sábado

Capítulo VII




      EM MAIO terminou a guerra. Duas semanas antes que o governo o anunciasse oficialmente, num decreto altissonante que prometia um castigo sem piedade para os promotores da rebelião, o Coronel Aureliano Buendía caiu prisioneiro, quando já estava quase alcançando a fronteira ocidental disfarçado de feiticeiro indígena. Dos vinte e um homens que o seguiram na guerra, quatorze morreram em combate, seis estavam feridos, e apenas um o acompanhava no momento da derrota final: o Coronel Gerineldo Márquez. A notícia da captura foi dada em Macondo por uma proclamação extraordinária. “Está vivo”, informou Úrsula ao marido. “Roguemos a Deus para que os seus inimigos tenham clemência.” Depois de três dias de choro, numa tarde em que batia um doce de leite na cozinha, ouviu claramente a voz de seu filho muito perto do ouvido. “E Aureliano”, gritou, correndo para o castanheiro para dar a notícia ao marido. “Não sei como foi o milagre, mas está vivo e vamos vê-lo muito brevemente. Deu o fato como mais do que certo. Fez lavar o chão da casa e mudar a posição dos móveis. Uma semana depois, um rumor sem origem, que não seria estabelecido pelo decreto, confirmou dramaticamente o presságio. O Coronel Aureliano Buendía havia sido condenado à morte e a sentença seria executada em Macondo, para escarmento da população. Numa segunda-feira, às dez e vinte da manhã, Amaranta estava vestindo Aureliano José, quando percebeu um tropel longínquo e um toque de cometa, um segundo antes de que Úrsula irrompesse no quarto com um grito: “Já o estão trazendo.” A tropa lutava para dominar a coronhadas a multidão incontida. Úrsula e Amaranta correram até a esquina, abrindo passagem aos empurrões, e então o viram. Parecia um mendigo. Tinha a roupa rasgada, o cabelo e a barba emaranhados, e estava descalço. Andava sem sentir a poeira escaldante, com as mãos amarradas nas costas com uma corda que um oficial a cavalo sustinha na cabeça da sela. Perto dele, também roto e derrotado, o Coronel Gerineldo Márquez era levado. Não estavam tristes. Pareciam mais como que perturbados pela multidão, que gritava para a tropa todo tipo de impropérios.
      — Meu filho! — gritou Úrsula no meio da algazarra, e deu uma bofetada no soldado que tentou detê-la. O cavalo do oficial empinou. Então o Coronel Aureliano Buendía se deteve, trêmulo, afastou os braços de sua mãe e fixou-lhe nos olhos um olhar duro.
      — Vá para casa, mamãe — disse. — Peça permissão às autoridades e venha me ver na prisão.
      Olhou para Amaranta, que permanecia indecisa dois passos atrás de Úrsula, e sorriu para ela ao perguntar: “O que foi que aconteceu com a sua mão?” Amaranta levantou a mão com a atadura negra. “Uma queimadura”, disse, e afastou Úrsula para que não fosse atropelada pelos cavalos. A tropa disparou. Uma guarda especial rodeou os prisioneiros e os levou rapidamente para o quartel.
      Ao entardecer, Úrsula visitou o Coronel Aureliano Buendía na prisão. Tinha tentado conseguir a permissão através do Sr. Apolinar Moscote, mas este perdera toda a autoridade diante da onipotência dos militares. O Padre Nicanor estava prostrado com uma febre hepática. Os pais do Coronel Gerineldo Márquez, que não estava condenado à morte, tinham tentado vê-lo e foram expulsos a coronhadas. Diante da impossibilidade de conseguir intermediários, convencida de que o filho seria fuzilado ao amanhecer, Úrsula fez um embrulho com as coisas que queria levar para ele e foi sozinha ao quartel.
      — Sou a mãe do Coronel Aureliano Buendía —anunciou-se.
      Os sentinelas lhe impediram a passagem. “Vou entrar de qualquer maneira”,Úrsula advertiu. “De modo que, se têm ordens de disparar, comecem logo.” Afastou um deles com um empurrão e entrou na antiga sala de aula, onde um grupo de soldados nus lubrificava as suas armas. Um oficial de uniforme de campanha, queimado de sol, com óculos de lentes muito grossas e gestos cerimoniosos, fez aos sentinelas um sinal para que se retirassem.
      — Sou a mãe do Coronel Aureliano Buendía — Úrsula repetiu.
      — A senhora estará querendo dizer — corrigiu o oficial com um sorriso amável — que é a senhora mãe do Sr. Aureliano Buendía.
      Úrsula reconheceu no seu modo de falar rebuscado a cadência lânguida da gente do páramo, os janotas.
      — Como queira, senhor — admitiu — desde que me permita vê-lo.
