      Ao amanhecer, moído pela atormentada vigília, apareceu no quarto do condenado uma hora antes da execução. “Terminou a farsa, compadre”, disse ao Coronel Gerineldo Márquez. “Vamos embora daqui antes que os mosquitos te executem.” O Coronel Gerineldo Márquez não pôde reprimir o desprezo que lhe inspirava aquela atitude.
      — Não, Aureliano — replicou. — Mais vale estar morto que ver você transformado num general de chanfalho.
      — Você não vai me ver assim — disse o Coronel Aureliano Buendía. — Ponha os sapatos e me ajude a acabar com esta guerra de merda. Ao dizer isto, não imaginava que era mais fácil começar uma guerra que terminá-la. Precisou de quase um ano de rigor sanguinário para forçar o governo a propor condições de paz favoráveis aos rebeldes, e outro ano para persuadir os seus partidários da conveniência de aceitá-las. Chegou a inconcebíveis extremos de crueldade para sufocar as rebeliões dos seus próprios oficiais, que resistiam a mercadejar a vitória, e terminou se apoiando em forças inimigas para acabar de subjugá-los.
      Nunca foi melhor guerreiro do que então. A certeza de que finalmente lutava pela sua própria libertação e não por ideais abstratos, por ordens que os políticos podiam virar para o direito e para o avesso segundo as circunstâncias, infundiu-lhe um entusiasmo apaixonado. O Coronel Gerineldo Márquez, que lutou pelo fracasso com tanta convicção e tanta lealdade como antes lutara pelo triunfo, reprovava a sua temeridade inútil. “Não se preocupe”, sorria ele. “Morrer é muito mais difícil do que se acredita.” No seu caso era verdade. A certeza de que o seu dia estava marcado investiu-o de uma imunidade misteriosa, uma imortalidade a prazo fixo que o fez invulnerável aos riscos da guerra, e lhe permitiu finalmente conquistar uma derrota que era muito mais difícil, muito mais sangrenta e custosa que a vitória.
      Em quase vinte anos de guerra, o Coronel Aureliano Buendía tinha estado muitas vezes em casa, mas o estado de urgência em que chegava sempre, o aparato militar que o acompanhava a toda parte, a aura de lenda que dourava a sua presença e à qual nem a própria Úrsula foi insensível, terminaram por convertê-lo num estranho. Na última vez que esteve em Macondo e ocupou uma casa com as suas três concubinas, não foi visto na sua a não ser duas ou três vezes, quando teve tempo para aceitar convites para comer. Remedios, a bela, e os gêmeos, nascidos em plena guerra, mal o conheciam. Amaranta não conseguia conciliar a imagem do irmão que passara a adolescência fabricando peixinhos de ouro com a do guerreiro mítico que havia interposto entre ele e o resto da humanidade uma distância de três metros. Mas quando se soube da proximidade do armistício e se pensou que ele regressava outra vez convertido num ser humano, resgatado por fim para o coração dos seus, os afetos familiares adormecidos por tanto tempo renasceram com mais força do que nunca.
      — Finalmente — disse Úrsula — vamos ter outra vez um homem em casa.
      Amaranta foi a primeira a suspeitar de que o haviam perdido para sempre. Uma semana antes do armistício, quando ele entrou em casa sem escolta, precedido por dois ordenanças descalços que depositaram no corredor os arreios da mula e o baú dos versos, saldo único da sua antiga bagagem imperial, ela o viu passar em frente do quarto de costura e o chamou. O Coronel Aureliano Buendía pareceu ter dificuldade em reconhecê-la.
      — Sou Amaranta — disse ela de bom humor, feliz pela sua volta, e lhe mostrou a mão com a atadura negra. — Olhe.
      O Coronel Aureliano Buendía dirigiu-lhe o mesmo sorriso da primeira vez em que a viu com a atadura, na remota manhã em que voltou a Macondo sentenciado à morte.
      — Que horror — disse — como o tempo passa!
