sábado

Capítulo XV



      OS ACONTECIMENTOS que haveriam de dar o golpe de morte em Macondo começavam a se vislumbrar quando trouxeram para casa o filho de Meme Buendía. A situação pública estava na época tão incerta que ninguém tinha o espírito disposto para se ocupar de escândalos particulares, de modo que Fernanda contou com um ambiente propício para manter a criança escondida como se não houvesse existido nunca. Teve que recebê-la porque as circunstâncias em que a trouxeram não tornavam possível a recusa. Teve que suportá-la contra a vontade pelo resto da vida, porque na hora da verdade faltou a coragem para cumprir a íntima determinação de afogá-la na caixa-d’água do banheiro. Trancou-a na antiga oficina do Coronel Aureliano Buendía. A Santa Sofía de la Piedad conseguiu convencer de que o havia encontrado flutuando numa cestinha. Úrsula haveria de morrer sem saber da sua origem. A pequena Amaranta Úrsula, que entrou na oficina uma vez, quando Fernanda estava alimentando o menino, também acreditou na versão da cestinha flutuante. Aureliano Segundo, definitivamente distanciado da esposa pela forma irracional com que esta conduzira a tragédia de Meme, não soube da existência do neto a não ser três anos depois que o trouxeram para casa, quando o menino fugiu do cativeiro por um descuido de Fernanda e apareceu na varanda por uma fração de segundo, nu, com os cabelos emaranhados e com um impressionante sexo de carúnculas de peru, como se não fosse uma criatura humana e sim a definição enciclopédica de um antropófago.
      Fernanda não contava com aquele mal passo do seu incorrigível destino. O menino foi como a volta de uma vergonha que ela acreditava ter desterrado para sempre de casa. Mal levaram Mauricio Babilonia com a espinha dorsal fraturada, Fernanda já havia concebido até o detalhe mas ínfimo de um plano destinado a eliminar qualquer vestígio do opróbrio. Sem consultar o marido, fez no dia seguinte a sua bagagem, meteu numa maleta as três mudas que a filha podia necessitar e foi buscá-la no quarto, meia hora antes da chegada do trem.
      — Vamos, Renata — disse a ela.
      Não deu nenhuma explicação. Meme, por outro lado, não a esperava nem a queria. Não só ignorava para onde iam como também tanto fazia se a tivessem levado para o matadouro. Não voltara a falar, nem o faria pelo resto da vida, desde que ouvira o tiro no quintal e o simultâneo uivo de dor de Mauricio Babilonia. Quando a mãe lhe ordenou sair do quarto, não se penteou nem lavou o rosto, e subiu no trem como uma sonâmbula, sem perceber sequer as borboletas que continuavam a acompanhá-la. Fernanda nunca soube, nem se deu o trabalho de averiguar, se o seu silêncio pétreo era uma determinação da vontade ou se tinha ficado muda pelo impacto da tragédia. Meme mal se deu conta da viagem através da antiga região encantada. Não viu as sombrias e intermináveis plantações de banana de ambos os lados da linha. Não viu as casas brancas dos ianques, nem os seus jardins áridos de poeira e calor, nem as mulheres de bermudas e blusas de listras azuis que jogavam cartas nas varandas. Não viu os carros de boi carregados de cachos nas trilhas empoeiradas. Não viu as donzelas que pulavam como savelhos nos rios transparentes para deixar nos passageiros do trem a amargura dos seios esplêndidos, nem os barracos aglomerados e miseráveis dos trabalhadores onde voejavam as borboletas amarelas de Mauricio Babilonia e em cujas portas havia crianças verdes e esquálidas sentadas nos peniquinhos e mulheres grávidas que gritavam impropérios à passagem do trem. Aquela visão fugaz, que para ela era uma festa quando voltava do colégio, passou pelo coração de Meme sem avivá-lo. Não olhou pela janela nem sequer quando acabou a umidade ardente das plantações e o trem passou pela planície de amapolas onde ainda estava o esqueleto carbonizado do galeão espanhol e saiu em seguida para o mesmo ar diáfano e para o mesmo mar espumoso e sujo onde quase um século antes tinham fracassado as ilusões de José Arcadio Buendía.
