PILAR TERNERA morreu na cadeira de balanço de cipó, numa noite de festa, guardando a entrada do seu paraíso. De acordo com a sua última vontade, enterraram-na sem ataúde, sentada na cadeira de balanço, que foi descida com cordas por homens num buraco enorme, cavado no centro da pista de dança. As mulatas vestidas de preto, pálidas de pranto, improvisavam ofícios de trevas enquanto tiravam os brincos, os broches e os anéis, e os iam jogando na fossa, antes de que a selassem com uma lápide sem nome nem datas e lhe colocassem por cima uma montanha de camélias amazônicas. Depois de envenenar os animais, fecharam portas e janelas com tijolos e argamassa e se dispersaram pelo mundo com os seus baús de madeira, atapetados por dentro com figuras de santos, recortes de revista e retratos de namorados efêmeros, remotos e fantásticos, que cagavam diamantes ou comiam canibais ou eram coroados como reis de baralho em alto-mar.
  Era o fim. No túmulo de Pilar Ternera, entre salmos e miçangas de putas, apodreciam os escombros do passado, os poucos que restavam depois que o sábio catalão liquidou a livraria e voltou à aldeia mediterrânea onde nascera, derrotado pela saudade de uma primavera teimosa. Ninguém poderia pressentir a sua decisão. Chegara a Macondo durante o. esplendor da companhia bananeira, fugindo de uma das tantas guerras, e não lhe ocorrera nada mais prático do que instalar aquela livraria de incunábulos e edições originais em vários idiomas, que os clientes casuais folheavam com receio, como se fossem livros de lixeira, enquanto esperavam a vez para que interpretassem os seus sonhos na casa em frente. Esteve metade da vida no abafado fundo da loja, garranchando a sua letra preciosista em tinta violeta e em folhas que arrancava de cadernos escolares, sem que ninguém soubesse ao certo o que escrevia. Quando Aureliano o conheceu, tinha dois caixotes cheios daquelas páginas disparatadas que de algum modo faziam pensar nos pergaminhos de Melquíades, e dessa época até quando foi embora deve ter enchido um terceiro, de modo que era razoável pensar que não tinha feito nada além disso, durante a sua permanência em Macondo. As únicas pessoas com quem se relacionou foram os quatro amigos, cujos piões e papagaios trocou por livros e os pôs a ler Sêneca e Ovídio quando ainda estavam na escola primária. Tratava os clássicos com uma familiaridade caseira, como se todos tivessem sido em alguma época seus companheiros de quarto, e sabia muitas coisas que simplesmente não se devia saber, como por exemplo que Santo Agostinho usava debaixo do hábito um gibão de lã que não tirou durante quatorze anos, e que Arnaldo de Villanova, o nigromante, ficou impotente desde menino por causa de uma mordida de escorpião. O seu fervor pela palavra escrita era uma urdidura de respeito solene e irreverência folgazã. Nem os seus próprios manuscritos estavam a salvo dessa dualidade. Tendo aprendido catalão para traduzi-los, Alfonso meteu um rolo de páginas nos bolsos, que sempre andavam cheios de recortes de jornal e manuais de profissões estranhas, e certa noite perdeu-os na casa das garotas que se deitavam com eles por fome. Quando o avô sábio soube, em vez de fazer o escândalo temido comentou morrendo de rir que aquele era o destino natural da literatura. Em compensação, não houve poder humano capaz de persuadi-lo a não levar os três caixotes quando regressou à sua aldeia natal, e soltou impropérios cartagineses* contra os inspetores da estrada de ferro que tentavam mandá-los como carga, até que conseguiu ficar com eles no vagão de passageiros. “O mundo terá acabado de se foder”, disse então, “no dia em que os homens viajarem de primeira classe e a literatura no vagão de carga.” Isso foi a última coisa que o ouviram dizer. Tinha passado uma semana negra com os preparativos finais da viagem, porque à medida que a hora se aproximava o seu humor ia-se decompondo e mudavam-se as intenções e as coisas que colocava num lugar apareciam noutro, assediado pelos mesmos duendes que atormentavam Fernanda.
  — Collons — maldizia. — Estou cagando para a Lei 27 do sínodo de Londres.
  Germán e Aureliano tomaram conta dele. Ajudaram-no como a um menino, prenderam nos seus bolsos, com alfinetes de gancho, as passagens e os documentos de viagem, escreveram uma lista pormenorizada do que ele devia fazer desde que saísse de Macondo até desembarcar em Barcelona, mas assim mesmo ele jogou no lixo, sem perceber, um par de calças com a metade do seu dinheiro. Na véspera da viagem, depois de pregar os caixotes e meter a roupa na mesma mala com que tinha chegado, franziu as pálpebras de marisco, apontou com uma espécie de bênção atrevida os montes de livros com que havia sobrevivido ao exílio e disse aos amigos:
  — Deixo para vocês essa merda!