      O exército regular teve que proteger a casa. Ele chegara escarnecido, cuspido, acusado de ter endurecido a guerra apenas para vendê-la mais cara. Tremia de febre e de frio e tinha outra vez as axilas cheias de furúnculos. Seis meses antes, quando ouviu falar do armistício, Úrsula abriu e varreu a alcova nupcial, e queimou mirra nos cantos, pensando que ele regressaria disposto a envelhecer devagar entre as mofadas bonecas de Remedios. Mas na verdade, nos dois últimos anos ele pagara as suas quotas finais à vida, inclusive a do envelhecimento. Ao passar diante da oficina de ourivesaria, que Úrsula tinha preparado com especial cuidado, nem sequer percebeu que as chaves estavam postas no cadeado. Não notou os minúsculos e profundos estragos que o tempo fizera na casa e que depois de uma ausência tão prolongada teriam parecido um desastre a qualquer homem que conservasse vivas as suas recordações. Não o magoou a cal descascada nas paredes, nem os sujos algodões de teia de aranha nos cantos, nem a poeira das begônias, nem os túneis do cupim nas vigas, nem o musgo das dobradiças, nem nenhuma das armadilhas insidiosas que lhe estendia a saudade. Sentou-se na varanda, embrulhado na manta e sem tirar as botas, como que esperando apenas que estiasse, e permaneceu a tarde inteira vendo a chuva cair sobre as begônias. Úrsula compreendeu então que não o teria em casa por muito tempo. “Se não é a guerra”, pensou, “só pode ser a morte.” Foi uma suposição tão nítida, tão convincente, que ela a identificou como um presságio.
      Nessa noite, no jantar, o suposto Aureliano Segundo partiu o pão com a mão direita e tomou a sopa com a esquerda. Seu irmão gêmeo, o suposto José Arcadio Segundo, partiu o pão com a mão esquerda e tomou a sopa com a direita. Era tão precisa a coordenação dos seus movimentos que não pareciam dois irmãos sentados um em frente ao outro, e sim um artifício de espelhos. O espetáculo que os gêmeos tinham concebido desde que tomaram consciência de que eram iguais foi repetido em honra do recém-chegado. Mas o Coronel Aureliano Buendía não percebeu. Parecia tão alheio a tudo que nem sequer prestou atenção a Remedios, a bela, que passou despida para o quarto. Úrsula foi a única que se atreveu a perturbar a sua abstração.
      — Se você vai embora outra vez — disse-lhe no meio do jantar — pelo menos trate de se lembrar de como éramos esta noite.
      Então o Coronel Aureliano Buendía se deu conta, sem espanto, de que Úrsula era o único ser humano que tinha conseguido desentranhar a sua miséria, e pela primeira vez em muitos anos se atreveu a olhá-la na cara. Tinha a pele gretada, os dentes carcomidos, o cabelo minguado e sem cor, e o olhar atônito. Comparou-a com a lembrança mais antiga que tinha dela, na tarde em que ele tivera o presságio de que uma panela de sopa fervendo ia cair da mesa, e a encontrou espedaçada. Num instante descobriu os arranhões, os vergões, os calos, as úlceras e as cicatrizes que deixara nela mais de meio século de vida cotidiana e comprovou que estes estragos não provocavam nele sequer um sentimento de piedade. Fez então um último esforço para procurar no seu coração o lugar onde se haviam apodrecido os afetos e não conseguiu encontrá-lo. Em outra época, pelo menos, experimentava um confuso sentimento de vergonha quando surpreendia na sua própria pele o cheiro de Úrsula, e em mais de uma ocasião sentira os seus pensamentos interferidos pelo pensamento dela. Mas tudo isso tinha sido arrasado pela guerra. A própria Remedios, sua esposa, era naquele momento a imagem apagada de alguém que podia ter sido sua filha. As inumeráveis mulheres que conhecera no deserto do amor, e que espalharam a sua semente em todo o litoral, não tinham deixado nenhum rasto nos seus sentimentos. A maioria delas entrava no quarto na escuridão e ia embora antes da alvorada, e no dia seguinte era apenas um pouco de tédio na memória corporal. O único afeto que prevalecia contra o tempo e a guerra foi o que sentiu pelo seu irmão José Arcadio quando ambos eram crianças, e não estava baseado no amor, mas na cumplicidade.
      — Perdão — desculpou-se diante do pedido de Ursula.
      — É que esta guerra acabou com tudo.
      Nos dias subseqüentes ocupou-se em destruir todas as marcas da sua passagem pelo mundo. Reduziu a oficina de ourivesaria até deixar apenas os objetos impessoais, deu as suas roupas aos ordenanças e enterrou as suas armas no quintal com o mesmo sentido de penitência com que o seu pai havia enterrado a lança que dera morte a Prudencio Aguilar. Conservou somente uma pistola, e com uma bala apenas. Úrsula não interveio. A única vez que se meteu foi quando ele estava se preparando para destruir o retrato de Remedios que se conservava na sala, iluminado por uma lâmpada eterna. “Esse retrato deixou de pertencer a você há muito tempo”, disse a ele. “É uma relíquia de família.” Na véspera do armistício, quando já não havia em casa um só objeto que permitisse recordá-lo, levou à padaria da casa o baú com os versos, no momento em que Santa Sofía de la Piedad se preparava para acender o forno.
