DESLUMBRADO com tantas e tão maravilhosas invenções, o povo de Macondo não sabia por onde começar a se espantar. Passavam a noite em claro contemplando as pálidas lâmpadas elétricas alimentadas pelo gerador que Aureliano Triste trouxera na segunda viagem do trem e a cujo obsessivo tum-tum custou tempo e trabalho se acostumar. Indignaram-se com as imagens vivas que o próspero comerciante Sr. Bruno Crespi projetava no teatro de bilheterias que imitavam bocas de leão, porque um personagem morto e enterrado num filme, e por cuja desgraça haviam derramado lágrimas de tristeza, reapareceu vivo e transformado em árabe no filme seguinte.
  O público, que pagava dois centavos para partilhar das vicissitudes dos personagens, não pôde suportar aquele logro inaudito e quebrou as poltronas. O alcaide, por insistência do Sr. Bruno Crespi, explicou num decreto que o cinema era uma máquina de ilusão que não merecia os arroubos passionais do público. Diante da desalentadora explicação, muitos acharam que tinham sido vítimas de um novo e aparatoso negócio de cigano, de modo que optaram por não voltar ao cinema, considerando que já tinham o suficiente com os seus próprios sofrimentos para chorar por infelicidades fingidas de seres imaginários. Alguma coisa de semelhante aconteceu com os gramofones de manivela que as alegres matronas da França trouxeram, em substituição aos antiquados realejos, e que tão profundamente afetaram por algum tempo os interesses da banda de música. No princípio, a curiosidade multiplicou a clientela da rua proibida, e soube-se até de senhoras respeitáveis que se disfarçaram de malandro para observar de perto a novidade do gramofone, mas o observaram tanto e de tão perto que muito rapidamente chegaram à conclusão de que não era um moinho de brinquedo, como todos pensavam e como as matronas diziam, mas um truque mecânico que não podia se comparar com uma coisa tão comovedora, tão humana e tão cheia de verdade cotidiana como uma banda de música. Foi uma desilusão tão séria que quando os gramofones se popularizaram, a ponto de haver um em cada casa, não foram encarados como objetos para a diversão dos adultos, mas como uma coisa boa para as crianças desmontarem. Em compensação, quando alguém do povoado teve a oportunidade de comprovar a crua realidade do telefone instalado na estação da estrada de ferro, que por causa da manivela se considerava como uma versão rudimentar do gramofone, até os mais incrédulos se desconcertaram. Era como se Deus tivesse resolvido pôr à prova toda a capacidade de assombro e mantivesse os habitantes de Macondo num permanente vaivém do alvoroço ao desencanto, da dúvida à revelação, ao extremo de já ninguém poder saber com certeza onde estavam os limites da realidade. Era uma intrincada maçaroca de verdades e miragens, que provocou convulsões de impaciência no espectro de José Arcadio Buendía debaixo do castanheiro e o obrigou a vagar toda a casa mesmo em pleno dia. Desde que a estrada de ferro foi inaugurada oficialmente e o trem começou a chegar com regularidade toda quarta-feira às onze, e que se construiu a primitiva estação de madeira com um escritório, o telefone e um guichê para vender as passagens, eram vistos nas ruas de Macondo homens e mulheres que fingiam atitudes comuns e correntes, mas que na verdade pareciam gente de circo. Num povo escaldado pela praga dos ciganos, não havia um futuro para aqueles equilibristas do comércio ambulante que com o mesmo desembaraço ofereciam uma panela de apito e um regime de vida para a salvação da alma no sétimo dia; mas entre os que se deixavam convencer pelo cansaço e os incautos de sempre, faziam excelentes negócios. Entre essas criaturas de farândola, com culotes e polainas, chapéu de cortiça, óculos com armação de aço, olhos de topázio e pele galo fino, numa das tantas quartas-feiras, chegou a Macondo e almoçou em casa o rechonchudo e sorridente Mr. Herbert.
  Ninguém o distinguiu na mesa, enquanto não se comeu o primeiro cacho de bananas. Aureliano Segundo encontrara-o por acaso, protestando num espanhol trabalhoso porque havia um quarto livre no Hotel de Jacob e, como fazia com freqüência com muitos forasteiros, levou-o para casa. Tinha um negócio de balões de sondagem, que levara à metade do mundo com lucros excelentes, mas não conseguira fazer ninguém subir em Macondo, porque consideravam esse invento como um retrocesso, depois de terem visto e experimentado os tapetes voadores dos ciganos. Partia, pois, no próximo trem.Quando trouxeram para a mesa o salpicado cacho de bananas que costumavam pendurar na sala de jantar durante o almoço, arrancou a primeira fruta sem muito entusiasmo. Mas continuou comendo enquanto falava, saboreando, mastigando, mais com distração de sábio do que com deleite de comedor, mas ao terminar o primeiro cacho suplicou que trouxessem outro. Então, tirou da caixa de ferramentas sempre trazia consigo um pequeno estojo de aparelhos óticos. Com a incrédula atenção de um comprador de diamantes, minou meticulosamente uma banana, seccionando as suas partes com um estilete especial, pesando-as numa balancinha de farmacêutico e calculando a sua envergadura com um calibrador de armeiro. Em seguida, tirou da caixa uma série de instrumentos com os quais mediu a temperatura, o grau de umidade da atmosfera e a intensidade da luz. Foi uma cerimônia intrigante que ninguém comeu tranqüilo, esperando que Herbert emitisse por fim um juízo revelador, mas ele não disse nada que permitisse vislumbrar as suas intenções.