     
      Às cinco da tarde, quando chegaram à estação final do pântano, desceu do trem porque Fernanda o fez. Subiram num carrinho que parecia um morcego enorme puxado por um cavalo asmático e atravessaram a cidade desolada, em cujas ruas intermináveis e cortadas pelo salitre ressoava um exercício de piano igual ao que escutara Fernanda nas sestas da adolescência. Embarcaram num navio fluvial cuja roda de madeira fazia um barulho de conflagração e cujas lâminas de ferro carcomidas pelo óxido reverberaram como a boca de um forno. Meme se trancou no camarote. Duas vezes por dia Fernanda deixava um prato de comida junto à cama e duas vezes por dia o levava intacto, não porque Meme estivesse resolvida a morrer de fome, mas porque o simples cheiro dos alimentos a enjoava, e o seu estômago devolvia até água. Nem ela mesma sabia na época que a sua fertilidade tinha enganado os vapores de mostarda, assim como Fernanda não o soube até quase um ano depois, quando trouxeram o menino. No camarote sufocante, transtornada pela vibração das paredes de ferro e pela exalação insuportável do lodo revolvido pela roda da embarcação, Meme perdeu a conta dos dias. Tinha passado já muito tempo quando viu a última borboleta amarela sendo destroçada nas pás do ventilador e admitiu como uma verdade irremediável que Mauricio Babilonia tinha morrido. Entre tanto, não se deixou vencer pela resignação. Continuava pensando nele durante a penosa travessia, a lombo de burro, do ermo alucinante onde Aureliano Segundo se perdera quando procurava a mulher mais bela que havia existido sobre a terra, e quando atravessaram a cordilheira pelas trilhas de índio e entraram na cidade lúgubre em cujos despenhadeiros de pedra ressoavam os bronzes funerários de trinta e duas igrejas. Nessa noite, dormiram na abandonada mansão colonial, sobre as tábuas que Fernanda pôs no chão de um aposento invadido pelo mato e cobertas com trapos de cortinas que arrancaram das janelas e que se desfaziam a cada virada do corpo. Meme soube onde estavam porque no espanto da insônia viu passar o cavaleiro vestido de negro que numa distante véspera de Natal haviam trazido para casa dentro de um cofre de chumbo. No dia seguinte, depois da missa, Fernanda conduziu-a para um edifício sombrio que Meme reconheceu imediatamente pelas evocações que sua mãe costumava fazer do convento onde a tinham educado para rainha, e então compreendeu que chegara ao fim da viagem. Enquanto Fernanda falava com alguém no escritório contíguo, ela ficou num salão axadrezado com grandes óleos de arcebispos coloniais, tremendo de frio porque ainda trazia um vestido de étamine com florezinhas negras e os duros borzeguins inchados pelo gelo do páramo. Estava de pé no centro do salão, pensando em Mauricio Babilonia sob o jato amarelo dos vitrais, quando saiu do escritório uma noviça muito bonita que trazia a sua maleta com as três mudas de roupa. Ao passar junto de Meme estendeu-lhe a mão sem se deter.
      — Vamos, Renata — disse.
      Meme tomou-lhe a mão e se deixou levar. A última vez que Fernanda a viu, tentando acertar o passo com a noviça, acabava de se fechar detrás dela a grade de ferro da clausura. Ainda pensava em Mauricio Babilonia, no seu cheiro de óleo e no seu âmbito de borboletas, e continuaria pensando nele todos os dias de sua vida até a remota madrugada de outono em que morreria de velhice, com o nome trocado e sem ter dito nunca uma só palavra, num tenebroso hospital de Cracóvia.
      Fernanda regressou a Macondo num trem protegido por guardas armados. Durante a viagem percebeu a tensão dos passageiros, o aparato militar nos povoados da linha e o ar rarefeito pela certeza de que alguma coisa de grave ia acontecer, mas careceu de informação enquanto não chegou a Macondo e lhe contaram que José Arcadio Segundo estava incitando à greve os trabalhadores da companhia bananeira. “Era só o que faltava”, resmungou Fernanda. “Um anarquista na família.” A greve estourou duas semanas depois e não teve as conseqüências dramáticas que se temiam.
      Os operários aspiravam a que não os obrigassem a cortar e embarcar banana aos domingos, e o pedido pareceu tão justo que até o Padre Antonio Isabel intercedeu em seu favor, porque o achou de acordo com a Lei de Deus. O triunfo da ação, assim como de outras que se promoveram nos meses seguintes, tirou do anonimato o descolorido José Arcadio Segundo, de quem se costumava dizer que só tinha servido para encher o povoado de putas francesas. Com a mesma decisão impulsiva com que vendeu seus galos de briga para fundar uma empresa de navegação desatinada, renunciou ao cargo de capataz de grupo da companhia bananeira e tomou o partido dos trabalhadores. Muito em breve foi apontado como agente de uma conspiração internacional contra a ordem pública. Uma noite, no meio de uma semana obscurecida por boatos sombrios, escapou por milagre de quatro tiros de revólver que lhe foram endereçados por um desconhecido, quando saía de uma reunião secreta. Foi tão tensa a atmosfera dos meses seguintes que até Úrsula a percebeu no seu refúgio de trevas e teve a impressão de estar vivendo de novo os tempos incertos em que seu filho Aureliano carregava no bolso as pílulas homeopáticas da subversão.Tentou falar com José Arcadio Segundo para fazê-lo conhecer esse precedente, mas Aureliano Segundo informou-a de que desde a noite do atentado ignorava-se o seu paradeiro.
      — Igual a Aureliano — exclamou Úrsula. — É como se o mundo estivesse dando voltas.
      Fernanda permaneceu imune à incerteza desses dias. Carecia de contatos com o mundo exterior, desde a violenta discussão que teve com o marido por ter determinado a sorte de Meme sem o seu consentimento. Aureliano Segundo estava disposto a resgatar a filha, com a polícia se fosse necessário, mas Fernanda fê-lo ver os papéis em que se provava que tinha ingressado na clausura pela própria vontade. Realmente Meme os havia assinado quando já estava do outro lado da grade de ferro e o fez com o mesmo desdém com que se deixara conduzir. No fundo, Aureliano Segundo não acreditou na legitimidade das provas, assim como nunca tinha acreditado que Mauricio Babilonia tivesse entrado no quintal para roubar galinhas, mas ambos os recursos serviram para tranqüilizar a sua consciência e pôde então voltar sem remorsos para a sombra de Petra Cotes, onde reiniciou as farras ruidosas e as comilanças desenfreadas. Alheia à inquietude do povoado, surda aos terríveis prognósticos de Úrsula, Fernanda deu os últimos toques no seu plano consumado.