      Havia ordens superiores de não permitir visitas aos condenados à morte, mas o oficial assumiu a responsabilidade de lhe conceder uma entrevista de quinze minutos. Úrsula mostrou a ele o que trazia no embrulho: uma muda de roupa limpa, as botinas que o seu filho usara no casamento, e o doce de leite que guardava para ele desde o dia em que pressentiu o seu regresso. Encontrou o Coronel Aureliano Buendía no quarto dos condenados à morte, estendido num catre e com os braços abertos, porque tinha as axilas cheias de furúnculos. Haviam-lhe permitido fazer a barba. O bigode grosso de pontas torcidas acentuava a angulosidade das maçãs do rosto. Pareceu a Úrsula que estava mais pálido que quando fora embora, um pouco mais alto e mais solitário do que nunca. Sabia dos pormenores da casa: o suicídio de Pietro Crespi, as arbitrariedades e o fuzilamento de Arcadio, a impavidez de José Arcadio Buendía debaixo do castanheiro. Sabia que Amaranta tinha consagrado a sua viuvez de virgem à criação de Aureliano José, e que este começava a dar mostras de muito bom juízo e lia e escrevia ao mesmo tempo que aprendia a falar. A partir do momento em que entrou no quarto, Úrsula se sentiu inibida pela maturidade do filho, pela sua aura de domínio, pelo resplendor de autoridade que irradiava a sua pele. Surpreendeu-se de que estivesse tão bem informado. “A senhora já sabe que eu sou adivinho”, ele brincou. E acrescentou seriamente: “Esta manhã, quando me trouxeram, tive a impressão de que já havia passado por tudo isto.” Na verdade, enquanto a multidão rugia à sua passagem, ele estava concentrado nos seus pensamentos, assombrado da forma como as pessoas tinham envelhecido em um ano. As amendoeiras tinham as folhas gastas. As casas pintadas de azul, pintadas em seguida de vermelho e logo pintadas novamente de azul, acabaram por adquirir uma coloração indefinível.
      — O que é que você esperava? — Úrsula suspirou. — O tempo passa.
      — Ë verdade — admitiu Aureliano — mas não tanto.
      Deste modo, a visita tanto tempo esperada, para a qual ambos haviam preparado as perguntas e inclusive previsto as respostas, foi outra vez a conversa cotidiana de sempre. Quando o sentinela anunciou o fim da entrevista, Aureliano tirou de debaixo da esteira do catre um rolo de papéis suados. Eram os seus versos. Os inspirados por Remedios, que tinha levado consigo quando fora embora, e os escritos depois, nas pausas ocasionais da guerra. “Prometa que ninguém vai ler isto”, disse. “Esta noite mesmo acenda o forno com eles.” Úrsula prometeu e aprumou o corpo para lhe dar um beijo de despedida.
      — Trouxe um revólver para você — murmurou.
      O Coronel Aureliano Buendía verificou que o sentinela não estava por perto. “Não me serve de nada”, respondeu em voz baixa. “Mas deixe comigo, para que não a apanhem na saída.” Úrsula tirou o revólver da combinação e ele o pôs debaixo da esteira do catre. “E agora não se despeça”, concluiu com uma firmeza calma. “Não suplique a ninguém nem se rebaixe diante de ninguém. Faça de conta que já me fuzilara há muito tempo.” Úrsula mordeu os lábios para não chorar.
      — Ponha pedras quentes nos furúnculos — disse.
      Deu meia-volta e saiu do quarto. O Coronel Aureliano Buendía permaneceu de pé, pensativo, até que a porta se fechou. Então voltou a se deitar com os braços abertos. Desde o princípio da adolescência, quando começou a ser consciente dos seus presságios, pensava que a morte se havia de anunciar com um sinal definido, inequívoco, irrevogável, mas faltavam poucas horas para ele morrer, e o sinal não aparecia. Certa ocasião uma mulher muito bonita entrou no seu acampamento de Tucurinca e pediu aos sentinelas que lhe permitissem vê-lo. Deixaram-na passar, porque conheciam o fanatismo de algumas mães que enviavam as filhas ao quarto dos guerreiros mais notáveis, conforme elas mesmas diziam, para melhorar a raça. O Coronel Aureliano Buendía estava naquela noite terminando o poema do homem que se extraviara na chuva, quando a moça entrou no quarto. Ele lhe deu as costas para colocar a folha na gaveta com chave onde guardava os seus versos. E então sentiu. Agarrou a pistola na gaveta sem voltar o rosto.
      — Não dispare, por favor — disse.
      Quando se virou com a pistola preparada, a moça tinha abaixado a sua e não sabia o que fazer. Assim tinha conseguido escapar de quatro entre onze emboscadas. Em compensação, alguém que nunca foi capturado entrou certa noite no quartel revolucionário de Manaure e assassinou a punhaladas o seu amigo íntimo, o Coronel Magnífico Visbal, a quem tinha cedido o catre para que suasse uma febre. A poucos metros, dormindo numa rede no mesmo quarto, ele não se deu conta de nada. Eram inúteis os seus esforços para sistematizar os presságios. Apresentavam-se de repente, num clarão de lucidez sobrenatural, como uma convicção absoluta e momentânea, mas inatingível. Algumas vezes eram tão naturais que os identificava como presságios a não ser quando se cumpriam. Outras vezes eram taxativos e não se realizavam. Com freqüência não eram mais que toques vulgares de superstição. Mas quando o condenaram à morte e lhe pediram que expressasse o seu último desejo, não teve a menor dificuldade em identificar o presságio que lhe inspirou a resposta:
      — Peço que a sentença se cumpra em Macondo — disse. O presidente do tribunal não gostou.