  Nos dias seguintes foi visto com uma rede e um cestinho caçando borboletas nos arredores do povoado. Na quarta-feira, chegou um grupo de engenheiros, agrônomos, hidrólogos, topógrafos e agrimensores que, durante várias semanas, exploraram os mesmos lugares onde Mr. Herbert caçava borboletas.Mais tarde chegou o Sr. Jack Brown, num vagão suplementar que haviam enganchado no rabo do trem amarelo e era todo laminado de prata, com poltronas de veludo episcopal e teto de vidros azuis. No vagão especial chegaram também, voejando em torno do Sr. Brown, os solenes advogados vestidos de negro que em outra época tinham seguido por todas as partes o Coronel Aureliano Buendía, e isto fez o povo pensar que os agrônomos, hidrólogos, topógrafos e agrimensores, assim como Mr. Herbert com os seus balões de sondagem e as suas borboletas coloridas e o Sr. Brown com o seu mausoléu sobre rodas e os seus ferozes cães policiais, tinham coisa a ver com a guerra. Não houve, entretanto, muito para pensar no assunto, porque os desconfiados habitantes de Macondo mal começavam a se perguntar que diabo era o que estava acontecendo, quando já a aldeia se tinha transformado num acampamento de casas de madeira com tetos de zinco, povoado por forasteiros que chegavam de meio mundo no trem, não só nos bancos e nos estribos mas até no teto vagões. Os americanos, que depois trouxeram as suas mulheres lânguidas com roupas de musselina e grandes chapéus de gaze, fizeram uma aldeia à parte do outro lado da linha do trem, com ruas orladas de palmeiras, casas com janelas com tela metálica, mesinhas brancas nos terraços e ventiladores de pás pendurados no teto, e extensos prados azuis com pavões e codornas. O setor estava cercado por uma rede metálica, como um gigantesco galinheiro eletrificado que nos frescos meses de verão amanhecia negro de andorinhas esturricadas. Ninguém sabia ainda o que desejavam, ou se na verdade seriam apenas filantropos, e já tinham ocasionado um transtorno colossal, muito mais perturbador que o dos antigos ciganos, mas menos transitório e compreensível. Dotados de recursos que em outra época estavam reservados à Divina Providência, modificaram o regime das chuvas, apressaram o ciclo das colheitas, e tiraram o rio de onde sempre esteve e o puseram com as suas pedras brancas e as suas correntes geladas no outro extremo da povoação, atrás do cemitério. Foi nessa ocasião que construíram uma fortaleza de cimento armado sobre a descolorida tumba de José Arcadio, para que o cheiro de pólvora do cadáver não contaminasse as águas. Para os forasteiros que chegavam sem amor, transformaram a rua das carinhosas matronas da França num povoado mais extenso que o outro e, numa quarta-feira gloriosa, trouxeram um trem carregado de putas inverossímeis, fêmeas babilônicas adestradas em recursos imemoriais e providas de toda espécie de ungüentos e dispositivos para estimular os inertes, despertar os tímidos, saciar os vorazes, exaltar os modestos, desenganar os múltiplos e corrigir os solitários. A Rua dos Turcos, enriquecida com luminosos armazéns de comestíveis que expulsaram as velhas feiras de canários-da-terra, regurgitava nas noites de sábado com as multidões de aventureiros que se atropelavam entre as mesas de jogo, os balcões de tiro ao alvo, o beco onde se adivinhava o futuro e se interpretavam os sonhos, e as mesas de frituras e bebidas, que amanheciam no domingo esparramadas pelo chão, entre corpos que às vezes eram de bêbados felizes e quase sempre de curiosos abatidos pelos disparos, murros, navalhadas e garrafadas da briga. Foi uma invasão tão tumultuada e intempestiva que nos primeiros tempos era impossível andar na rua com o estorvo dos móveis e dos baús e com o trançar da carpintaria dos que erguiam as suas casas em qualquer terreno vazio sem a autorização de ninguém, e com o escândalo dos casais que penduravam as suas redes entre as amendoeiras e faziam o amor debaixo dos toldos, em pleno dia e na vista de todo mundo. O único reduto de serenidade foi estabelecido pelos pacíficos negros antilhanos, que construíram uma rua marginal com casas de madeira sobre estacas, em cujas portas se sentavam ao entardecer cantando hinos melancólicos na sua estropiada algaravia. Tantas mudanças ocorreram em tão pouco tempo que oito meses depois da visita de Mr. Herbert os antigos habitantes de Macondo se levantavam cedo para conhecer a sua própria aldeia.