      Escreveu uma extensa carta a seu filho José Arcadio, que já ia receber as primeiras ordens, e nela lhe comunicou que sua irmã Renata tinha expirado na paz dó Senhor,em conseqüência da febre amarela. Em seguida, deixou Amaranta Úrsula aos cuidados de Santa Sofía de la Piedad e se dedicou a organizar a sua correspondência com os médicos invisíveis, atrapalhada pelo caso de Meme. A primeira coisa que fez foi marcar a data definitiva para a adiada intervenção telepática. Mas os médicos invisíveis responderam que não era prudente enquanto persistisse o estado de agitação social em Macondo. Ela estava tão apressada e tão mal informada que explicou a eles em outra carta que não havia tal estado de agitação e que tudo era fruto das loucuras de um cunhado seu, que andava com a veneta sindical, como padecera em outros tempos de brigas de galos e de navegação. Ainda não tinham entrado em acordo, na calorenta quarta-feira em que bateu na porta de casa uma freira anciã que trazia uma cestinha pendurada no braço. Ao abrir, Santa Sofía de la Piedad pensou que fosse um presente e tentou tirar-lhe a cestinha coberta com um primoroso guardanapo de renda. Mas a freira impediu, porque tinha instruções para entregá-la pessoalmente, e na reserva mais estrita, a D.Fernanda del Carpio de Buendía. Era o filho de Meme. O antigo diretor espiritual de Fernanda lhe explicava numa carta que tinha nascido dois meses antes e que se tinham permitido batizá-lo com o nome de Aureliano, como o avô, porque a mãe não despregara os lábios para expressar a sua vontade. Fernanda se sublevou intimamente contra aquela zombaria do destino, mas teve forças para dissimular diante da freira.
      — Diremos que o encontramos flutuando na cestinha —sorriu.
      — Ninguém vai acreditar — disse a freira.
      — Se acreditaram nas Sagradas Escrituras — replicou Fernanda — não vejo por que não vão acreditar em mim.
      A freira almoçou em casa, enquanto esperava o trem de volta e, de acordo com a discrição que tinham exigido dela, não voltou a mencionar a criança, mas Fernanda viu nela uma testemunha indesejável da sua vergonha e lamentou que se houvesse banido o costume medieval de enforcar o mensageiro de más notícias. Foi então que decidiu afogar a criatura na caixa-d’água, logo que a freira fosse embora, mas o coração não agüentou e preferiu esperar com paciência até que a infinita bondade de Deus a libertasse do estorvo.
      O novo Aureliano tinha completado um ano quando a tensão pública estourou sem nenhum aviso. José Arcadio Segundo e outros dirigentes sindicais que tinham permanecido até então na clandestinidade apareceram intempestivamente num fim de semana e promoveram manifestações nos povoados da zona bananeira. A polícia se conformou com manter a ordem, apenas. Mas na noite de segunda-feira, os dirigentes foram tirados das suas casas e mandados com grilhões de cinco quilos nos pés para a prisão da capital da província. Entre eles levaram José Arcadio Segundo e Lorenzo Gavilán, um coronel da revolução mexicana, exilado em Macondo, que dizia ter sido testemunha do heroísmo do seu compadre Artemio Cruz. Entretanto, em menos de três meses já estavam em liberdade, porque o Governo e a companhia bananeira não conseguiram entrar em acordo sobre quem deveria alimentá-los na prisão. A revolta dos trabalhadores se baseava desta vez na insalubridade das vivendas, na farsa dos serviços médicos e na iniqüidade das condições de trabalho. Afirmavam, além disso, que não eram pagos com dinheiro de verdade, e sim com vales que só serviam para comprar presunto de Virgínia nos, armazéns da companhia. José Arcadio Segundo foi preso porque revelou que o sistema dos vales era um recurso da companhia para financiar os seus navios fruteiros que, se não fosse pelo comércio dos armazéns, teriam que voltar vazios de Nova Orleans até os portos de embarque da banana. As outras acusações eram do domínio público. Os médicos da companhia não examinavam os doentes; apenas os punham em fila indiana diante dos ambulatórios, e uma enfermeira lhes colocava na língua uma pílula da cor da pedra-lipes — tivessem impaludismo, blenorragia ou prisão de ventre. Era uma terapêutica tão generalizada que as crianças entravam na fila várias vezes e, em vez de engolir as pílulas, levavam-nas para casa, para marcar com elas os números cantados no jogo de víspora. Os operários da companhia estavam amontoados em barracos miseráveis. Os engenheiros, em vez de construir latrinas, traziam para os acampamentos, no Natal, um reservado portátil para cada cinqüenta pessoas e faziam demonstrações públicas de como utilizá-los para que durassem mais. Os decrépitos advogados vestidos de negro, que em outros tempos tinham assediado o Coronel Aureliano Buendía e que agora eram procuradores da companhia bananeira, desvirtuavam a função com arbitrariedades que pareciam passes de mágica. Quando os trabalhadores redigiram uma lista de pedidos unânime, muito tempo se passou sem que pudessem notificar oficialmente a companhia bananeira. Imediatamente após ter conhecido a resolução, o Sr. Brown enganchou no trem o seu suntuoso vagão de vidro e desapareceu de Macondo junto