      — Não banque o vivo — disse. — E um estratagema para ganhar tempo.
      — Se não cumprirem a sentença, o problema é de vocês — disse o coronel — mas esta é a minha última vontade.
      A partir de então os presságios o abandonaram. No dia em que Úrsula o visitou na prisão, depois de muito pensar, chegou à conclusão de que talvez a morte não se anunciasse daquela vez, porque não dependia do acaso e sim da vontade dos verdugos. Passou a noite em claro, atormentado pela dor dos furúnculos. Pouco antes da alvorada ouviu passos no corredor. “Já vem”, disse para si, e pensou sem motivo em José Arcadio Buendía, que naquele momento estava pensando nele, sob a madrugada lúgubre do castanheiro. Não sentiu medo nem saudade, mas uma raiva intestinal diante da idéia de que aquela morte artificiosa não lhe permitiria saber do final de tantas coisas que deixava sem terminar. A porta se abriu e entrou o sentinela com uma caneca de café. No dia seguinte, à mesma hora, ainda estava como então, irritado com a dor nas axilas, e aconteceu exatamente a mesma coisa. Na quinta-feira dividiu o doce de leite com os sentinelas e pôs a roupa limpa, que ficava apertada para ele, e as botinas de verniz. Ainda na sexta-feira não tinha sido fuzilado.
      Na realidade, não se atreviam a executar a sentença. A rebeldia do povo fez os militares pensarem que o fuzilamento do Coronel Aureliano Buendía traria graves conseqüências políticas, não só em Macondo, mas em todo o âmbito do pantanal, de modo que consultaram as autoridades da capital da província. Na noite de sábado, enquanto esperavam a resposta, o Capitão Roque Carnicero foi com os outros oficiais à taberna de Catarino. Apenas uma mulher, quase pressionada por ameaças, atreveu-se a levá-lo ao quarto. “Elas não querem se deitar com um homem que sabem que vai morrer”, confessou ela. “Ninguém sabe como vai ser, mas todo mundo anda dizendo que o oficial que fuzilar o Coronel Aureliano Buendía, e todos os soldados do pelotão, um por um, serão assassinados sem escapatória, mais cedo ou mais tarde, mesmo que se escondam no fim do mundo.” O Capitão Roque Carnicero comentou o fato com os outros oficiais, e estes comentaram com os seus superiores. No domingo, ainda que ninguém tivesse re velado com franqueza, ainda que nenhum ato militar tivesse perturbado a calma tensa daqueles dias, todo o povo sabia que os oficiais estavam dispostos a escapar, sob toda espécie de pretextos, à responsabilidade da execução. No correio de segunda-feira chegou a ordem oficial: a execução deveria se realizar ao fim de vinte e quatro horas. Naquela noite os oficiais colocaram num gorro sete papeizinhos com os seus nomes, e o inclemente destino do Capitão Roque Carnicero apontou para ele com o papelzinho premiado. “O meu azar não escolhe a ocasião”, disse ele com profunda amargura. “Nasci filho da puta e morro filho da puta.” As cinco da madrugada escolheu o pelotão por sorteio, formou-o no pátio, e acordou o condenado com uma frase premonitória:
      — Vamos, Buendía — disse a ele. — Chegou a nossa hora.
      — Então era isto — respondeu o coronel. — Estava sonhando que os furúnculos tinham arrebentado.
      Rebeca Buendía se levantava às três da madrugada desde que soube que Aureliano seria fuzilado. Ficava no quarto no escuro, vigiando pela janela entreaberta o muro do cemitério enquanto a cama em que estava sentada estremecia com os roncos de José Arcadio. Esperou a semana inteira com a mesma obstinação secreta com que em outra época esperava as cartas de Pietro Crespi. “Não vão fuzilar aqui”, dizia-lhe José Arcadio. “Vão fuzilá-lo à meia-noite no quartel, para que ninguém saiba quem formou o pelotão, e o enterram lá mesmo.” Rebeca continuou esperando. “São tão burros que vão fuzilar aqui”, dizia. Tão certa estava que tinha previsto a forma como abriria a porta para dar-lhe adeus com a mão. “Não vão trazê-lo pela rua”, insistia José Arcadio, “só com seis soldados assustados, sabendo que o povo está disposto a tudo.” Indiferente à lógica do marido, Rebeca continuava na janela.
      — Você vai ver já que são burros a esse ponto.