  — Olhem a confusão em que nos metemos — costumava então dizer o Coronel Aureliano Buendía — só por termos convidado um americano para comer banana. Aureliano Segundo, em compensação, não cabia em si de contente com a avalancha de forasteiros. A casa se encheu de repente de hóspedes desconhecidos, de invencíveis farristas mundiais, e foi preciso acrescentar quartos no quintal, aumentar a sala de jantar e trocar a antiga mesa por uma de dezesseis lugares, com louça nova e talheres, e ainda assim foi necessário estabelecer turnos para almoçar. Fernanda teve que engolir os seus escrúpulos e atender como reis os convidados da pior condição, que enlameavam a varanda com as botas, urinavam no jardim, estendiam as suas esteiras em qualquer lugar para fazer a sesta e falavam sem se preocupar com suscetibilidades de damas nem com gestos de cavalheiros. Amaranta se escandalizou de tal modo com a invasão da plebe que voltou a comer na cozinha como nos velhos tempos. O Coronel Aureliano Buendía, convencido de que a maioria dos que entravam para cumprimentá-lo na oficina não o fazia por simpatia ou estima, mas pela curiosidade de conhecer uma relíquia histórica, um fóssil de museu, preferiu se fechar a chave e não voltou a ser visto a não ser em muito poucas ocasiões, sentado na porta da rua. Úrsula, em compensação, mesmo nos tempos em que já arrastava os pés e caminhava tateando nas paredes, experimentava um alvoroço pueril quando se aproximava a chegada do trem. “É preciso fazer carne e peixe”, ordenava às quatro cozinheiras que se estafavam para andar em tempo sob a imperturbável direção de Santa Sofía de la Piedad. “É preciso fazer de tudo”, insistia, “porque nunca se sabe o que os forasteiros querem comer.” O trem chegava na hora de mais calor. Ao almoço, a casa trepidava num alvoroço de mercado e os suarentos comensais, que nem sequer sabiam quem eram os seus anfitriões, irrompiam em tropel para ocupar os melhores lugares da mesa, enquanto as cozinheiras davam encontrões umas nas outras, com as enormes tigelas; de sopa, os alguidares de carnes, as gamelas de legumes, as travessas de arroz, e serviam com a concha inesgotáveis barris de limonada. Era tal a desordem, que Fernanda se exasperava com a idéia de que muitos comessem duas vezes, e em mais de uma ocasião quis se desabafar em impropérios de verdureira, porque algum comensal atônito pedia a conta. Mais de um ano se passara desde a visita de Mr. Herbert e a única coisa que se sabia era que os americanos pretendiam plantar bananeiras na região encantada que José Arcadio Buendía e os seus homens tinham atravessado, procurando a rota das grandes invenções. Outros dois filhos do Coronel Aureliano Buendía, com a sua cruz de cinza na testa, chegaram arrastados por aquele arroto vulcânico e justificaram a sua decisão com uma frase que talvez explicasse as razões de todos.
  — Nós viemos — disseram — porque todo mundo vem. Remedios, a bela, foi a única que permaneceu imune à peste da companhia bananeira. Estacou numa adolescência magnífica, cada vez mais impermeável aos formalismos, mais indiferente à malícia, à desconfiança, feliz num mundo próprio de realidades simples. Não entendia por que as mulheres complicavam a vida com camisetas e anáguas, de modo que coseu uma bata de aniagem que enfiava simplesmente pela cabeça e resolvia sem mais trâmites o problema de se vestir, sem desmanchar a impressão de estar nua, que no seu modo de entender as coisas era a única maneira decente de se estar em casa. Amolaram-na tanto para que cortasse o cabelo cascateante que já batia na barriga da perna e para que fizesse um coque preso com pentes e tranças com laços coloridos que simplesmente raspou a cabeça e fez perucas para os santos. O assombroso do seu instinto simplificador era que quanto mais se desembaraçava da moda procurando a comodidade e quanto mais passava por cima dos convencionalismos em obediência à espontaneidade, mais perturbadora ficava a sua beleza inacreditável e mais provocante o seu comportamento para com os homens. Quando os filhos do Coronel Aureliano Buendía estiveram pela primeira vez em Macondo, Úrsula se lembrou de que levavam nas veias o mesmo sangue da bisneta e estremeceu com o horror esquecido. “Abra bem os olhos”, preveniu-a. “Com qualquer deles, os filhos sairão com rabo de porco.” Ela fez tão pouco-caso da advertência que se vestiu de homem e se espojou na areia para subir no pau-de-sebo e esteve a ponto de ocasionar uma tragédia entre os dezessete primos transtornados pelo insuportável espetáculo. Era por isso que nenhum deles dormia em casa quando visitavam o povoado, e os quatro que tinham ficado viviam às expensas de Úrsula em quartos alugados. Entretanto, Remedios, a bela, teria morrido de rir se tivesse sabido daquela precaução. Até o último instante em que esteve na Terra ignorou que