com os representantes mais conhecidos da sua empresa. Entretanto, vários operários encontraram um deles no sábado seguinte num bordel e o fizeram assinar uma cópia do ofício de reivindicações quando estava nu com a mulher que se prestou a levá-lo para a armadilha. Os enlutados advogados demonstraram em juízo que aquele homem não tinha nada que ver com a companhia e, para que ninguém pusesse em dúvida os seus argumentos, fizeram-no prender como vigarista. Mais tarde, o Sr. Brown foi surpreendido viajando incógnito num vagão de terceira classe e lhe fizeram assinar outra cópia da lista de reivindicações. No dia seguinte, compareceu diante dos juízes com o cabelo pintado de preto e falando um castelhano fluente. Os advogados demonstraram que não era o Sr. Jack Brown, superintendente da companhia bananeira e nascido em Prattville, Alabama, mas um inofensivo vendedor de plantas medicinais, nascido em Macondo e ali mesmo batizado com o nome de Dagoberto Fonseca. Pouco depois, diante de uma nova tentativa dos trabalhadores, os advogados exibiram em lugares públicos o atestado de óbito do Sr. Brown, autenticado por cônsules e chanceleres, e no qual se dava fé de que no último nove de junho ele tinha sido atropelado em Chicago por um carro de bombeiros. Cansados daquele delírio hermenêutico, os trabalhadores repudiaram as autoridades de Macondo e subiram com as suas queixas aos tribunais supremos. Foi lá que os ilusionistas do direito demonstraram que as reclamações careciam de toda validade, simplesmente porque a companhia bananeira não tinha, nem tinha tido nunca nem teria jamais, trabalhadores a seu serviço, mas sim que os recrutava ocasionalmente e em caráter temporário. De modo que se dissolveu a patranha do presunto de Virgínia, das pílulas milagrosas e dos reservados natalinos, e se estabeleceu por sentença do tribunal, e se proclamou em decretos solenes, a inexistência dos trabalhadores.
      A grande greve estourou. Os cultivos ficaram pelo meio, a fruta apodreceu no pé e os trens de cento e vinte vagões ficaram parados nos desvios. Os operários ociosos atulhavam as aldeias. A Rua dos Turcos reverberou num sábado de muitos dias e no salão de bilhar do Hotel de Jacob foi preciso organizar turnos de vinte e quatro horas. Lá estava José Arcadio Segundo, no dia em que se anunciou que o exército tinha sido encarregado de restabelecer a ordem pública. Embora não fosse homem de presságios, a notícia foi para ele como um anúncio de morte que tinha esperado desde a manhã distante em que o Coronel Gerineldo Márquez lhe permitira ver um fuzilamento. Entretanto, o mau agouro não alterou a sua gravidade. Fez a jogada que tinha prevista e não errou a carambola. Pouco depois, as descargas de bumbo, os latidos do clarim, os gritos e o tropel do povo lhe indicaram que não só a partida de bilhar, mas também a calada e solitária partida que jogava consigo mesmo desde a madrugada da execução, tinham, por fim, terminado. Então, chegou até a rua e viu. Eram três regimentos cuja marcha pautada por tambor de galés fazia a terra trepidar. O seu resfolegar de dragão multicéfalo impregnou de um vapor fedorento a claridade do meio-dia. Eram pequenos, maciços, brutos. Suavam com suor de cavalo e tinham um cheiro de carne viva macerada pelo sol e a impavidez taciturna e impenetrável dos homens do páramo. Embora demorassem mais de uma hora a passar, davam a impressão de ser uns poucos pelotões andando em círculo, porque todos eram idênticos, filhos da mesma mãe, e todos suportavam com igual imbecilidade o peso das mochilas e dos cantis, e a vergonha dos fuzis com as baionetas caladas, e a ferida da obediência cega e o sentido da honra. Úrsula os ouviu passar do seu leito de trevas e levantou a mão com os dedos cruzados. Santa Sofia de la Piedad existiu por um instante, inclinada sobre a toalha bordada que acabava de passar a ferro, e pensou em seu filho, José Arcadio Segundo, que viu passar, pela porta do Hotel de Jacob, sem se perturbar, os últimos soldados.
      A lei marcial facultava ao exército assumir funções de árbitro da controvérsia, mas não se fez nenhuma tentativa de conciliação. Imediatamente após se exibirem em Macondo, os soldados puseram de lado os fuzis, cortaram e embarcaram as bananas e movimentaram os trens. Os trabalhadores, que até então se haviam conformado com esperar, atiraram-se ao mato sem mais armas que os seus facões de trabalho, e começaram a sabotar a sabotagem. Incendiaram fazendas e armazéns, destruíram os trilhos para impedir o trânsito dos trens, que começavam a abrir caminho a fogo de metralhadora, e cortaram os fios do telégrafo e do telefone. Os canais de irrigação tingiram-se de sangue. O Sr. Brown, que estava vivo no galinheiro eletrificado, foi tirado de Macondo com a sua família e as de Outros compatriotas seus, e conduzido para território seguro sob a proteção do exército. A situação ameaçava evoluir para uma guerra civil desigual e sangrenta quando as autoridades fizeram um apelo aos trabalhadores para que se concentrassem em Macondo. O apelo anunciava que o chefe civil e militar da província chegaria na sexta-feira seguinte, disposto a interceder no conflito.