      — Acenda com isto — disse a ela, entregando-lhe o primeiro rolo de papéis amarelados. — Arde melhor, porque são coisas muito antigas.
      Santa Sofía de la Piedad, a silenciosa, a condescendente, a que nunca contrariara nem os próprios filhos, teve a impressão de que aquele era um ato proibido.
      — São papéis importantes — disse.
      — Nada disso — disse o coronel. — São coisas que uma pessoa escreve para si mesma.
      — Então — ela disse — queime o senhor mesmo, coronel. Não apenas o fez, mas espedaçou também o baú com uma machadinha e jogou os cavacos no fogo. Horas antes, Pilar Ternera o visitara. Depois de tantos anos sem vê-la, o Coronel Aureliano Buendía se assombrou de quanto havia envelhecido e engordado, e de quanto havia perdido o esplendor do seu riso; mas também se assombrou da profundidade que havia atingido na leitura das cartas. “Cuidado com a boca”, disse ela, e ele se perguntou se da outra vez em que dissera, no apogeu da glória, não havia sido uma visão surpreendentemente antecipada do seu destino. Pouco depois, quando o seu médico pessoal acabou de lhe extirpar os furúnculos, ele perguntou sem demonstrar interesse particular qual era o lugar exato do coração. O médico o auscultou e pintou-lhe em seguida um círculo no peito com um algodão sujo de iodo.
      A terça-feira do armistício amanheceu fresca e chuvosa. O Coronel Aureliano Buendía apareceu na cozinha antes das cinco e tomou o seu café sem açúcar habitual. “Num dia como este você veio ao mundo”, Úrsula disse a ele. “Todos se assustaram com os seus olhos abertos.” Ele não lhe prestou atenção, porque estava alerta aos preparos da tropa, aos toques de cometa e às vozes de comando que estragavam a alvorada. Ainda que depois de tantos anos de guerra estes ruídos lhe devessem parecer familiares, desta vez sentiu o mesmo desalento nos joelhos, e o mesmo arrepio da pele que tinha sentido na juventude, em presença de uma mulher nua. Pensou confusamente, enfim capturado numa armadilha da saudade, que talvez se tivesse se casado com ela teria sido um homem sem guerra e sem glória, um artesão sem nome, um animal feliz. Esse estremecimento tardio, que não figurava nas suas previsões, amargou-lhe o café da manhã. As sete horas, quando o Coronel Gerineldo Márquez foi procurá-lo em companhia de um grupo de oficiais rebeldes, encontrou-o mais taciturno do que nunca, mais pensativo e solitário. Úrsula tratou de jogar-lhe sobre os ombros uma manta nova. “O que é que o governo vai pensar”, disse a ele. “Vão imaginar que você se rendeu porque já não tinha nem com que comprar uma manta.” Mas ele não a aceitou. Já na porta, vendo que a chuva continuava, deixou que lhe pusessem um velho chapéu de feltro de José Arcadio Buendía.
      — Aureliano — Úrsula disse a ele então — prometa-me que se você encontrar por aí com a hora difícil, você vai pensar na sua mãe.
      Ele lhe deu um sorriso distante, levantou a mão com todos os dedos estendidos, e sem dizer uma palavra abandonou a casa e enfrentou os gritos, vitupérios e blasfêmias que haveriam de persegui-lo até a saída do povoado. Úrsula colocou a tranca no portão, decidida a não tirá-la durante o resto da vida. “Nós vamos apodrecer aqui dentro”, pensou. “Nós vamos nos transformar em cinza nesta casa sem homens, mas não vamos dar a este povo miserável o gosto de nos ver chorar.” Passou a manhã inteira procurando uma lembrança do filho nos cantos mais escondidos e não conseguiu encontrar.
      O ato se realizou a vinte quilômetros de Macondo, à sombra de uma paineira gigantesca, em torno da qual se haveria de fundar mais tarde o povoado de Neerlândia. Os delegados do governo e os do partido e a comissão rebelde que entregou as armas foram recebidos por um buliçoso grupo de noviças de hábitos brancos, que pareciam uma revoada de pombas assustadas pela chuva. O Coronel Aureliano Buendía chegou numa mula enlameada. Estava barbado, mais atormentado pela dor dos furúnculos que pelo imenso fracasso dos seus sonhos, pois tinha chegado ao fim de qualquer esperança, além da glória e da saudade da glória. De acordo com o determinado por ele mesmo, não houve música, nem foguetes, nem sinos de júbilo, nem placas comemorativas, nem nenhuma outra manifestação que pudesse alterar o caráter triste do armistício. Um fotógrafo ambulante, que tirou o único retrato seu que poderia ser conservado, foi obrigado a destruir o filme sem o revelar.