o seu irreparável destino de fêmea perturbadora era uma desgraça cotidiana. Cada vez que aparecia na sala de jantar, contrariando as ordens de Úrsula, causava um pânico de exasperação entre os forasteiros. Era evidente demais que estava inteiramente nua sob a bata grosseira e ninguém podia entender que o seu crânio pelado e perfeito não fosse um desafio e que não fosse uma criminosa provocação o descaro com que descobria as coxas para aliviar o calor e o prazer com que chupava os dedos depois de comer com as mãos. O que nenhum membro da família jamais soube foi que os forasteiros não tardaram a perceber que Remedios, a bela, desprendia um hálito perturbador, uma brisa de tormento que continuava sendo perceptível várias horas depois de ela ter passado. Homens experimentados nos transtornos do amor, vividos no mundo inteiro, afirmavam não ter padecido nunca de uma ansiedade semelhante à que produzia o perfume natural de Remedios, a bela. Na varanda das begônias, na sala de visitas, em qualquer lugar da casa, se podia assinalar o lugar exato onde estivera e o tempo transcorrido desde que deixara de estar. Era um rastro definido, inconfundível, que ninguém da casa podia distinguir porque estava incorporado há muito tempo aos cheiros cotidianos, mas que os forasteiros identificavam imediatamente. Por isso eram eles os únicos que entendiam que o jovem comandante da guarda tivesse morrido de amor e que um cavaleiro vindo de outras terras tivesse caído em desespero. Inconsciente da aura inquietante em que se ria do insuportável estado de íntima calamidade que provocava à sua passagem, Remedios, a bela, tratava os homens sem menor a malícia e acabava de transtorná-los com as suas inocentes complacências. Quando Úrsula conseguiu impor a ordem de que comesse com Amaranta na cozinha, para que os forasteiros não a vissem, ela se sentiu mais cômoda, porque afinal de contas ficava a salvo de qualquer disciplina. Realmente, tanto fazia comer em qualquer lugar, e não em horas fixas, mas de acordo com as alternativas do seu apetite. Às vezes se levantava para almoçar às três da madrugada, dormia o dia inteiro, e passava vários meses com os horários trocados, até que algum incidente casual voltava a pô-la em ordem. Quando as coisas andavam melhor, levantava-se às onze da manhã e se trancava durante duas horas completamente nua no banheiro, matando escorpiões enquanto espantava o denso e prolongado sono. Em seguida, jogava água em si mesma tirando-a da caixa com uma cuia. Era um ato tão prolongado, tão meticuloso, tão rico de situações cerimoniais, quem não a conhecesse bem poderia pensar que estava entregue a uma merecida adoração do seu próprio corpo. Para ela, entretanto, aquele rito solitário carecia de qualquer sensualidade, e era simplesmente uma maneira de matar o tempo enquanto não sentia fome. Um dia, quando começava a se banhar, um forasteiro levantou uma telha do teto e ficou sem respiração diante do tremendo espetáculo de sua nudez. Ela viu os olhos aflitos através das telhas quebradas e não teve nenhuma reação de vergonha, mas sim de preocupação.
  — Cuidado — exclamou. — Você vai cair.
  — Só quero ver você — murmurou o forasteiro.
  — Ah, bem — ela disse. — Mas tenha cuidado que essas telhas estão podres.
  O rosto do forasteiro tinha uma dolorosa expressão de espanto e parecia lutar surdamente contra os seus impulsos primários, para não dissipar a miragem. Remedios, a bela, pensou que ele sofria de medo de que as telhas quebrassem e se banhou mais depressa do que de costume, para que o homem não continuasse em perigo. Enquanto se jogava água, disse a ele que era um problema que o teto estivesse naquele estado, pois ela acreditava que a camada de folhas apodrecidas pela chuva era o que enchia o banheiro de escorpiões. O forasteiro confundiu aquela conversa com uma forma de dissimular a complacência, de modo que quando ela começou a se ensaboar cedeu à tentação de dar um passo adiante.
  — Deixe-me ensaboá-la — murmurou.
  — Agradeço a sua boa intenção — disse ela — mas posso perfeitamente fazê-lo sozinha com as minhas duas mãos.
  — Só as costas — suplicou o forasteiro.
  — Seria um desperdício — ela disse. — Nunca se viu ninguém ensaboar as costas.
  Depois, enquanto se enxugava, o forasteiro implorou com os olhos cheios de lágrimas que se casasse com ele. Ela lhe respondeu sinceramente que nunca se casaria com um homem tão bobo que perdia quase uma hora, e até ficava sem almoçar, só para ver uma mulher tomar banho. Por fim, quando vestiu a bata, o homem não pôde suportar a comprovação de que realmente não usava nada embaixo, como todo mundo suspeitava, e se sentiu marcado para sempre com o ferro ardente daquele segredo. Então arrancou mais duas telhas para se atirar no interior do banheiro.
  — É muito alto! — ela o preveniu assustada. — Você vai se matar!