      Na terça-feira, às cinco da madrugada, José Arcadio tinha tomado café e soltado os cachorros, quando Rebeca fechou a janela e se agarrou na cabeceira da cama para não cair. “Já o trazem”, suspirou. “Como está bonito.” José Arcadio chegou-se à janela, e o viu, trêmulo na claridade da alvorada, com umas calças que tinham sido suas na juventude. Estava de costas para o muro e tinha as mãos apoiadas na cintura porque os quistos ardentes das axilas impediam-no de abaixar os braços. “O sujeito se amola tanto”, murmurava o Coronel Aureliano Buendía. “O sujeito se amola tanto para depois ser morto por seis maricas sem poder fazer nada.” Repetia isso com tanta raiva que quase parecia fervor, e o Capitão Roque Carnicero se comoveu porque pensou que ele estava rezando. Quando o pelotão apontou para ele, a raiva se tinha materializado numa substância viscosa e amarga que lhe adormeceu a língua e o obrigou a fechar os olhos. Então desapareceu o resplendor de alumínio do amanhecer e ele voltou a ver-se a si mesmo, bem garoto, de calças curtas e gravata-borboleta, e viu seu pai numa tarde esplêndida conduzindo-o para o interior da tenda, e viu o gelo. Quando ouviu o grito, pensou que era a ordem final do pelotão. Abriu os olhos com uma curiosidade de calafrio, esperando chocar-se com a trajetória incandescente dos projéteis, mas só encontrou o Capitão Roque Carnicero com as mãos para o alto, e José Arcadio atravessando a rua com a sua espingarda pavorosa pronta para disparar.
      — Não abra fogo — disse o capitão a José Arcadio. — O senhor vem a mando da Divina Providência.
      Ali começou outra guerra. O Capitão Roque Carnicero e os seus seis homens foram com o Coronel Aureliano Buendia libertar o general revolucionário Victorio Medina, condenado à morte em Riohacha. Pensaram ganhar tempo atravessando a serra pelo caminho que seguira José Arcadio Buendía para fundar Macondo, mas antes de uma semana se convenceram de que era uma empresa impossível. De modo que tiveram que percorrer o perigoso caminho das encostas sem mais munição que a do pelotão de fuzilamento. Acampavam perto das aldeias, e um deles, com um peixinho de ouro na mão, entrava disfarçado em pleno dia e estabelecia contato com os liberais em repouso, que na manhã seguinte saíam para caçar e não voltavam nunca. Quando avistaram Riohacha numa curva da serra, o General Victorio Medina já havia sido fuzilado. Os homens do Coronel Aureliano Buendía o proclamaram chefe das forças revolucionárias do litoral do Caribe, com a patente de general. Ele assumiu o cargo mas recusou a patente e se impôs a condição de não aceitá-la enquanto não derrubasse o regime conservador. Ao fim de três meses tinham conseguido armar mais de mil homens, mas foram exterminados. Os sobreviventes alcançaram a fronteira oriental. Na vez seguinte em que se soube deles, tinham desembarcado no Cabo da Vela, procedentes do arquipélago das Antilhas e uma comunicação do governo, divulgada pelo telégrafo e publicada em manchetes jubilosas por todo o país, anunciou a morte do Coronel Aureliano Buendía. Mas poucos dias depois, um telegrama circular que quase alcançou o anterior anunciava outra rebelião nas planícies do Sul. Assim começou a lenda da ubiqüidade do Coronel Aureliano Buendía. Informações simultâneas e contraditórias declaravam-no vitorioso em Villanueva, derrotado em Guacamayal, devorado pelos índios Motilones, morto numa aldeia do pantanal e outra vez sublevado em Urumita. Os dirigentes liberais, que naquele momento estavam negociando uma participação no Parlamento, apontaram-no como um aventureiro sem representação de partido. O governo nacional assimilou-o à categoria de bandoleiro e pôs a sua cabeça a um prêmio de cinco mil pesos. Ao fim de dezesseis derrotas, o Coronel Aureliano Buendía saiu da Guajira com dois mil indígenas bem armados, e a guarnição surpreendida durante o sono abandonou Riohacha. Ali instituiu o seu quartel-general, e proclamou a guerra total contra o regime. A primeira notificação que recebeu do governo foi a ameaça de fuzilar o Coronel Gerineldo Márquez ao fim de quarenta e oito horas, se não se retirasse com as suas forcas até a fronteira oriental. O Coronel Roque Carnicero, que era então o chefe do seu estado-maior, entregou-lhe o telegrama com um gesto de consternação, mas ele o leu com imprevisível alegria.
      — Que bom! — exclamou. — Já temos telégrafo em Macondo.
      Sua resposta foi taxativa. Dentro de três meses esperava estabelecer o seu quartel-general em Macondo. Se então não encontrasse vivo o Coronel Gerineldo Márquez, fuzilaria sumariamente toda a oficialidade que estivesse prisioneira no momento, começando pelos generais, e baixaria ordens aos seus subordinados para que procedessem de igual forma até o final da guerra. Três meses depois, quando entrou vitorioso em Macondo, o primeiro abraço que recebeu na estrada do pantanal foi o do Coronel Gerineldo Márquez.
      A casa estava cheia de crianças. Úrsula tinha acolhido Santa Sofía de la Piedad, com a filha mais velha e um par de gêmeos que nasceram cinco meses depois do fuzilamento de Arcadio. Contra a última vontade do fuzilado, batizou a menina com o nome de Remedios. “Estou certa de que foi isso o que Arcadio quis dizer”, alegou. “Não vamos chamá-la de Úrsula, porque se sofre muito com esse nome.” Os gêmeos se chamaram José Arcadio Segundo e Aureliano Segundo. Amaranta tomou o encargo de cuidar de todos. Colocou cadeirinhas de madeira na sala, e instituiu um jardim de infância com outras crianças de famílias vizinhas. Quando o Coronel Aureliano Buendía regressou, entre estampidos de foguetes e repiques de sinos, um coro infantil lhe deu as boas-vindas na casa. Aureliano José, comprido como o avô, vestido de oficial revolucionário, rendeu-lhe honras militares.