  Três meses depois receberam um envelope grande com vinte e nove cartas e mais de cinqüenta retratos, que tinham se acumulado nos ócios do alto-mar. Embora não pusesse datas, era evidente a ordem em que tinha escrito as cartas. Nas primeiras, contava com o seu humor habitual as peripécias da travessia, a vontade que lhe dera de atirar pela amurada o comissário que não lhe permitira trazer os três caixotes no camarote, a imbecilidade lúcida de uma senhora que se aterrava com o número 13, não por superstição mas porque lhe parecia um número que ficara por terminar, e a aposta que ganhara no primeiro jantar porque reconhecera na água de bordo o gosto das beterrabas noturnas das fontes de Lérida. Com o correr dos dias, entretanto, a realidade de bordo interessava-o cada vez menos e até os acontecimentos mais recentes e triviais lhe pareciam dignos de saudade, porque à medida que o navio se afastava a memória ia se tornando triste. Aquele processo de nostalgização progressiva era também evidente nos retratos. Nos primeiros parecia feliz, com a sua camisa de inválido* e o seu topete nevado, no encapelado outubro do Caribe. Nos últimos, era visto com um sobretudo escuro e um cachecol de seda, pálido por natureza e taciturno pela ausência, na coberta de um navio de angústia que começava a sonambular por oceanos outonais. Germán e Aureliano respondiam as suas cartas. Escreveu tantas nos primeiros meses que agora se sentiam mais perto dele do que quando estava em Macondo e quase se aliviavam da raiva de que tivesse ido embora. No princípio, mandava dizer que tudo continuava igual, que na casa onde nascera ainda havia o caracol rosado, que os arenques secos tinham o mesmo sabor sobre a torrada, que as cascatas da aldeia continuavam se perfumando ao entardecer. Eram outra vez as folhas de cadernos retomadas com garranchinhos roxos*, nas quais dedicava um parágrafo verificável. Basta lembrar as borboletas amarelas de Mauricio Babilonia, os escorpiões que rondavam o banho de especial para cada um. Entretanto, e embora ele mesmo não parecesse perceber, aquelas cartas de recuperação e estímulo se iam transformando pouco a pouco em pastorais de desengano. Nas noites de inverno, enquanto fervia a sopa no fogão, desejava o calor dos fundos da loja, o zumbido do sol nas amendoeiras empoeiradas, o apito do trem na sonolência da sesta, da mesma forma como desejava em Macondo a sopa de inverno no fogão, os pregões do vendedor de café e as cotovias fugazes da primavera. Aturdido por duas saudades colocadas de frente uma para a outra como dois espelhos, perdeu o seu maravilhoso sentido de irrealidade até que terminou por recomendar a todos que fossem embora de Macondo, que esquecessem tudo o que ele ensinara do mundo e do coração humano, que cagassem para Horácio e que em qualquer lugar em que estivessem se lembrassem sempre de que o passado era mentira, que a memória não tinha caminhos de regresso, que toda primavera antiga era irrecuperável e que o amor mais desatinado e tenaz não passava de uma verdade efêmera.
  Álvaro foi o primeiro a seguir o conselho de abandonar Macondo. Vendeu tudo, até a onça cativa que zombava dos transeuntes no quintal da sua casa, e comprou uma passagem eterna num trem que nunca acabava de viajar. Nos cartões postais que mandava das estações intermediárias, descrevia aos gritos as imagens instantâneas que tinha visto pela janela do vagão, e era como ir rasgando em tiras e jogando ao esquecimento o longo poema da fugacidade: os negros quiméricos nos algodoais da Louisiana, os cavalos alados na grama azul de Kentucky, os amantes gregos no crepúsculo infernal do Arizona, a moça de suéter vermelho que pintava aquarelas nos lagos de Michigan e que lhe deu com os pincéis um adeus não era de despedida mas de esperança, porque ela ignorava que estava vendo passar um trem sem regresso. Em seguida foram Alfonso e Germán, num sábado, com a idéia de voltar na segunda-feira, e não se soube mais deles. Um ano depois da partida do sábio catalão, o único que restava era Gabriel ainda vivendo à deriva, à mercê da eventual caridade de Nigromanta, e respondendo aos questionários do concurso de uma revista francesa, cujo maior prêmio era uma viagem a Paris. Aureliano, que era quem recebia a assinatura, ajudava-o a encher os formulários, às vezes na sua casa, e quase entre os potes de louça e o cheiro de valeriana da única farmácia que restava em Macondo, onde vivia Mercedes, a sigilosa namorada de Gabriel. Era a última coisa que ia ficando de um passado cujo aniquilamento não se consumava, que continuava se aniquilando indefinidamente, consumindo-se dentro de si mesmo, se acabando a cada minuto mas sem acabar de se acabar nunca. O povoado chegara a tais extremos de inatividade que quando Gabriel ganhou o concurso e para Paris com duas mudas de roupa, um par de sapatos e as obras completas de Rabelais, teve que fazer sinal ao maquinista a fim de que o trem se detivesse para apanhá-lo. A antiga Rua dos Turcos era agora um lugar de abandono, onde os últimos árabes se deixavam levar para a morte pelo costume milenar de se sentar à porta, embora fizesse muitos anos tinham vendido a última jarda de diagonal e nas vitrinas sombrias só restassem os manequins decapitados. A cidade da companhia bananeira, que talvez Patricia Brown tentasse evocar para os netos nas noites de intolerância e pepinos no vinagre de Prattville, Alabama, era uma planície de capim selvagem.