  As telhas apodrecidas se despedaçaram num estrondo de desastre e o homem mal conseguiu lançar um grito de terror e fraturou o crânio e morreu sem agonia no chão de cimento. Os forasteiros que ouviram o barulho na sala de jantar e se apressaram em levar o cadáver perceberam na sua pele o sufocante cheiro de Remedios, a bela. Estava tão entranhado no corpo que as rachaduras do crânio não emanavam sangue e sim um óleo ambarino impregnado daquele perfume secreto, e então compreenderam que o cheiro de Remedios, a bela, continuava torturando os homens além da morte, até a poeira dos ossos. Entretanto, não relacionaram aquele acidente de horror com os outros dois homens que haviam morrido por Remedios, a bela. Faltava ainda uma vítima para que os forasteiros e muitos dos antigos habitantes de Macondo dessem crédito à lenda de que Remedios Buendía não exalava o sopro de amor mas sim um fluxo mortal. A ocasião de comprová-lo se apresentou meses depois, numa tarde em que Remedios, a bela, foi com um grupo de amigas conhecer as novas plantações. Para o povo de Macondo, era uma distração recente percorrer as úmidas e intermináveis avenidas ladeadas de bananeiras, onde o silêncio parecia trazido de outra parte, ainda sem usar, e por isso era tão difícil transmitir a voz. As vezes não se entendia muito bem o que era dito a meio metro de distância e que entretanto se tornava perfeitamente compreensível no outro extremo da plantação. Para as moças de Macondo aquela brincadeira nova era motivo de risadas e sobressaltos, de sustos e zombarias, e de noite se falava do passeio como de uma experiência de sonho. Era tal o prestígio daquele silêncio que Úrsula não teve coragem de privar Remedios, a bela, da diversão e lhe permitiu ir numa tarde, desde que pusesse um chapéu e uma roupa adequada. Assim que o grupo de amigas entrou na plantação o ar se impregnou de uma fragrância mortal. Os homens que trabalhavam nas valas se sentiram possuídos por uma estranha fascinação, ameaçados por um perigo invisível, e muitos sucumbiram à terrível vontade de chorar. Remedios, a bela, e suas espantadas amigas conseguiram se refugiar numa casa próxima quando estavam já para serem assaltadas por um tropel de machos ferozes. Pouco depois foram resgatadas pelos quatro Aurelianos, cujas cruzes de cinza infundiam um respeito sagrado, como se fossem marca de casta, selo de invulnerabilidade. Remedios, a bela, não contou a ninguém que um dos homens, aproveitando o tumulto, conseguira agredi-la no ventre com uma mão que mais parecia uma garra de águia aferrada aos bordos de um precipício. Ela enfrentara o agressor numa espécie de deslumbramento instantâneo e vira os olhos desconsolados que ficaram impressos no seu coração como uma brasa de compaixão. Nessa noite, o homem se gabou da sua audácia e se vangloriou da sua sorte na Rua dos Turcos, minutos antes de que o coice de um cavalo lhe arrebentasse o peito e uma multidão de forasteiros o visse agonizar no meio da rua, sufocado em vômitos de sangue.
  A suposição de que Remedios, a bela, possuía poderes de morte estava agora sustentada por quatro fatos irrefutáveis. Embora alguns homens levianos de palavra sentissem prazer em dizer que bem valia a pena sacrificar a vida por uma noite de amor com tão perturbadora mulher, a verdade é que nenhum se esforçou por consegui-lo.
  Talvez, não só para vencê-la como também para afastar os seus perigos, bastasse um sentimento tão primitivo e simples como o amor, mas isso foi a única coisa que não ocorreu a ninguém. Úrsula não voltou a se ocupar dela. Em outra época, quando ainda não renunciara ao propósito de salvá-la para o mundo, procurou interessá-la nos assuntos elementares da casa. “Os homens são mais exigentes do que você pensa”, dizia-lhe enigmaticamente. “É preciso cozinhar muito, varrer muito, sofrer muito por mesquinharias, além daquilo que você pensa.” No fundo se enganava a si mesma, tentando adestrá-la para a felicidade doméstica, porque estava convencida de que, uma vez satisfeita a paixão, não havia um homem sobre a terra capaz de suportar, nem que fosse por um dia, uma negligência que estava além de qualquer compreensão. O nascimento do último José Arcadio e a sua inquebrantável vontade de educá-lo para Papa terminaram por fazê-la desistir das suas ocupações com a bisneta. Abandonou-a à sua sorte, confiando que mais cedo ou mais tarde aconteceria um milagre e que neste mundo onde havia de tudo haveria também um homem com suficiente serenidade para cuidar dela. Fazia muito tempo que Amaranta tinha renunciado a qualquer tentativa de convertê-la numa mulher útil. Desde as tardes esquecidas do quarto de costura, quando a sobrinha mal se interessava por rodar a manivela da máquina de coser, chegara à conclusão simples de que era boba. “Vamos ter que rifar você”, dizia-lhe, perplexa diante da sua impermeabilidade à palavra dos homens. Mais tarde, quando Úrsula se empenhou para que Remedios, a bela, assistisse à missa com a cara coberta por um véu, Amaranta pensou que aquele recurso misterioso acabaria por ser tão provocante que muito em breve haveria um homem intrigado o bastante para procurar com paciência o ponto fraco do seu coração. Mas quando viu a forma insensata com que desprezou um pretendente que, por muitos motivos, era mais apetecível que um príncipe, renunciou a qualquer esperança. Fernanda não fez sequer a tentativa de compreendê-la. Quando viu Remedios, a bela, vestida de rainha no carnaval sangrento, pensou que ela era uma criatura extraordinária. Mas quando a viu comendo com as mãos, incapaz de dar uma resposta que não fosse um prodígio de patetice, a única coisa que lamentou foi que os bobos de nascença tivessem uma vida tão longa. Apesar de o Coronel Aureliano Buendía continuar acreditando e repetindo que Remedios, a bela, era na verdade o ser mais lúcido que havia conhecido na vida, e que o demonstrava a cada momento com a sua assombrosa habilidade para zombar de todos, abandonaram-na ao deus-dará. Remedios, a bela, ficou vagando pelo deserto da solidão, sem cruzes nas costas, amadurecendo nos seus sonos sem pesadelos, nos seus banhos intermináveis, nas suas refeições sem horários, nos seus profundos e prolongados silêncios sem lembranças, até uma tarde de março em que Fernanda quis dobrar os seus lençóis de linho no jardim e pediu ajuda às mulheres da casa. Mal haviam começado, quando Amaranta advertiu que Remedios, a bela, chegava a estar transparente de tão intensamente pálida.