      José Arcadio Segundo estava entre a multidão que se concentrou na estação desde a manhã de sexta-feira. Tinha participado de uma reunião de dirigentes sindicais e tinha sido encarregado, junto com o Coronel Gavilán, de se confundir com a multidão e orientá-la segundo as circunstâncias. Não se sentia bem e moldava uma massa salitrosa no céu da boca desde que notou que o exército tinha colocado ninhos de metralhadoras em volta da praça e que a cidade cercada da companhia bananeira estava protegida por peças de artilharia. Até as doze, esperando um trem que não chegava, mais de três mil pessoas, entre trabalhadores, mulheres e crianças, tinham atulhado o espaço descoberto em frente da estação e se apertavam nas ruas adjacentes, que o exército fechara com filas de metralhadoras. Aquilo parecia, então, mais que uma recepção, uma feira jubilosa. Haviam transferido as barraquinhas de frituras e as tendas de bebidas da Rua dos Turcos e o povo suportava com muito boa vontade a amolação da espera e o sol abrasador. Um pouco antes das três, correu o boato de que o trem oficial não chegaria até o dia seguinte. A multidão cansada exalou um suspiro de desalento. Um tenente do exército subiu em seguida no teto da estação, onde havia quatro ninhos de metralhadoras apontadas contra a multidão, e deu um toque de silêncio. Ao lado de José Arcadio Segundo estava uma mulher descalça, muito gorda, com duas crianças de cerca de quatro e sete anos. Pegou o menor no colo e pediu a José Arcadio, sem reconhecê-lo, que levantasse o outro para que ouvisse melhor o que iam dizer. José Arcadio Segundo acavalou o menino na nuca. Muitos anos depois, esse menino haveria de continuar contando, sem que ninguém acreditasse, que tinha visto o tenente lendo com um megafone de vitrola o decreto Número 4 do Chefe Civil e Militar da província, assinado pelo General Carlos Cortes Vargas e pelo seu secretário, o Major Henrique García Isaza, e em três artigos de oitenta palavras classificava os grevistas de quadrilha de malfeitores e facultava ao exército o direito de matá-los a bala. Lido o decreto, no meio de uma ensurdecedora vaia protesto, um capitão substituiu o tenente no teto da estação e, com o megafone de vitrola, fez sinal de que queria falar.A multidão voltou a fazer silêncio.
      — Senhoras e senhores disse o capitão com uma baixa, lenta, um pouco cansada — têm cinco minutos para se retirar.
      A vaia e os gritos repetidos afogaram o toque de que anunciou o princípio do prazo. Ninguém se mexeu.
      — Já passaram os cinco minutos — disse o capitão mesmo tom. — Mais um minuto e atiramos.
      José Arcadio Segundo, suando gelo, desceu o menino ombros e o entregou à mulher. “Esses cornos são capazes disparar”, murmurou ela. José Arcadio Segundo não teve tempo de falar, porque no mesmo instante reconheceu a voz rouca do Coronel Gavilán fazendo eco com um grito às palavras da mulher. Embriagado pela tensão, pela maravilhosa profundidade do silêncio e, além disso, convencido de que nada faria se mover aquela multidão pasmada pela fascinação da morte, José Arcadio Segundo se ergueu acima das cabeças que tinha pela frente, e, pela primeira vez em sua vida, levantou a voz.
     
      — Cornos! —gritou.— Podem levar de presente o minuto que falta. Ao fim do seu grito aconteceu uma coisa que não lhe produziu espanto, mas uma espécie de alucinação. O capitão deu a ordem de fogo e quatorze ninhos de metralhadoras responderam imediatamente. Mas tudo parecia uma farsa. Era como se as metralhadoras estivessem carregadas com fogos artifício, porque se escutava o seu resfolegante matraquear se viam as suas cusparadas incandescentes, mas não se percebia a mais leve reação, nem uma voz, nem sequer um suspiro entre a multidão compacta que parecia petrificada por uma invulnerabilidade instantânea. De repente, de um lado da estação, um grito de morte quebrou o encantamento: “Aaaai, minha mãe.” Uma força sísmica, uma respiração vulcânica, um rugido de cataclismo arrebentaram no centro da multidão com uma descomunal potência expansiva. José Arcadio Segundo mal teve tempo de levantar o menino, enquanto a mãe e o outro eram absorvidos pela multidão centrifugada pelo pânico.
      Muitos anos depois, o menino haveria de contar ainda, apesar de os vizinhos continuarem a encará-lo como um velho maluco, que José Arcadio Segundo o erguera por cima da sua cabeça e se deixara arrastar, quase no ar, como que flutuando no terror da multidão, para uma rua adjacente. A posição privilegiada do menino lhe permitiu ver que nesse momento a massa ululante começava a chegar na esquina e a fila de metralhadoras abriu fogo. Várias vozes gritaram ao mesmo tempo:
      — Atirem-se no chão! Atirem-se no chão!