  O padre ancião que substituira o Padre Angel, e cujo nome ninguém se deu o trabalho de averiguar, esperava a piedade de Deus estendido de papo para o ar numa rede, atormentado pela artrite e pela insônia da dúvida, enquanto os lagartos e as ratazanas disputavam a herança do templo vizinho. Naquele Macondo esquecido até pelos pássaros, onde a poeira e o calor se fizeram tão tenazes que dava trabalho respirar, enclausurados pela solidão e pelo amor e pela solidão do amor puma casa onde era quase impossível dormir por causa do barulho das formigas ruivas, Aureliano e Amaranta Úrsula eram os únicos seres felizes, e os mais felizes sobre a terra.
  Gastón voltara a Bruxelas. Cansado de esperar o avião,um dia meteu numa maleta as coisas indispensáveis e o arquivo da correspondência, e foi com o propósito de voltar por antes de que os seus privilégios fossem cedidos a um grupo de aviadores alemães que tinham apresentado às autoridades provinciais um projeto mais ambicioso que seu. Desde a tarde do primeiro amor, Aureliano e Amaranta Úrsula tinham continuado a aproveitar os escassos descuidos do esposo , a se amar com ardores amordaçados em encontros ocasionais, e quase sempre interrompidos por regressos imprevistos. Mas quando se viram sozinhos na casa sucumbiram no lírio dos amores atrasados. Era uma paixão insensata, alucinada, que fazia tremerem de pavor na cova os ossos de Fernanda e os mantinha num estado de excitação perpétua. Os gemidos de Amaranta Úrsula, as suas canções agônicas, estavam do mesmo jeito às duas da tarde na mesa da sala de estar e às duas da madrugada na despensa. “O que mais me aborrece”, ria, “é o tempo enorme que perdemos.” No aturdimento da paixão, viu as formigas devastando o jardim, saciando a sua fome pré-histórica nas madeiras da casa, e viu a torrente de lava viva se apoderando outra vez da varanda, só se preocupou em combatê-la quando a encontrou no quarto. Aureliano abandonou os pergaminhos, não tornou a sair de casa, e respondia de qualquer maneira às cartas sábio catalão. Perderam o sentido da realidade, a noção tempo, o ritmo dos hábitos cotidianos. Tornaram a fechar portas e janelas para não demorarem nos trâmites de desnudamento, e andavam pela casa como Remedios, a bela, sempre quis estar, e se espojavam em pêlo nos barreiros do quintal, e uma tarde por pouco não se afogaram quando se amavam na caixa-d’água. Em pouco tempo fizeram mais que as formigas ruivas: quebraram os móveis da sala, rasgaram com as suas loucuras a rede que resistira aos tristes amores de acampamento do Coronel Aureliano Buendía e abriram os colchões e os esvaziaram no chão, para se sufocar em tempestades de algodão. Embora Aureliano fosse um amante tão feroz como o seu rival, era Amaranta Úrsula quem comandava com o seu engenho disparatado e a sua voracidade lírica aquele paraíso de desastres, como se tivesse concentrado no amor a indomável energia que a tataravó consagrara à fabricação de animaizinhos de caramelo. Além disso, enquanto ela cantava de alegria e morria de rir das suas próprias invenções, Aureliano ia se tornando mais absorto e calado, porque a sua paixão era ensimesmada e calcinante. Entretanto, ambos chegaram a tais extremos de virtuosismo que quando se esgotavam na exaltação tiravam melhor partido do cansaço. Entregaram-se à idolatria dos corpos, ao descobrir que os tédios do amor tinham possibilidades inexploradas, muito mais ricas que as do desejo. Enquanto ele amaciava com claras de ovo os seios eréteis de Amaranta Úrsula, ou suavizava com gordura de coco as suas coxas elásticas e o seu ventre de pêssego, ela brincava de boneca com a portentosa criatura de Aureliano e pintava-lhe olhos de palhaço com batom e bigodes de turco com lápis de sobrancelhas e armava-lhe laços de organza e chapeuzinhos de papel prateado. Uma noite se lambuzaram dos pés à cabeça com pêssegos em calda, lamberam-se como cães e se amaram como loucos no chão da varanda, e foram acordados por uma torrente de formigas carnívoras que se dispunham a devorá-los vivos.