  — Você está se sentindo mal? — perguntou a ela.
  Remedios, a bela, que segurava o lençol pelo outro extremo, teve um sorriso de piedade.
  — Pelo contrário — disse — nunca me senti tão bem.
  Acabava de dizer isso quando Fernanda sentiu que um delicado vento de luz lhe arrancava os lençóis das mãos e os estendia em toda a sua amplitude. Amaranta sentiu um tremor misterioso nas rendas das suas anáguas e tratou de se agarrar no lençol para não cair, no momento em que Remedios, a bela, começava a ascender. Úrsula, já quase cega, foi a única que teve serenidade para identificar a natureza daquele vento irremediável e deixou os lençóis à mercê da luz, olhando para Remedios, a bela, que lhe dizia adeus com a mão, entre o deslumbrante bater de asas dos lençóis que subiam com ela, que abandonavam com ela o ar dos escaravelhos e das dálias e passavam com ela através do ar onde as quatro da tarde terminavam, e se perderam com ela para sempre nos altos ares onde nem os mais altos pássaros da memória a podiam alcançar.
  Os forasteiros, evidentemente, pensaram que Remedios, a bela, sucumbira por fim ao seu irrevogável destino de abelha-mestra e que a sua família tentava salvar a honra com a mentira da levitação. Fernanda, roída de inveja, acabou por aceitar o prodígio e durante muito tempo continuou rogando a Deus para que lhe devolvesse os lençóis. A maioria acreditou no milagre e até se acenderam velas e se rezaram novenas. Talvez não se tivesse voltado a falar de outra coisa por muito tempo, se o bárbaro extermínio dos Aurelianos não tivesse substituído o assombro pelo horror. Embora nunca o identificasse como um presságio, o Coronel Aureliano Buendía previa de certo modo o trágico fim dos seus filhos. Quando Aureliano Serrador e Aureliano Arcaya, os dois que chegaram no tumulto, manifestaram a vontade de ficar em Macondo, o pai tentou dissuadi-los. Não entendia o que vinham fazer num povoado que da noite para o dia se transformara num lugar de perigo. Mas Aureliano Centeno e Aureliano Triste, apoiados por Aureliano Segundo, ofereceram trabalho para eles nas suas empresas. O Coronel Aureliano Buendía tinha motivos ainda muito confusos para não patrocinar aquela determinação. Desde que vira o Sr. Brown no primeiro automóvel que chegara a Macondo — um conversível alaranjado com uma buzina que espantava os cães com os seus latidos — o velho guerreiro se indignou com as mesuras servis do povo e percebeu que alguma coisa mudara na índole dos homens desde o tempo em que abandonavam mulheres e filhos e jogavam uma espingarda ao ombro para ir à guerra. As autoridades locais, depois do armistício de Neerlândia, eram alcaides sem iniciativa, juízes decorativos, escolhidos entre os pacíficos e cansados conservadores de Macondo. “Este é um regime de pobres-diabos”, comentava o Coronel Aureliano Buendía quando via passar os guardas descalços, armados de cassetetes de madeira. “Fizemos tantas guerras, e tudo para que não nos pintassem a casa de azul.” Quando chegou a companhia bananeira, entretanto, os funcionários locais foram substituídos por forasteiros autoritários que o Sr. Brown levou para viver no galinheiro eletrificado, para que gozassem, conforme explicou, da dignidade que correspondia ao seu cargo e não sofressem o calor e os mosquitos e as incontáveis incomodidades e privações do povo. Os antigos guardas foram substituídos por sicários armados de facões. Fechado na oficina, o Coronel Aureliano Buendía pensava nestas mudanças e, pela primeira vez nos seus calados anos de solidão, atormentou-o a certeza definitiva de que havia sido um erro não prosseguir a guerra até as suas últimas conseqüências. Por esses dias, um irmão do esquecido Coronel Magnífico Visbal levou o neto de sete anos para tomar um refresco nas carrocinhas da praça e, porque o menino esbarrou por acidente num cabo de polícia e lhe derramou o refresco no uniforme, o bárbaro fez dele picadinho com o facão e decapitou de um só golpe o avô, que tentara enfrentá-lo. Todo o povo viu o decapitado passar quando um grupo de homens o carregava para casa, a cabeça arrastada por uma mulher que a levava pendurada pelos cabelos e o saco ensangüentado onde meteram os pedaços do menino.