      Nem todas as notícias eram boas. Um ano depois da fuga do Coronel Aureliano Buendía, José Arcadio e Rebeca foram viver na casa construída por Arcadio. Ninguém soube da sua intervenção para impedir o fuzilamento. Na casa nova, situada no melhor lugar da praça, à sombra de uma amendoeira privilegiada com três ninhos de pintassilgos com uma porta grande para as visitas e quatro janelas para a luz, estabeleceram um lar aprazível. As antigas amigas de Rebeca, entre elas quatro irmãs Moscote que continuavam solteiras, reiniciaram as sessões de bordado, interrompidas anos antes na varanda das begônias. José Arcadio continuou desfrutando as terras usurpadas, cujos títulos foram reconhecidos pelo Governo Conservador. Todas as tardes era visto voltando a cavalo, com os seus cães monteses e a sua espingarda de dois canos, e uma fieira de coelhos pendurados na sela. Uma tarde de setembro, diante da ameaça de uma tempestade, voltou para casa mais cedo que de costume. Cumprimentou Rebeca na copa, amarrou os cachorros no quintal, pendurou os coelhos na cozinha, para salgá-los mais tarde, e foi para o quarto trocar de roupa. Rebeca declarou depois que quando o marido entrou no quarto, ela se fechou no banheiro e não percebeu nada. Era uma versão difícil de acreditar, mas não havia outra mais verossímil, e ninguém pôde conceber um motivo para que Rebeca assassinasse o homem que a tinha feito feliz. Este foi talvez o único mistério que nunca se esclareceu em Macondo. Logo que José Arcadio fechou a porta do quarto, o estampido de um tiro retumbou na casa. Um fio de sangue passou por debaixo da porta, atravessou a sala, saiu para a rua, seguiu reto pelas calçadas irregulares, desceu degraus e subiu pequenos muros, passou de largo pela Rua dos Turcos, dobrou uma esquina à direita e outra à esquerda, virou em ângulo reto diante da casa dos Buendía, passou por debaixo da porta fechada, atravessou a sala de visitas colado às paredes para não manchar os tapetes, continuou pela outra sala, evitou em curva aberta a mesa da copa, avançou pela varanda das begônias e passou sem ser visto por debaixo da cadeira de Amaranta, que dava uma aula de Aritmética a Aureliano José, e se meteu pela despensa e apareceu na cozinha onde Úrsula se dispunha a partir trinta e seis ovos para o pão.
      — Ave Maria Puríssima! — gritou Úrsula.
      Seguiu o fio de sangue em sentido contrário, e em busca da sua origem atravessou a despensa, passou pela varanda das begônias onde Aureliano José cantava que três e três são seis e seis mais três são nove, e atravessou a copa e as salas e seguiu em linha reta pela rua, e em seguida dobrou à direita e depois à esquerda até a Rua dos Turcos, sem se lembrar que ainda trazia vestidos o avental de cozinha e as chinelas caseiras, e saiu para a praça e se meteu pela porta de uma casa onde não havia estado nunca, e empurrou a porta do quarto e quase se sufocou com o cheiro de pólvora queimada, e encontrou José Arcadio caído de bruços no chão, sobre as polainas que acabava de tirar, e viu a fonte original do fio de sangue que já havia deixado de fluir do seu ouvido direito. Não encontraram nenhuma ferida no seu corpo nem puderam localizar a arma. Tampouco foi possível tirar o penetrante cheiro de pólvora do cadáver. Primeiro o lavaram três vezes com sabão e bucha, depois o esfregaram com sal e vinagre, em seguida com cinza e limão, e por último o meteram num tonel de água sanitária e o deixaram repousar seis horas. Tanto o esfregaram que os arabescos da tatuagem já começavam a desbotar. Quando conceberam o recurso desesperado de temperá-lo com pimenta e cominho e folhas de louro e ferva-lo um dia inteiro em fogo lento, já começara a se decompor, e tiveram que enterrá-lo às pressas. Fecharam-no hermeticamente num ataúde especial de dois metros e trinta centímetros de comprimento e um metro e dez centímetros de largura, reforçado por dentro com chapas de ferro e aparafusado com cavilhas de aço, e ainda assim se percebia o cheiro nas ruas por onde passou o enterro. O Padre Nicanor, com o fígado inchado e tenso como um tambor, benzeu-o da cama. Ainda que nos meses seguintes reforçassem a tumba com paredes superpostas e jogassem entre elas cinza socada, serragem e cal viva, o cemitério continuou cheirando a pólvora até muitos anos mais tarde, quando os engenheiros da companhia bananeira recobriram a sepultura com uma couraça de cimento armado. Logo que levaram o cadáver, Rebeca fechou as portas da casa e se enterrou em vida, coberta por uma grossa crosta de desdém que nenhuma tentação terrena conseguiu romper. Saiu à rua numa ocasião, já muito velha, com uns sapatos cor de prata antiga e um chapéu de flores minúsculas, na época em que passou pelo povoado o Judeu Errante e provocou um calor tão intenso que os pássaros varavam as telas das janelas para morrer nos quartos. A última vez que alguém a viu com vida foi quando matou com um tiro certeiro um ladrão que tentou forçar a porta da sua casa.