  Nas pausas do delírio, Amaranta Úrsula respondia às cartas de Gastón. Sentia-o tão distante e ocupado que o seu regresso lhe parecia impossível. Numa das primeiras cartas, ele contou que na realidade os sócios tinham mandado o aeroplano, mas que uma agência marítima de Bruxelas o embarcara por equívoco com destino a Tanganica, onde o entregaram à dispersa comunidade dos Macondos. Aquela confusão ocasionou tantos contratempos que só a recuperação do aparelho podia demorar dois anos.Assim, Amaranta Úrsula descartou à possibilidade de um regresso inoportuno. Aureliano, por outro lado, não tinha outro contato com o mundo senão as cartas do sábio catalão e as notícias de Gabriel que recebia através de Mercedes, a farmacêutica silenciosa. No princípio eram contatos reais. Gabriel pedira o reembolso da passagem de volta para ficar em Paris, vendendo os jornais velhos e as garrafas vazias que as camareiras tiravam de um hotel lúgubre da Rua Dauphine. Aureliano podia imaginá-lo então com um suéter de gola alta que só tirava quando os terraços de Montparnasse se enchiam de namorados primaveris, e dormindo de dia e escrevendo de noite para enganar a fome, no quarto cheirando a espuma de couve-flor fervida onde haveria de morrer Rocamadour. Entretanto, as notícias se foram fazendo pouco a pouco tão incertas, e tão esporádicas e melancólicas as cartas do sábio, que Aureliano se acostumou a pensar neles pomo Amaranta Úrsula pensava no marido, e ambos ficaram boiando num universo vazio, onde a única realidade cotidiana e eterna era o amor.De repente, como um estampido naquele mundo de inconsciência feliz, chegou a notícia da volta de Gastón. Aureliano e Amaranta Úrsula abriram os olhos, sondaram as almas, se olharam na cara com a mão no coração e compreenderam que estavam tão identificados que preferiam a morte à separação. Então, ela escreveu ao marido uma carta de verdades contraditórias, na qual reiterava o seu amor e as suas ânsias de tornar a vê-lo, ao mesmo tempo que admitia como desígnio fatal a impossibilidade de viver sem Aureliano. Ao contrário do que ambos esperavam, Gastón mandou uma resposta tranqüila, quase paternal, com duas folhas inteiras consagradas a preveni-los contra as veleidades da paixão e um parágrafo final com votos inequívocos de que fossem tão felizes como ele o tinha sido na sua breve experiência conjugal.
  Era uma atitude tão imprevista que Amaranta Úrsula se sentiu humilhada diante da idéia de ter proporcionado ao marido pretexto que ele desejava para abandoná-la à sua sorte.
  O rancor agravou-se seis meses depois, quando Gastón tornou a escrever de Leopoldville, onde por fim recebera o aeroplano só para pedir que lhe mandassem o biciclo que, de tudo o que havia deixado em Macondo, era a única coisa que tinha para ele um valor sentimental. Aureliano suportou com paciência o despeito de Amaranta Úrsula, esforçou-se em demonstrar-lhe que podia ser tão bom marido na bonança como na adversidade, e as urgências cotidianas que os assediavam quando acabou o último dinheiro de Gastón criaram entre eles um vínculo de solidariedade que não era tão deslumbrante e caprichoso como a paixão, mas que serviu para que eles se amassem tanto e fossem tão felizes como nos tempos alvoroçados da libertinagem. Quando Pilar Ternera morreu estavam esperando um filho.