      O ato durou apenas o tempo indispensável para que se pusessem as assinaturas. Ao redor da rústica mesa colocada no centro de uma remendada barraca de circo onde sentaram os delegados, estavam os últimos oficiais que permaneceram fiéis ao Coronel Aureliano Buendía. Antes de recolher as assinaturas, o delegado pessoal do Presidente da República tentou ler em voz alta a ata da rendição, mas o Coronel Aureliano Buendía se opôs. “Não vamos perder tempo com formalidades”, disse, e se dispôs a assinar os papéis sem os ler. Um dos oficiais, então, rompeu o silêncio soporífero da tenda.
      — Coronel — disse — faça-nos o favor de não ser o primeiro a assinar.
      O Coronel Aureliano Buendía concedeu. Quando o documento deu a volta completa à mesa, em meio a um silêncio tão nítido que seria possível decifrar as assinaturas pelo puro floreio da pena no papel, o primeiro lugar ainda estava em branco. O Coronel Aureliano Buendía se dispôs a ocupá-lo.
      — Coronel — disse então outro dos seus oficiais — o senhor ainda tem tempo para ficar bem.
      Sem se perturbar, o Coronel Aureliano Buendía assinou a primeira cópia. Ainda não tinha acabado de assinar a última quando apareceu na porta da tenda um coronel rebelde, trazendo pelo cabresto uma mula carregada com dois baús. Apesar da sua extrema juventude, tinha um aspecto árido e uma expressão paciente. Era o tesoureiro da revolução na circunscrição de Macondo. Fizera uma penosa viagem de seis dias, arrastando a mula morta de fome, para chegar em tempo ao armistício. Com uma calma exasperante descarregou os baús, abriu-os, e foi colocando na mesa, uma por uma, setenta e duas barras de ouro. Ninguém se lembrava da existência daquela fortuna. Na desordem do ano anterior, quando o poder central se partiu em pedaços e a revolução degenerou numa sangrenta rivalidade de caudilhos, era impossível determinar qualquer responsabilidade. O ouro da rebelião, fundido em blocos que foram logo cobertos de barro cozido, ficou fora de qualquer controle. O Coronel Aureliano Buendía fez com que se incluíssem as setenta e duas barras de ouro no inventário da rendição, e fechou o ato sem permitir discursos. O esquálido adolescente permaneceu diante dele, olhando-o nos olhos com os seus serenos olhos cor de caramelo.
      — Alguma coisa mais? — perguntou-lhe o Coronel Aureliano Buendía.
      O jovem coronel trincou os dentes.
      — O recibo — disse.
      O Coronel Aureliano Buendía estendeu-lhe um, feito do seu próprio punho e letra. Em seguida, tomou um copo de limonada e comeu um pedaço de biscoito que as noviças serviram, e se retirou para uma tenda de campanha que lhe haviam preparado para quando quisesse descansar. Ali tirou a camisa, sentou-se na beira do catre e, às três e quinze da tarde, desferiu um tiro de pistola no círculo de iodo que o seu médico particular lhe pintara no peito. A essa hora, em Macondo, Úrsula destampou a panela do leite no fogão, estranhando que demorasse tanto a ferver, e encontrou-a cheia de vermes.
      — Mataram Aureliano! — exclamou.
      Olhou para o quintal, obedecendo a um costume da sua solidão, e viu José Arcadio Buendía, ensopado, triste de chuva e muito mais velho do que quando morreu. “Mataram-no à traição”, precisou Úrsula, “e ninguém fez a caridade de lhe fechar os olhos.” Ao anoitecer viu através das lágrimas os rápidos e luminosos discos alaranjados que cruzaram o céu como uma exalação, e pensou que era um sinal da morte. Estava ainda debaixo do castanheiro, soluçando nos joelhos do marido, quando trouxeram o Coronel Aureliano Buendía embrulhado na manta dura de sangue seco e com os olhos abertos de raiva.