      Já os das primeiras linhas o tinham feito, varridos pelas rajadas da metralha. Os sobreviventes, em vez de se atirarem no chão, tentaram voltar à praça e o pânico deu uma rabanada de dragão, e os mandou numa onda compacta contra a outra onda compacta que se movimentava em sentido contrário, despedida pela outra rabanada de dragão da rua oposta, onde também as metralhadoras disparavam sem trégua. Estavam encurralados, girando num torvelinho gigantesco que pouco a pouco se reduzia ao seu epicentro, porque os seus bordos iam sendo sistematicamente recortados em círculo, como descascando uma cebola, pela tesoura insaciável e metódica da metralha. O menino viu uma mulher ajoelhada, com os braços em cruz, num espaço limpo, misteriosamente vedado aos disparos. Ali o colocou José Arcadio Segundo, no instante de cair com a cara banhada em sangue, antes que o tropel colossal arrasasse com o espaço vazio, com a mulher ajoelhada, com a luz do alto céu de seca e com o puto mundo onde Úrsula lguarán tinha vendido tantos animaizinhos de caramelo.
      Quando José Arcadio Segundo acordou, estava de peito para cima nas trevas. Percebeu que ia num trem interminável e silencioso, e que tinha o cabelo empastado pelo sangue seco e que lhe doíam todos os ossos. Sentiu um sono insuportável. Disposto a dormir muitas horas, a salvo do terror e do horror, acomodou-se do lado que lhe doía menos e só então descobriu que estava deitado sobre os mortos. Não havia um espaço livre no vagão, exceto o corredor central. Deviam ter passado várias horas do massacre, porque os cadáveres tinham a mesma temperatura do gesso no outono e a sua mesma consistência de espuma petrificada, e os que os tinham colocado no vagão tiveram tempo de arrumá-los na ordem e no sentido em que se transportavam os cachos de banana. Tentando fugir do pesadelo, José Arcadio Segundo arrastou-se de um vagão a outro, na direção em que avançava o trem, e, nos relâmpagos que surgiram por entre as esquadrias de madeira ao passar pelos povoados adormecidos, via os mortos homens, os mortos mulheres, os mortos crianças, que iam talvez ser atirados ao mar como as bananas refugadas. Só re conheceu uma mulher que vendia refrescos na praça e o Coronel Gavilán, que ainda trazia enrolado na mão o cinturão com a fivela. de prata mexicana com que tentara abrir caminho através do pânico. Quando chegou ao primeiro vagão deu um salto para a escuridão e ficou estendido na vala da estrada até que o trem acabou de passar. Era o mais comprido que já tinha visto, com quase duzentos vagões de carga e uma locomotiva em cada extremo e uma terceira no centro. Não tinha nenhuma luz, nem sequer os faróis vermelhos e verdes de disposição, e deslizava numa velocidade noturna e sigilosa. Em cima dos vagões se viam os vultos escuros dos soldados com as metralhadoras preparadas.
      Depois da meia-noite caiu um aguaceiro torrencial. Jose Arcadio Segundo ignorava onde tinha saltado mas sabia que caminhando em sentido contrário ao do trem chegaria a Macondo. Ao fim de mais de três horas de marcha, ensopado até os ossos, com uma dor de cabeça terrível, divisou as primeiras casas à luz do amanhecer. Atraído pelo cheiro do café, entrou numa cozinha onde uma mulher com uma criança no colo estava inclinada sobre o fogão.
      — Bom dia — disse exausto. — Sou José Arcadio Segundo Buendía.
      Pronunciou o nome completo, letra por letra, para se convencer de que estava vivo. Fez bem porque a mulher tinha pensado que era uma assombração, ao ver na porta a figura esquálida, sombria, com a cabeça e a roupa sujas de sangue e tocada pela solenidade da morte. Conhecia-o. Trouxe uma manta para que se cobrisse enquanto secava a roupa no fogão, esquentou água para que lavasse a ferida, que era apenas um arranhão na pele, e lhe deu uma fralda limpa para que vendasse a cabeça. Em seguida, serviu-lhe uma xícara de café, sem açúcar como lhe haviam dito que tomavam os Buendía, e estendeu a roupa perto do fogo.
      José Arcadio Segundo não falou enquanto não terminou de tomar o café.
      — Deviam ser uns três mil — murmurou.
      — O quê?
      — Os mortos — esclareceu ele. — Deviam ser todos os que estavam na estação.
      A mulher mediu-o com um olhar de pena. “Aqui não houve mortos”, disse. “Desde a época do seu tio, o coronel, que não acontece nada em Macondo.” Em três cozinhas onde se deteve José Arcadio Segundo antes de chegar em casa lhe disseram a mesma coisa: “Não houve mortos.” Passou pela praça da estação e viu as mesas de frituras amontoadas uma em cima da outra e tampouco ali encontrou algum rastro do massacre. As ruas estavam desertas sob a chuva tenaz e as casas fechadas, sem vestígios de vida interior. O único sinal humano era o primeiro toque para a missa. Bateu na porta da casa do Coronel Gavilán. Uma mulher grávida, que tinha visto muitas vezes, fechou-lhe a porta na cara. “Foi-se embora”, disse assustada. “Voltou para a terra dele.” A entrada principal do galinheiro entelado estava vigiada, como sempre, por dois guardas locais que pareciam de pedra sob a chuva, com capas e capacetes de impermeável. Na sua ruazinha marginal, os negros antilhanos cantavam em coro os salmos de sábado. José Arcadio Segundo pulou a cerca do quintal e entrou em casa pela cozinha. Santa Sofia de la Piedad mal levantou a voz. “Que Fernanda não te veja”, disse. “Agora mesmo estava se levantando.” Como se cumprisse um pacto implícito, levou o filho para o quarto dos penicos, arrumou-lhe o arrebentado catre de Melquíades e às duas da tarde, enquanto Fernanda fazia a sesta, passou-lhe pela janela um prato de comida.