      Salvo Argénida, sua criada e confidente, ninguém voltou a ter contato com ela desde então.
      Em certa ocasião se soube que escrevia cartas para o Bispo,a quem considerava como primo-irmão seu, mas nunca se disse que tivesse recebido resposta. O povo se esqueceu dela.
      Apesar do seu regresso triunfal, o Coronel Aureliano Buendía não se entusiasmava com as aparências. As tropas do governo abandonavam as praças sem resistência, e isso suscitava na população liberal uma ilusão de vitória que não convinha desmentir, mas os revolucionários sabiam da verdade, e mais que ninguém o Coronel Aureliano Buendía. Embora nesse momento mantivesse mais de cinco mil homens sob as suas ordens e dominasse dois estados do litoral, tinha consciência de estar encurralado contra o mar, e metido numa situação política tão confusa que quando ordenou restaurar a torre da igreja arrebentada por um tiro de canhão do exército, o Padre Nicanor comentou no seu leito de enfermo: “Isto é um disparate: os defensores da fé de Cristo destroem o templo e os maçons mandam consertar.” Procurando uma válvula de escape, passava horas e horas no telégrafo, conferenciando com os chefes de outras praças, e cada vez saía com a impressão mais definida de que a guerra estava estancada.
      Quando se recebiam notícias de novos triunfos liberais, eles eram proclamados com mensagens de júbilo, mas ele media nos mapas o seu verdadeiro alcance, e compreendia que as suas hostes estavam penetrando na selva, se defendendo da malária e dos mosquitos, avançando no sentido contrário ao da realidade. “Estamos perdendo tempo”, queixava-se diante dos seus oficiais. “Estaremos perdendo tempo enquanto os cornos do partido estiverem mendigando um assento no Congresso.” Em noites de insônia, estendido de peito para cima na rede pendurada no mesmo quarto em que esteve condenado à morte, evocava a imagem dos advogados vestidos de negro que abandonavam o palácio presidencial no gelo da madrugada com a gola das casacas levantada até as orelhas, esfregando as mãos, cochichando, refugiando-se nos cafés lúgubres do amanhecer, para especular sobre o que quis dizer o presidente quando disse que sim, ou o que quis dizer quando disse que não, e para supor inclusive o que o presidente estava pensando quando disse uma coisa inteiramente diferente, enquanto ele espantava os mosquitos a trinta e cinco graus de temperatura, sentindo que se aproximava a madrugada temível em que teria que dar aos seus homens a ordem de se atirar ao mar.
      Certa noite de incerteza em que Pilar Ternera cantava no pátio com a tropa, ele pediu que lesse o seu futuro no baralho. “Cuidado com a boca”, foi tudo quanto Pilar Ternera tirou a limpo, depois de estender e embaralhar as cartas três vezes. “Não sei o que quer dizer, mas o sinal é muito claro: cuidado com a boca.” Dois dias depois alguém deu a um ordenança uma caneca de café sem açúcar, e o ordenança a passou a outro, e este a outro, até que chegou de mão em mão ao escritório do Coronel Aureliano Buendía. Não tinha pedido café, mas já que estava ali, o coronel tomou. Levava uma dose de noz vômica suficiente para matar um cavalo. Quando o levaram para casa, estava duro e curvado e tinha a língua partida entre os dentes. Úrsula disputou-o à morte. Depois de lavar-lhe o estômago com vomitórios, envolveu-o em cobertores quentes e lhe deu claras de ovos durante dois dias, até que o corpo estragado recobrou a temperatura normal. No quarto dia estava fora de perigo. Contra a sua vontade, pressionado por Úrsula e os oficiais, permaneceu na cama mais uma semana. Só então soube que não tinham queimado os seus versos. “Não quis me precipitar”, explicou Úrsula. “Naquela noite, quando ia acender o forno, achei que era melhor esperar que trouxessem o cadáver.” Na neblina da convalescença, rodeado pelas empoeiradas bonecas de Remedios, o Coronel Aureliano Buendía evocou na leitura dos seus versos os instantes decisivos da sua existência. Voltou a escrever. Durante muitas horas, ao lado dos sobressaltos de uma guerra sem futuro, traduziu em versos rimados as suas experiências na borda da morte. Então os seus pensamentos se fizeram tão claros que os pôde examinar pelo direito e pelo avesso. Uma noite perguntou ao Coronel Gerineldo Márquez:
      — Diga uma coisa, compadre: por que você está brigando?
      — Por que há de ser, compadre. — respondeu o Coronel Gerineldo Márquez — pelo grande Partido Liberal.