  Na sonolência da gravidez, Amaranta Úrsula tentou fazer uma indústria de colares de vértebras de peixe. Mas, exceção feita a Mercedes, que lhe comprou uma dúzia, não encontrou a quem vendê-los. Aureliano tomou consciência pela primeira vez de que o seu dom para línguas, a sua sabedoria enciclopédica, a sua estranha faculdade de se lembrar dos pormenores de fatos e lugares remotos e desconhecidos eram tão inúteis como o cofre de pedraria legítima de sua mulher, que na época devia valer tanto quanto todo o dinheiro de que poderiam dispor, juntos, os últimos habitantes de Macondo. Sobreviviam por milagre. Embora Amaranta Úrsula não perdesse o bom humor, nem o engenho para as travessuras eróticas, adquiriu o costume de se sentar na varanda depois do almoço, numa espécie de sesta insone e pensativa. Aureliano a acompanhava. As vezes permaneciam em silêncio até o anoitecer, um defronte do outro, olhando-se nos olhos, amando-se no sossego com tanto amor como antes se amaram no escândalo. A incerteza do futuro fez com que o coração voltasse ao passado. Viram-se a si mesmos no paraíso perdido do dilúvio, patinhando nos charcos do quintal, matando lagartixas para pendurá-las em Úrsula, brincando de enterrá-la viva, e aquelas evocações lhes revelaram a verdade de que tinham sido felizes juntos desde que tinham memória. Aprofundando o passado,Amaranta Úrsula recordou a tarde em que entrou na oficina de ourivesaria e a mãe lhe contou que o pequeno Aureliano não era filho de ninguém porque tinha sido encontrado boiando numa cestinha. Embora a versão lhes parecesse inverossímil, careciam de informações para substituí-la pela verdadeira. A única coisa de que estavam certos, depois de examinar todas as possibilidades, era de que Fernanda não tinha sido a mãe de Aureliano. Amaranta Úrsula inclinou-se a pensar que era filho de Petra Cotes, de quem só se lembrava de histórias de infâmia, e aquela suposição lhe produziu na alma uma torção de horror.
  Atormentado pela certeza de que era irmão da sua mulher, Aureliano deu uma fugida até a casa paroquial para procurar nos arquivos sebentos e furados de traças alguma pista certa da sua filiação. A certidão de batismo mais antiga que encontrou foi a de Amaranta Buendía, batizada na adolescência pelo Padre Nicanor Reyna, na época em que este andava tratando de provar a existência de Deus pela prova do chocolate. Chegou a iludir-se com a possibilidade de ser um dos dezessete Aurelianos, cujas certidões de nascimento perseguiu através de cinco tomos, mas as datas de batismo eram remotas demais para a sua idade. Vendo-o perdido em labirintos de sangue, trêmulo de incerteza, o padre artrítico que o observava da rede perguntou-lhe compassivamente qual era o seu nome.
  — Aureliano Buendía — disse ele.
  — Então não se mate de procurar — exclamou o pároco com uma convicção decisiva. — Há muitos anos houve por aqui uma rua que se chamava assim e por essa época o povo tinha o hábito de pôr nos filhos os nomes das ruas.
  Aureliano tremeu de raiva.
  — Ah! — disse — então o senhor também não acredita.
  — Em quê?
  — Que o Coronel Aureliano Buendía fez trinta e duas guerras civis e perdeu todas — respondeu Aureliano. — Que o exército encurralou e metralhou três mil trabalhadores e que levou os cadáveres para jogá-los no mar num trem de duzentos vagões.
  O pároco mediu-o com um olhar de pena.
  — Ai, filho — suspirou. — Para mim bastaria estar certo de que você e eu existimos neste momento.
  De modo que Aureliano e Amaranta Úrsula aceitaram a versão da cestinha, não porque acreditassem nela, mas porque os punha a salvo dos seus terrores. A medida que avançava a gravidez iam-se transformando num ser único, integravam-se cada vez mais na solidão de uma casa a que só faltava um último sopro para desmoronar. Reduziram-se a um espaço essencial, que ia do quarto de Fernanda, onde vislumbraram os encantos do amor sedentário, até o princípio da varanda, onde Amaranta Ursula se sentava tricotando sapatinhos e touquinhas de recém-nascido e Aureliano respondia as cartas ocasionais do sábio catalão. O resto da casa se rendeu ao assédio tenaz da destruição. A oficina de ourivesaria, o quarto de Melquíades, os remos primitivos e silenciosos de Santa Sofía de la Piedad ficaram no fundo de uma selva doméstica que ninguém teria a coragem de desbastar. Cercados pela voracidade da natureza, Aureliano e Amaranta Úrsula continuavam cultivando o orégão e as begônias e defendiam o seu mundo com demarcações de cal, construindo as últimas trincheiras da guerra imemorial entre o homem e as formigas. O cabelo comprido e descuidado, as equimoses que lhe amanheciam na cara, a inchação das pernas, a deformação do antigo e amoroso corpo de doninha tinham mudado em Amaranta Úrsula a aparência juvenil de quando chegara em casa com o viveiro de canários desafortunados e o esposo cativo, mas não lhe alteraram a vivacidade de espírito. “Merda”, costumava rir, “quem havia de pensar que nós iríamos realmente acabar vivendo como antropófagos!” O último fio que os atava ao mundo rompeu-se no sexto mês de gravidez, quando receberam uma carta que evidentemente não era do sábio catalão. Tinha sido selada em Barcelona, mas o envelope estava escrito com tinta azul convencional, numa caligrafia administrativa, e tinha o aspecto inocente e impessoal dos recados inimigos. Aureliano arrancou-a das mãos de Amaranta Úrsula quando ela se dispunha a abri-la.