      Aureliano Segundo dormira em casa porque a chuva o surpreendera ali e, às três da tarde, ainda continuava esperando que estiasse. Informado em segredo por Santa Sofía de la Piedad, a essa hora visitou o irmão no quarto de Melquíades. Tampouco ele acreditou na versão do massacre nem no pesadelo do trem carregado de mortos que viajava para o mar. Na noite anterior tinham lido uma comunicação nacional extraordinária, para informar que os operários tinham obedecido à ordem de evacuar a estação e se dirigiram para as suas casas em caravanas pacíficas. A comunicação informava também que os dirigentes sindicais, com um elevado espírito patriótico, tinham reduzido as suas reivindicações a dois pontos: reforma dos serviços médicos e construção de latrinas nas vivendas. Informou-se mais tarde que, quando as autoridades militares obtiveram o acordo dos trabalhadores, apressaram-se em comunicá-lo ao Sr. Brown e que este não só tinha aceito as novas condições como também oferecera pagar três dias de festas públicas para celebrar o fim do conflito. Só que quando os militares lhe perguntaram para que data se podia anunciar a assinatura do acordo, ele olhou pela janela do céu listrado de relâmpagos e fez um profundo gesto de incerteza:
      — Quando estiar — disse. — Enquanto durar a chuva suspendemos todas as atividades.
      Não chovia há três meses e era tempo de seca. Mas quando o Sr. Brown anunciou a sua decisão, precipitou-se em toda a zona bananeira o aguaceiro torrencial que surpreendeu José Arcadio Segundo a caminho de Macondo. Uma semana depois continuava chovendo. A versão oficial, mil vezes repetida e repisada em todo o país por quanto meio de divulgação o Governo encontrou ao seu alcance, terminou por se impor: não houve mortos, os trabalhadores satisfeitos tinham voltado para o seio das suas famílias, e a companhia bananeira suspendia as suas atividades até passar a chuva. A lei marcial. continuava, prevendo que fosse necessário aplicar medidas de emergência para a calamidade pública do aguaceiro interminável, mas a tropa estava aquartelada. Durante o dia, os militares andavam pelas torrentes das ruas, com as calças enroladas na metade da perna, brincando de naufrágio com as crianças. De noite, depois do toque de recolher, derrubavam as portas a coronhadas, arrancavam os suspeitos das camas e os levavam para uma viagem sem regresso. Era ainda a busca e o extermínio dos malfeitores, assassinos, incendiários e revoltosos do Decreto Número Quatro, mas os militares o negavam aos próprios parentes das suas vítimas, que atulhavam os escritórios dos comandantes em busca de notícias. “Claro que foi um sonho”, insistiam os oficiais. “Em Macondo não aconteceu nada, nem está acontecendo nem acontecerá nunca. É um povoado feliz.” Assim consumaram o extermínio dos lideres sindicais.
      O único sobrevivente foi José Arcadio Segundo. Uma noite de fevereiro se ouviram na porta as batidas inconfundíveis das coronhas. Aureliano Segundo, que continuava esperando que estiasse para sair, abriu a seis soldados comandados por um oficial. Ensopados de chuva, sem pronunciar uma palavra, revistaram a casa cômodo por cômodo, armário por armário, das salas até a despensa. Úrsula acordou quando acenderam a luz do quarto e não exalou um suspiro enquanto durou a revista, mas manteve os dedos cruzados, movendo-os para onde os soldados se moviam. Santa Sofía de la Piedad conseguiu prevenir José Arcadio Segundo que dormia no quarto de Melquíades, mas ele compreendeu que era tarde demais para tentar a fuga. De modo que Santa Sofía de la Piedad tornou a fechar a porta e ele pôs a camisa e os sapatos e se sentou no catre para esperar que chegassem. Nesse momento estavam revistando a oficina de ourivesaria. O oficial tinha feito abrir o cadeado e, com uma rápida passagem da lanterna, tinha visto a mesa de trabalho e a prateleira com os frascos de ácidos e os instrumentos que continuavam no mesmo lugar em que os deixara o seu dono e pareceu compreender que naquele quarto não vivia ninguém. Entretanto, perguntou astutamente a Aureliano Segundo se era ourives e ele lhe contou que aquela tinha sido a oficina do Coronel Aureliano Buendía. “Ãhã”, fez o oficial e acendeu a luz e ordenou uma vista tão minuciosa que não lhes escaparam os dezoito peixinhos de ouro que tinham ficado sem fundir e que estavam escondidos atrás dos frascos na vasilha de lata. O oficial os examinou um por um na mesa de trabalho e então se humanizou por completo. “Eu gostaria de levar um para mim, se o senhor permite”, disse. “Em certa época foram uma senha da subversão, mas agora são uma relíquia.” Era jovem, um adolescente, sem nenhum sinal de timidez e com uma simpatia natural que não tinha sido notada até então. Aureliano Segundo lhe deu o peixinho de presente. O oficial o guardou no bolso da camisa, com um brilho infantil nos olhos, e jogou os outros na vasilha para colocá-los onde estavam.