      — Feliz é você que sabe disso — respondeu ele. — Eu, de minha parte, só agora percebo que estou brigando por orgulho.
      — Isso é ruim — disse o Coronel Gerineldo Márquez.
      O Coronel Aureliano Buendía se divertiu com o seu sobressalto. “Naturalmente”, disse. “Mas em todo caso, é melhor isso que não saber por que se briga.” Olhou-o nos olhos, e acrescentou sorrindo:
      — Ou brigar como você, por alguma coisa que não significa nada para ninguém.
      Seu orgulho o havia impedido de fazer contatos com os grupos armados do interior do país enquanto os dirigentes do partido não retificassem em público a sua declaração de que era um bandoleiro. Sabia, entretanto, que logo que deixasse de lado esses escrúpulos quebraria o círculo vicioso da guerra. A convalescença permitiu-lhe refletir. Então conseguiu que Úrsula lhe desse o resto da herança enterrada e as suas vultosas economias: nomeou o Coronel Gerineldo Márquez chefe civil e militar de Macondo, e foi estabelecer contato com os grupos rebeldes do interior.
      O Coronel Gerineldo Márquez não só era o homem de mais confiança do Coronel Aureliano Buendía, mas também era recebido por Úrsula como se fosse um membro da família. Frágil, tímido, de uma boa educação natural, estava entretanto melhor capacitado para a guerra que para o governo. Os seus assessores políticos o enredavam com facilidade em labirintos teóricos. Mas conseguiu impor em Macondo o ambiente de paz rural com que sonhava o Coronel Aureliano Buendía para morrer de velho, fabricando peixinhos de ouro.
      Embora vivesse na casa de seus pais, almoçava na de Úrsula duas ou três vezes por semana. Iniciou Aureliano José no manejo das armas de fogo, deu-lhe uma instrução militar prematura e durante vários meses levou-o para viver no quartel, com o consentimento de Úrsula, para que se fosse fazendo homem. Muitos anos antes, sendo ainda quase um menino, Gerineldo Márquez havia declarado o seu amor a Amaranta. Ela estava na época tão iludida com a sua paixão solitária por Pietro Crespi que se riu dele. Gerineldo Márquez esperou. Certa vez enviou da prisão um bilhetinho a Amaranta, pedindo o favor de bordar uma dúzia de lenços de cambraia com as iniciais do seu pai. Mandou-lhe o dinheiro. Ao fim de uma semana, Amaranta levou-lhe na prisão a dúzia de lenços bordados junto com o dinheiro, e ficaram várias horas falando do passado. “Quando eu sair daqui me caso com você”, disse Gerineldo Márquez ao se despedir. Amaranta riu, mas continuou pensando nele enquanto ensinava as crianças a ler, e desejou reviver para ele a sua paixão juvenil por Pietro Crespi. Aos sábados, dia de visita aos presos, passava pela casa dos pais de Gerineldo Márquez e os acompanhava à prisão. Um desses sábados, Úrsula se surpreendeu ao vê-la na cozinha, esperando que saíssem os biscoitos do forno para escolher os melhores e embrulhá-los num guardanapo que bordara especialmente para a ocasião.
      — Case com ele — disse a ela. — Dificilmente você encontrará outro homem como esse. Amaranta fingiu uma reação de desprezo.
      — Não preciso de andar caçando homens — respondeu.
      — Levo estes biscoitos para Gerineldo porque me dá pena saber que mais cedo ou mais tarde vão fuzilá-lo.
      Falou isso sem pensar, mas foi nessa época que o governo tornou pública a ameaça de fuzilar o Coronel Gerineldo Márquez se as forças rebeldes não entregassem Riohacha. As visitas foram suspensas. Amaranta se fechou para chorar, angustiada por um sentimento de culpa semelhante ao que a atormentara quando da morte de Remedios, como se novamente tivessem sido as suas palavras irrefletidas as responsáveis por uma morte. Sua mãe a consolou. Assegurou-lhe que o Coronel Aureliano Buendía faria alguma coisa para impedir o fuzilamento, e prometeu que ela mesma se encarregaria de atrair Gerineldo Márquez, quando terminasse a guerra. Cumpriu a promessa antes do prazo previsto. Quando Gerineldo Márquez voltou para casa investido da sua nova dignidade de chefe civil e militar, recebeu-o como a um filho, concebeu refinadas gentilezas para retê-lo, e rogou com todo o ânimo do seu coração que recordasse o seu propósito de se casar com Amaranta. As suas súplicas pareciam certeiras. Nos dias em que ia almoçar lá, o Coronel Gerineldo Márquez passava a tarde na varanda das begônias jogando xadrez chinês com Amaranta. Úrsula levava para eles o café com leite e biscoitos e tomava conta das crianças para que não os incomodassem. Amaranta, na realidade, se esforçava por acender no seu coração as cinzas esquecidas da sua paixão juvenil. Com uma ansiedade que chegou a ser intolerável, esperava os dias de almoço, as tardes de xadrez chinês, e o tempo ia voando na companhia daquele guerreiro de nome nostálgico, cujos dedos tremiam imperceptivelmente ao mover as peças. Mas no dia em que o Coronel Gerineldo Márquez lhe reiterou a sua vontade de casar, ela o recusou.