  — Esta não — disse a ela. — Não quero saber o que diz.
  Tal como ele pressentia, o sábio catalão não tornou a escrever. A carta alheia, que ninguém leu, ficou à mercê das traças no consolo onde Fernanda esquecera uma vez o seu anel de casamento e lá continuou se consumindo no fogo interior da sua má notícia, enquanto os amantes solitários navegavam contra a corrente daqueles tempos de despedidas, tempos impenitentes e aziagos, que se desgastavam no empenho inútil de fazê-los derivar para o deserto do desencanto e do esquecimento. Conscientes daquela ameaça, Aureliano e Amaranta Úrsula passaram os últimos meses de mãos dadas, terminando com amores de lealdade o filho começado com exaltações e fornicação. De noite, abraçados na cama, não se amedrontavam com as explosões terrestres das formigas, nem com o ragor das traças, nem com o silvo constante e nítido do crescimento da erva daninha nos quartos vizinhos. Muitas vezes foram acordados pelo tráfego dos mortos. Ouviram Úrsula lutando contra as leis da criação para preservar a estirpe, e José Arcadio Buendía procurando a verdade quimérica dos grandes inventos, e Fernanda rezando, e o Coronel Aureliano Buendía se embrutecendo com os enganos da guerra e os peixinhos de ouro, e Aureliano Segundo agonizando de solidão no aturdimento das farras, e então aprenderam que as obsessões dominantes prevalecem contra a morte e tornaram a ser felizes com a certeza de que eles continuariam a se amar m as suas naturezas de fantasmas, muito depois de que as outras espécies de animais futuros arrebatassem dos insetos o paraíso da miséria que os insetos estavam acabando de arrebatar dos homens.
  Num domingo, às seis da tarde, Amaranta Úrsula sentiu a premência do parto. A sorridente parteira das garotas que deitavam por causa da fome fez com que ela subisse na mesa da sala de jantar, montou a cavalo no seu ventre e a maltratou com galopes selvagens até que seus gritos foram silenciados pelo choro de um varão formidável. Através das lágrimas, Amaranta Úrsula viu que era um Buendía dos grandes, socado e voluntarioso como os Josés Arcadios, com os olhos abertos e clarividentes dos Aurelianos e predisposto a começar a estirpe outra vez do princípio e purificá-la dos seus vícios perniciosos e da sua vocação solitária, porque era o único em um século que tinha sido engendrado com amor.
  — E um antropófago perfeito — disse. — Vai se chamar Rodrigo.
  — Não — contradisse o marido. — Vai se chamar Aureliano e ganhar trinta e duas guerras.
  Depois de cortar o umbigo, a parteira pôs-se a remover com um trapo o ungüento azul que lhe cobria o corpo, iluminada por Aureliano com uma lâmpada. Só quando o viraram de costas é que perceberam que ele tinha alguma coisa a mais que o resto dos homens e se inclinaram para examiná-lo. Era um rabo de porco.
  Não se alarmaram. Aureliano e Amaranta Úrsula não conheciam o precedente familiar nem se lembravam das pavorosas admoestações de Úrsula, e a parteira acabou de tranqüilizá-los com a suposição de que aquele rabo inútil poderia ser cortado quando o menino mudasse os dentes. Depois não tiveram mais ocasião de tornar a pensar nisso, porque Amaranta Úrsula sangrava um manancial inesgotável. Tentaram socorrê-la com ataduras de teia de aranha e cinza socada, mas era como querer tapar uma fonte com as mãos. Nas primeiras horas, ela fazia esforços para conservar o bom humor. Pegava na mão do assustado Aureliano e suplicava que não se preocupasse, que gente como ela não tinha sido feita para morrer contra a vontade e rolava de rir dos recursos truculentos da parteira. Mas à medida que as esperanças abandonavam Aureliano, ela ia se fazendo menos visível, como se a estivessem apagando da luz, até que se afundou na sonolência. Na madrugada da segunda-feira trouxeram uma mulher que rezou junto à cama orações de cauterização, infalíveis em homens e animais, mas o sangue apaixonado de Amaranta Úrsula era insensível á qualquer artifício diferente do amor. De tarde, depois de vinte e quatro horas de desespero, souberam que estava morta porque o caudal se extinguiu sem auxílios e o seu perfil se afilou e as florações da cara se desvaneceram numa aurora de alabastro e tornou a sorrir.