      — É uma lembrança inestimável — disse. — O Coroa Aureliano Buendía foi um dos nossos maiores homens.
      Entretanto, o acesso de humanização não modificou a conduta profissional. Diante do quarto de Melquíades, estava outra vez com cadeado, Santa Sofia de la Piedad lançou mão de uma última esperança. “Faz mais ou menos século que não vive ninguém neste quarto”, disse. O oficial o fez abrir, percorreu-o com o foco da lanterna, e Aureliano Segundo e Santa Sofía de la Piedad viram os olhos árabes de José Arcadio Segundo no momento em que passou pela cara a rajada de luz e compreenderam que aquele era o fim de uma ansiedade e o princípio de outra que só encontraria alívio na resignação. Mas o oficial continuou examinando cômodo com a lanterna e não deu nenhum sinal de interesse enquanto não descobriu os setenta e dois penicos arregimentados nos armários. Então acendeu a luz. José Arcadio Segundo estava sentado na ponta do catre, pronto para sair, mais grave e pensativo do que nunca. Ao fundo estavam as prateleiras com os livros escalavrados, os rolos de pergaminho e a mesa de trabalho limpa e arrumada e ainda fresca a tinta nos tinteiros. Havia a mesma pureza no ar, a mesma diafanidade, o mesmo privilégio contra a poeira e a destruição que conhecera Aureliano Segundo na infância e que só o Coronel Aureliano Buendía não pudera perceber. Mas o oficial não se interessou a não ser pelos penicos.
      — Quantas pessoas vivem nesta casa? — perguntou.
      — Cinco.
      O oficial, evidentemente, não entendeu. Deteve o olhar no espaço onde Aureliano Segundo e Santa Sofia de la Piedad continuavam vendo José Arcadio Segundo e também este se deu conta de que o militar estava olhando para ele sem vê-lo. Em seguida apagou a luz e encostou a porta. Quando falou com os soldados, Aureliano Segundo compreendeu que o jovem militar tinha visto o quarto com os mesmos olhos com que o vira o Coronel Aureliano Buendía.
      — É verdade que ninguém entra nesse quarto há pelo menos um século — disse o oficial aos soldados. — Deve ter até cobra.
      Ao se fechar a porta, José Arcadio Segundo teve a certeza de que a sua guerra tinha terminado. Anos antes, o Coronel Aureliano Buendía lhe falara da fascinação da guerra e tratara de demonstrá-la com exemplos inumeráveis tirados da sua própria experiência. Ele tinha acreditado. Mas na noite em que os militares o olharam sem vê-lo, enquanto pensava na tensão dos últimos meses, na miséria da prisão, no pânico da estação e no trem carregado de mortos, José Arcadio Segundo chegou à conclusão de que o Coronel Aureliano Buendía não fora mais que um farsante ou um imbecil. Não entendia que tivesse necessitado tantas palavras para explicar o que se sentia na guerra, se uma só bastava: medo. No quarto de Melquíades, pelo contrário, protegido pela luz sobrenatural, pelo barulho da chuva, pela sensação de ser invisível, encontrou o repouso que não tinha tido por um só instante na sua vida anterior e o único medo que persistia era o de que o enterrassem vivo. Contou isso para Santa Sofia de la Piedad, que lhe trazia as refeições diárias, e ela lhe prometeu lutar para estar viva até além das suas forças, para assegurar-se de que só o enterrariam morto. A salvo de todo o temor, José Arcadio Segundo se dedicou então a reler muitas vezes os pergaminhos de Melquíades, tanto mais satisfeito quanto menos os entendia. Acostumado com o barulho da chuva, que ao fim de dois meses se transformou numa nova forma de silencio, a única coisa que perturbava a sua solidão eram as entradas e saídas de Santa Sofia de la Piedad. Por isso lhe suplicou que deixasse a comida no parapeito da janela e pusesse o cadeado na porta. O resto da família o esqueceu, inclusive Fernanda, que não teve inconveniente em deixá-lo ali, quando soube que os militares o tinham visto sem reconhecer. Depois de seis meses de clausura, em vista de terem os militares deixado Macondo, Aureliano Segundo tirou o cadeado, procurando alguém com quem conversar enquanto não passava a chuva. Desde que abriu a porta se sentiu agredido pelo mau cheiro dos penicos que estavam colocados no chão e todos muitas vezes ocupados. José Arcadio Segundo, devorado pela careca, indiferente ao ar rarefeito pelos vapores nauseabundos, continuava lendo e relendo os pergaminhos ininteligíveis. Estava iluminado por um brilho seráfico. Mal levantou a vista quando sentiu que a porta se abria, mas ao irmão bastou aquele olhar para ver repetido nele o destino irreparável do bisavô.
      — Eram mais de três mil — foi tudo quanto disse José Arcadio Segundo. — Agora estou certo de que eram todos os que estavam na estação.




Foto tirada por Patrick Curry.