      — Não vou me casar com ninguém — disse — e ainda menos com você, que ama tanto a Aureliano que vai casar comigo porque não pode casar com ele.
      O Coronel Gerineldo Márquez era um homem paciente. “Voltarei a insistir”, disse. “Mais cedo ou mais tarde ela se convence.” Continuou freqüentando a casa. Trancada no quarto, remoendo um pranto secreto, Amaranta tapava os ouvidos com os dedos para não escutar a voz do pretendente que contava a Úrsula as últimas notícias da guerra, e apesar de estar morrendo de vontade de vê-lo, teve forças para não sair ao seu encontro.
      O Coronel Aureliano Buendía dispunha então de tempo para enviar de quinze em quinze dias um informe pormenorizado a Macondo. Mas apenas uma vez, quase oito meses depois de ter partido, Úrsula lhe escreveu. Um emissário especial trouxe em casa um envelope lacrado, dentro do qual havia um papel escrito com a caligrafia preciosa do coronel: Tomem muito cuidado com papai porque ele vai morrer. Úrsula se alarmou. “Se Aureliano está dizendo, Aureliano sabe”, disse. E pediu ajuda para levar José Arcadio Buendía para o seu quarto. Não só estava tão pesado como sempre, mas também na sua prolongada estadia debaixo do castanheiro tinha desenvolvido a faculdade de aumentar de peso voluntariamente, a ponto de sete homens não poderem com ele e terem de levá-lo arrastado para a cama. Um bafo de fungos novos, de orelha-de-pau, de antiga e concentrada intempérie impregnou o ar do quarto quando começou a respirá-lo o velho colossal macerado pelo sol e pela chuva. No dia seguinte não amanheceu na cama. Depois de procurá-lo por todos os quartos, Úrsula o encontrou outra vez debaixo do castanheiro. Então o amarraram na cama. Apesar da sua força intacta, José Arcadio Buendía não estava em condições de lutar. Tanto fazia para ele. Se voltou ao castanheiro não foi por vontade, mas por um costume do corpo.Úrsula cuidava dele, dava-lhe de comer, levava-lhe notícias de Aureliano. Mas na realidade, a única pessoa com quem ele podia ter contato, há muito tempo já, era Prudencio Aguilar. Já quase pulverizado pela profunda decrepitude da morte, Prudencio Aguilar vinha duas vezes por dia conversar com ele. Falavam de galos. Prometiam fazer uma criação de animais magníficos, não tanto para desfrutar umas vitórias que no momento já não lhes fariam falta, mas para ter alguma coisa com que se distrair nos tediosos domingos da morte. Era Prudencio Aguilar quem o limpava, quem lhe dava de comer e quem lhe levava notícias esplêndidas de um desconhecido que se chamava Aureliano e que era coronel na guerra. Quando só, ele se consolava com o sonho dos quartos infinitos. Sonhava que se levantava da cama, abria a porta e passava para outro quarto igual, com a mesma cama de cabeceira de ferro batido, a mesma poltrona de vime e o mesmo quadrinho da Virgem dos Remedios na parede do fundo. Desse quarto passava para outro exatamente igual, cuja porta abria para passar para outro exatamente igual, e em seguida para outro exatamente igual, até o infinito. Gostava de ir de quarto em quarto, como numa galeria de espelhos paralelos, até que Prudencio Aguilar lhe tocava o ombro. Então voltava de quarto em quarto, acordando para trás, percorrendo o caminho inverso, e encontrava Prudencio Aguilar no quarto da realidade. Uma noite, porém, duas semanas depois de o terem levado para a cama, Prudencio Aguilar tocou-lhe o ombro num quarto intermediário, e ele ficou ali para sempre, pensando que era o quarto real. Na manhã seguinte, Úrsula lhe levava o café quando viu se aproximar um homem pelo corredor. Era pequeno e atarracado, com um terno de fazenda negra e um chapéu também negro, enorme, enterrado até os olhos taciturnos. “Meu Deus”, pensou Úrsula. “Eu teria jurado que era Melquíades.” Era Cataure, o irmão de Visitación, que havia abandonado a casa fugindo da peste da insônia, e de quem nunca se tornou a ter notícia. Visitación perguntou-lhe por que tinha voltado, e ele respondeu na sua língua solene:
      — Vim ao funeral do rei.
      Então entraram no quarto de José Arcadio Buendía, sacudiram-no com toda a força, gritaram-lhe ao ouvido, puseram um espelho diante das fossas nasais, mas não puderam despertá-lo. Pouco depois, quando o carpinteiro tomava as medidas para o ataúde, viram pela janela que estava caindo uma chuvinha de minúsculas flores amarelas. Caíram por toda a noite sobre o povoado, numa tempestade silenciosa, e cobriram os tetos e taparam as portas, e sufocaram os animais que dormiam ao relento. Tantas flores caíram do céu que as ruas amanheceram atapetadas por uma colcha compacta, e eles tiveram que abrir caminho com pás e ancinhos para que o enterro pudesse passar.





Foto tirada por Patrick Curry.