  Aureliano não compreendera até então quanto gostava de seus amigos, quanta falta lhe faziam e quanto teria dado para estar com eles naquele momento. Colocou o menino na cestinha que a mãe tinha preparado para ele, tapou a cara do cadáver com uma manta e vagou sem rumo pelo povoado deserto, procurando um desfiladeiro de volta ao passado. Bateu na porta da farmácia, onde não tinha estado nos últimos tempos, e o que encontrou foi uma oficina de carpintaria. A anciã que abriu a porta com uma lâmpada na mão compadeceu-se do seu desvario e insistiu em que não, que ali nunca tinha havido uma farmácia, nem nunca havia conhecido uma mulher de colo esbelto e olhos sonhadores que se chamasse Mercedes. Chorou com a testa apoiada na porta da antiga livraria do sábio catalão, consciente de que estava pagando os prantos atrasados de uma morte que não quisera chorar no seu devido tempo para não quebrar os feitiços do amor. Quebrou os punhos contra os muros de argamassa de O Menino de Ouro, clamando por Pilar Ternera, indiferente aos luminosos discos alaranjados que cruzavam o céu e que tantas vezes tinha contemplado com uma fascinação pueril, nas noites de festa, do pátio dos socós. No último salão aberto do desmantelado bairro de tolerância, um conjunto de acordeões tocava as canções de Rafael Escalona, o sobrinho do bispo, herdeiro dos segredos de Francisco, o Homem. O dono da cantina, que tinha um braço seco e como que torrado por tê-lo levantado contra a mãe, convidou Aureliano a tomar uma garrafa de aguardente, e Aureliano convidou-o a tomar outra. O dono da cantina falou da desgraça do seu braço. Aureliano falou da desgraça do seu coração, seco e como que torrado por havê-lo erguido contra a irmã. Acabaram chorando juntos e Aureliano sentiu por um momento que a dor tinha terminado. Mas quando tornou a ficar sozinho na última madrugada de Macondo, abriu os braços na metade da praça, disposto a acordar o mundo inteiro e gritou com toda a sua alma:
  — Os amigos são uns filhos da puta!
  Nigromanta resgatou-o de um charco de vômito e lágrimas. Levou-o para o seu quarto, limpou-o, fez com que tomasse uma xícara de caldo. Acreditando que isso o consolava, riscou com um traço de carvão os inumeráveis amores que ele continuava lhe devendo e evocou voluntariamente as suas tristezas mais solitárias para não deixá-lo sozinho no pranto. Ao amanhecer, depois de um sono ruim e breve, Aureliano recobrou a consciência da sua dor de cabeça. Abriu os olhos e se lembrou da criança.
  Não a encontrou na cestinha. No primeiro impacto, experimentou uma explosão de alegria, pensando que Amaranta Úrsula tinha despertado da morte para se ocupar da criança. Mas o cadáver era uma montanha de pedras sob a manta. Consciente de que ao chegar tinha encontrado aberta a porta do quarto, Aureliano atravessou a varanda saturada pelos suspiros matinais do orégão e chegou à sala de jantar, onde ainda estavam os escombros do parto: a panela grande, os lençóis ensangüentados, os cestos de cinza e o torcido umbigo da criança numa fralda aberta sobre a mesa, junto à tesoura e ao fio de seda. A idéia de que a parteira voltara por causa do menino no decorrer da noite proporcionou-lhe uma pausa de sossego para pensar. Jogou-se na cadeira de balanço, a mesma em que se sentara Rebeca nos tempos originais da casa, para dar aulas de bordado, e em que Amaranta jogava xadrez chinês com o Coronel Gerineldo Márquez, e em que Amaranta Úrsula costurava a roupinha da criança; e naquele relâmpago de lucidez teve consciência de que era incapaz de agüentar sobre a sua alma o peso esmagador de tanta coisa acontecida. Ferido pelas lanças mortais das tristezas próprias e alheias, admirou a impavidez da teia de aranha nas roseiras mortas, a perseverança do mato, a paciência do ar na radiante manhã de fevereiro. E então viu a criança. Era uma pelasca inchada e ressecada que todas as formigas do mundo iam arrastando trabalhosamente para os seus canais pelo caminho de pedras do jardim. Aureliano não conseguiu se mover. Não porque estivesse paralisado pelo horror, mas porque naquele instante prodigioso revelaram-se as chaves definitivas de Melquíades e viu a epígrafe dos pergaminhos perfeitamente ordenada no tempo e no espaço dos homens: O primeiro da estirpe está amarrado a uma árvore e o último está sendo comido pelas formigas.