  Para o Coronel Aureliano Buendía foi o máximo da expiação. Encontrou-se de repente padecendo da mesma indignação que sentira na juventude, diante do cadáver da mulher que fora morta a pauladas porque tinha sido mordida por um cão raivoso. Olhou para os grupos de curiosos que estavam na frente da casa e, com a sua antiga voz trovejante, restaurada por um profundo desprezo por ele mesmo, jogou-lhes em cima o peso do ódio que já não podia mais suportar no coração.
  — Um dia destes — gritou — vou armar os meus rapazes para acabar com estes ianques de merda!
  Ao correr da semana, em diferentes lugares do litoral, os seus dezessete filhos foram caçados como coelhos por criminosos invisíveis que apontaram bem no centro das suas cruzes de cinza. Aureliano Triste saía da casa de sua mãe, às sete da noite, quando um disparo de fuzil surgido da escuridão perfurou-lhe a testa. Aureliano Centeno foi encontrado na rede que costumava armar na fábrica com um furador de elo cravado até o cabo entre as sobrancelhas. Aureliano Serrador tinha deixado a namorada na casa dos pais, depois de levá-la ao cinema, e voltava pela iluminada Rua dos Turcos quando alguém que nunca foi identificado na multidão disparou um tiro de revólver que o derrubou dentro de um caldeirão de gordura fervendo. Poucos minutos depois, alguém bateu na porta do quarto onde Aureliano Arcaya estava fechado com uma mulher e gritou para ele: “Anda logo, que estão matando os teus irmãos.” A mulher que estava com ele contou depois que Aureliano Arcaya pulou da cama e abriu a porta e foi esperado com uma descarga de Mauser que lhe despedaçou o crânio. Naquela noite de matança, enquanto a casa se preparava para velar os quatro cadáveres, Fernanda percorreu o povoado como uma louca procurando Aureliano Segundo, que Petra Cotes trancara num armário, pensando que a missão de extermínio incluía todos os que tivessem o nome do coronel. Não o deixou sair até o quarto dia, quando os telegramas recebidos de lugares diferentes do litoral permitiram compreender que a sanha do inimigo invisível estava dirigida apenas contra os irmãos marcados com cruzes de cinza. Amaranta procurou a caderneta de contas onde havia anotado os dados dos sobrinhos, e, à medida que chegavam os telegramas, ia riscando os nomes, até que só ficou o do mais velho. Lembravam-se muito bem dele, por causa do contraste da sua pele escura com os grandes olhos verdes. Chamava-se Aureliano Amador, era carpinteiro e vivia numa aldeia perdida nas encostas da serra. Depois de esperar duas semanas pelo telegrama da sua morte, Aureliano Segundo mandou um emissário para preveni-lo, pensando que ignorasse a ameaça que pesava sobre ele. O emissário voltou com a notícia de que Aureliano Amador estava salvo. Na noite do extermínio, dois homens tinham ido procurá-lo em sua casa e tinham descarregado os seus revólveres contra ele, mas não lhe haviam acertado a cruz de cinza. Aureliano Amador conseguira pular a cerca do quintal e se perdera nos labirintos da serra, que conhecia como a palma da mão, graças à amizade dos índios com quem comerciava madeira. Não se voltara a saber dele.
  Foram dias negros para o Coronel Aureliano Buendía.
  O Presidente da República endereçou-lhe um telegrama de pêsames no qual prometia urna investigação exaustiva e rendia homenagem aos mortos. Por ordem sua, o alcaide se apresentou no enterro com quatro coroas fúnebres que pretendeu colocar sobre os ataúdes, mas o coronel o pôs na rua. Depois do enterro, redigiu e levou pessoalmente um telegrama violento para o Presidente da República, que o telegrafista se negou a transmitir. Então, enriqueceu-o com expressões de singular agressividade, meteu-o num envelope e o pôs no correio. Como lhe ocorrera com a morte da esposa, como tantas vezes lhe ocorrera durante a guerra com a morte dos seus melhores amigos, não experimentava um sentimento de pesar, mas uma raiva cega e sem direção, uma extenuante impotência. Chegou até a denunciar a cumplicidade do Padre Antonio Isabel, por ter marcado seus filhos com cinza indelével, para que fossem identificados pelos inimigos. O decrépito sacerdote, que já não alinhava muito bem as idéias e começava a espantar os paroquianos com as disparatadas interpretações que tentava no púlpito, apareceu uma tarde na casa com a caneca onde preparava as cinzas da quarta-feira e tentou ungir com elas toda a família, para demonstrar que saíam com água. Mas o terror da desgraça tinha calado tão fundo que nem a própria Fernanda se prestou à experiência e nunca mais se viu um Buendía ajoelhado junto ao altar na quarta-feira de cinzas.