     
      Estava fora de perigo. O projétil seguira uma trajetória tão desimpedida que o médico lhe enfiou um cordão molhado de iodo pelo peito e tirou-o pelas costas. “Esta é a minha obra-prima”, disse a ele satisfeito. “Era o único ponto por onde podia passar uma bala sem atingir nenhum centro vital.” O Coronel Aureliano Buendía se viu rodeado de noviças misericordiosas que entoavam salmos desesperados pelo eterno descanso da sua alma, e então se arrependeu de não ter dado o tiro no céu da boca como tinha previsto, só para enganar o prognóstico de Pilar Temera.
      — Se eu ainda tivesse autoridade — disse ao médico — mandava fuzilar o senhor sem julgamento. Não por me ter salvo a vida, mas por me fazer cair no ridículo. O fracasso da morte lhe devolveu em poucas horas o prestígio perdido. Os mesmos que inventaram a lorota de que vendera a guerra por um aposento cujas paredes estavam construídas com tijolos de ouro definiram a tentativa de suicídio como um ato de honra e o proclamaram mártir. Em seguida, ando recusou a Ordem do Mérito que o Presidente da República lhe outorgou, até os seus rivais mais encarniçados desfilaram no seu quarto, pedindo que desconhecesse os termos do armistício e promovesse uma nova guerra. A casa se encheu de presentes de solidariedade. Tardiamente impressionado com o apoio maciço dos seus antigos companheiros de armas, Coronel Aureliano Buendía não descartou a possibilidade de satisfazê-los. Pelo contrário, em dado momento pareceu tão entusiasmado com a idéia de uma nova guerra que o Coronel Gerineldo Márquez pensou que ele só esperava um pretexto para proclamá-la. O pretexto se ofereceu, efetivamente, quando o Presidente da República se negou a conceder as pensões de guerra aos antigos combatentes, liberais ou conservadores, enquanto cada processo não fosse revisto por uma comissão especial e a lei das concessões aprovada pelo Congresso. “Isto é uma confusão”, trovejou o Coronel Aureliano Buendía. “Vão morrer de velhice esperando o correio.”
      Abandonou pela primeira vez a cadeira de balanço que Úrsula comprara para a sua convalescença e, andando de um lado para o outro na alcova, ditou uma mensagem taxativa para o Presidente da República. Nesse telegrama, que nunca foi publicado, denunciava a primeira violação do Tratado de Neerlândia e ameaçava proclamar a guerra de morte se a concessão das pensões não fosse resolvida ao fim de quinze dias. Era tão justa a sua atitude que permitia contar, inclusive, com a adesão dos antigos combatentes conservadores. Mas a única resposta do governo foi o reforço da guarda militar que colocara na porta da sua casa com o pretexto de protegê-la e a proibição de toda e qualquer espécie de visitas. Medidas similares foram adotadas em todo o país, com outros caudilhos de cuidado. Foi uma operação tão oportuna, drástica e eficaz que dois meses depois do armistício, quando o Coronel Aureliano Buendía teve alta, os seus instigadores mais decididos já estavam mortos ou expatriados ou haviam sido assimilados para sempre pela administração pública.
      O Coronel Aureliano Buendía abandonou o quarto em dezembro, e bastou dar uma olhada na varanda para não voltar a pensar na guerra. Com uma vitalidade que parecia impossível na sua idade, Úrsula voltou a rejuvenescer a casa. “Agora vão ver quem sou eu”, disse quando soube que o filho viveria. “Não haverá uma casa melhor, nem mais aberta a todo o mundo, que esta casa de loucos.” Mandou-a lavar e pintar, trocou os móveis, restaurou o jardim e semeou flores novas, e abriu as portas e janelas para que entrasse até os quartos a deslumbrante claridade do verão. Decretou o fim dos numerosos lutos superpostos e ela mesma mudou os velhos trajes rigorosos por roupas juvenis. A música da pianola voltou a alegrar a casa. Ao ouvi-la, Amaranta se lembrou de Pietro Crespi, da sua gardênia crepuscular e do seu cheiro de lavanda, e no fundo do seu murcho coração floresceu um rancor limpo, purificado pelo tempo. Uma tarde em que tentava pôr em ordem a sala, Úrsula pediu ajuda aos soldados que custodiavam a casa. O jovem comandante da guarda concedeu-lhes a permissão. Pouco a pouco, Úrsula lhes foi designando novas tarefas. Convidava-os para almoçar, presenteava-lhes roupas e calçados e os ensinava a ler e a escrever. Quando o governo suspendeu a vigilância, um deles ficou morando na casa, e esteve a seu serviço por muitos anos. No dia de Ano-Novo, enlouquecido pelas grosserias de Remedios, a bela, o jovem comandante da guarda amanheceu morto de amor junto à sua janela




Foto tirada por Patrick Curry.