Em nenhum ato da sua vida Aureliano tinha sido mais lúcido do que quando esqueceu os seus mortos e a dor dos seus mortos e tornou a pregar as portas e as janelas com as cruzes de Fernanda, para não se deixar perturbar por nenhuma tentação do mundo, porque agora sabia que nos pergaminhos de Melquíades estava escrito o seu destino. Encontrou-os intactos, entre as plantas pré-históricas e os charcos fumegantes e os insetos luminosos que tinham desterrado do quarto qualquer vestígio da passagem dos homens pela terra, e não teve serenidade para levá-los para a luz, mas ali mesmo, de pé, sem a menor dificuldade, como se estivessem escritos em castelhano sob o brilho deslumbrante do meio-dia, começou a decifrá-los em voz alta. Era a história da família, escrita por Melquíades inclusive nos detalhes mais triviais, com cem anos de antecipação. Redigira-a em sânscrito, que era a sua língua materna, e cifrara os versos pares com o código privado do imperador Augusto e os ímpares com os códigos militares lacedemônios. A proteção final, que Aureliano começava a vislumbrar quando se deixou confundir pelo amor de Amaranta Úrsula, radicava em Melquíades ter ordenado os fatos não no tempo convencional dos homens, mas concentrando tudo em um século de episódios cotidianos, de modo que todos coexistiram num mesmo instante. Fascinado pela descoberta, Aureliano leu em voz alta, sem saltos, as encíclicas cantadas que o próprio Melquíades fizera Arcadio escutar e que, na realidade, eram as predições da sua execução, e encontrou anunciado o nascimento da mulher mais bela do mundo que estava subindo ao céu de corpo e alma, e conheceu a origem de dois gêmeos póstumos que renunciavam a decifrar os pergaminhos, não só por incapacidade e inconstância, mas porque as suas tentativas eram prematuras. Neste ponto, impaciente por conhecer a sua própria origem, Aureliano deu um salto. Então começou o vento, fraco, incipiente, cheio de vozes do passado, de murmúrios de gerânios antigos, de suspiros de desenganos anteriores às nostalgias mais persistentes. Não o percebeu porque naquele momento estava descobrindo os primeiros indícios do seu ser, num avô concupiscente que se deixava arrastar pela frivolidade através de um ermo alucinado, em busca de uma mulher formosa a quem não faria feliz. Aureliano o reconheceu, perseguiu os caminhos ocultos da sua descendência e encontrou o instante da sua própria concepção entre os escorpiões e as borboletas amarelas de um banheiro crepuscular, onde um operário saciava a sua luxúria com uma mulher que se entregava a ele por rebeldia. Estava tão absorto que também não sentiu a segunda arremetida do vento, cuja potência ciclônica arrancou das dobradiças as portas e as janelas, esfarelou o teto da galeria oriental e desprendeu os cimentos. Só então descobriu que Amaranta Úrsula não era sua irmã, mas sua tia, e que Francis Drake tinha assaltado Riohacha só para que eles pudessem se perseguir pelos labirintos mais intrincados do sangue, até engendrar o animal mitológico que haveria de pôr fim à estirpe. Macondo já era um pavoroso rodamoinho de poeira e escombros, centrifugado pela cólera do furacão bíblico, quando Aureliano pulou onze páginas para não perder tempo com fatos conhecidos demais e começou a decifrar o instante que estava vivendo, decifrando-o à medida que o vivia, profetizando-se a si mesmo no ato de decifrar a última página dos pergaminhos, como se estivesse vendo a si mesmo num espelho falado. Então deu Outro salto para se antecipar às predições e averiguar a data e as circunstâncias da sua morte. Entretanto, antes de chegar ao verso final já tinha compreendido que não sairia nunca daquele quarto, pois estava previsto que a cidade dos espelhos (ou das miragens) seria arrasada pelo vento e desterrada da memória dos homens no instante em que Aureliano Babilonia acabasse de decifrar os pergaminhos e que tudo o que estava escrito neles era irrepetível desde sempre e por todo o sempre, porque as estirpes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma segunda oportunidade sobre
sábado
Capítulo XX
Foto tirada por Patrick Curry.
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O Criador do Acervo Me chamo J Jhony dos Santos Marque e sou capixaba de Nova Venecia. Moro em Londres ha 2 anos e sempre fui apaixonado pel...
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