  Durante muito tempo o Coronel Aureliano Buendía não conseguiu recobrar a serenidade. Abandonou a fabricação de peixinhos, comia a duras penas e andava como um sonâmbulo por toda a casa, arrastando a manta e mastigando uma cólera surda. Ao fim de três meses, tinha o cabelo grisalho, o antigo bigode de pontas engomadas gotejando sobre os lábios sem cor, mas em compensação os seus olhos eram outra vez aquelas duas brasas que haviam assustado aos que o viram nascer e que em outros tempos faziam as cadeiras girarem só de olhar para elas. Na fúria do seu tormento tentava inutilmente provocar os presságios que haviam guiado a sua juventude pelos caminhos do perigo até o desolado ermo da glória. Estava perdido, extraviado numa casa alheia, onde já nada nem ninguém lhe motivava o menor vestígio de afeto. Uma vez abriu o quarto de Melquíades, procurando os rastos de um passado anterior à guerra e só encontrou os escombros, o lixo, os montes de porcaria acumulados por tantos anos de abandono. Nas capas dos livros que ninguém voltara a ler, nos velhos pergaminhos macerados pela umidade, prosperara uma flora lívida, e no ar que havia sido o mais puro e luminoso da casa flutuava um insuportável cheiro de lembranças podres. Certa manhã, encontrou Úrsula chorando debaixo do castanheiro, nos joelhos do marido morto. O Coronel Aureliano Buendía era o único habitante da casa que não continuava a ver o potente ancião angustiado por meio século de intempérie.
  “Cumprimente o seu pai”, disse-lhe Úrsula. Deteve-se um momento diante do castanheiro e uma vez mais comprovou que aquele espaço vazio também não lhe inspirava nenhum afeto.
  — O que é que ele diz? — perguntou.
  — Está muito triste — Úrsula respondeu — porque acha que você vai morrer.
  — Diga a ele — sorriu o coronel — que não se morre quando se deve, mas quando se pode.
  O presságio do pai morto removeu o último ressaibo de soberba que lhe restava no coração, mas ele o confundiu com um repentino sopro de força. Foi por isso que se dirigiu a Úrsula, para que lhe revelasse em que lugar do quintal estavam enterradas as moedas de ouro que tinham encontrado dentro do São José de gesso. “Você nunca vai saber”, disse ela com uma firmeza inspirada num velho castigo. “Um dia”, acrescentou, “há de aparecer o dono dessa fortuna e só ele poderá desenterrá-la.” Ninguém sabia por que um homem que sempre fora tão desprendido tinha começado a cobiçar o dinheiro com semelhante ansiedade, e não as modestas quantias que lhe haveriam bastado para resolver uma emergência, mas uma fortuna de grandezas desatinadas cuja simples menção deixou Aureliano Segundo perdido num mar de assombro. Os velhos companheiros de partido a quem acudiu em demanda de ajuda se esconderam para não recebê-lo. Foi por essa época que o ouviram dizer: “A única diferença atual entre liberais e conservadores é que os liberais vão à missa das cinco e os conservadores à das oito.” Entretanto, insistiu com tanto afinco, suplicou de tal modo, quebrantou de tal forma os seus princípios de dignidade que com um pouco daqui e um pouco de lá, deslizando por todas as partes com uma diligência sigilosa e uma perseverança desapiedada, conseguiu reunir em oito meses mais dinheiro do que Úrsula tinha enterrado. Então, visitou o doente Coronel Gerineldo Márquez para que o ajudasse a promover a guerra total. Em certo momento, o Coronel Gerineldo Márquez tinha sido na verdade o único que poderia movimentar, mesmo da sua cadeira de balanço de paralítico, os mofados fios da rebelião. Depois do armistício de Neerlândia, enquanto o Coronel Aureliano Buendía se refugiava no exílio dos seus peixinhos de ouro, ele manteve contato com os oficiais rebeldes que lhe haviam sido fiéis até a derrota. Fez com eles a guerra triste da humilhação cotidiana, das súplicas e dos memorandos, do volte amanhã, do está quase, do estamos estudando o seu caso com a devida atenção; a guerra perdida sem salvação contra os mui atenciosos e leais servidores que deviam assinar e não assinaram nunca as pensões vitalícias. A outra guerra, a sangrenta de vinte anos, não lhes causara tantos estragos quanto a guerra corrosiva do eterno adiamento. O próprio Coronel Gerineldo Márquez, que escapara de três atentados, sobrevivera a cinco ferimentos e saíra ileso de incontáveis batalhas, sucumbiu ao assédio atroz da espera e afundou na derrota miserável da velhice, pensando em Amaranta entre os losangos de luz de uma casa emprestada. Os últimos veteranos de quem se teve notícia apareceram retratados num jornal, com a cara levantada de indignidade, junto a um anônimo Presidente da República que os presenteou com uns botões com a sua efígie, para que os usassem na lapela, e lhes restituiu uma bandeira suja de sangue e de pólvora, para que a pusessem sobre os seus ataúdes. Os outros, os mais dignos, ainda esperavam uma carta na penumbra da caridade pública, morrendo de fome, sobrevivendo de raiva, apodrecendo de velhos na refinada merda da glória. De modo que quando o Coronel Aureliano Buendía o convidou para promover uma conflagração mortal que arrasasse com todos os vestígios de um regime de corrupção e de escândalos sustentado pelo invasor estrangeiro, o Coronel Gerineldo Márquez não pôde reprimir um estremecimento de compaixão.
  — Ai, Aureliano — suspirou — eu já sabia que você estava velho, mas só agora é que percebo que você está muito mais velho do que aparenta.
sábado
Capítulo XI
Foto tirada por Patrick Curry.

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