sábado

Capítulo XIV


      AS ÚLTIMAS férias de Meme coincidiram com o luto pela morte do Coronel Aureliano Buendía. Na casa fechada não havia lugar para festas. Falava-se por sussurros, comia-se em silêncio, rezava-se o rosário três vezes por dia e até os exercícios de clavicórdio, no calor da sesta, tinham uma ressonância fúnebre. Apesar da sua secreta hostilidade contra o coronel, foi Fernanda quem impôs o rigor daquele luto, impressionada com a solenidade com que o Governo exaltou a memória do inimigo morto. Aureliano Segundo, como de costume, voltou a dormir em casa durante as férias da filha; e alguma coisa Fernanda deve ter feito para recuperar os seus privilégios de esposa legítima, porque no ano seguinte Meme encontrou uma irmãzinha recém-nascida, a quem batizaram, contra a vontade da mãe, com o nome de Amaranta Úrsula.
      Meme terminara os estudos. O diploma que a credenciava como concertista de clavicórdio foi ratificado pelo virtuosismo com que executou temas populares do éculo XVII na festa organizada para celebrar a sua formatura e com a qual se pôs fim ao luto. Os convidados admiraram, mais do que a arte, a sua estranha dualidade. Seu temperamento frívolo e até um pouco infantil não parecia adequado a nenhuma atividade séria, mas quando se sentava ao clavicórdio se transformava numa moça diferente, a quem a maturidade imprevista trazia um ar de adulto. Sempre fora assim. Na verdade não tinha uma vocação definida, mas conseguira as notas altas através de uma disciplina inflexível, para não contrariar a mãe. Poderiam ter-lhe imposto a aprendizagem de outro ofício e os resultados seriam os mesmos. Desde menina a incomodava o rigor de Fernanda, o seu costume de decidir pelos outros, e teria sido capaz de um sacrifício muito mais duro que as lições de clavicórdio, só para não tropeçar na sua intransigência. No ato de encerramento, teve a impressão de que o pergaminho com letras góticas e maiúsculas ornamentadas a liberava de um compromisso que tinha aceito não tanto por obediência quanto por comodidade, e acreditou que a partir de então nem a teimosa Fernanda tornaria a se preocupar com um instrumento que até as freiras consideravam como um fóssil de museu. Nos primeiros anos pensou que os seus cálculos estavam errados, porque depois de ter feito adormecer meia cidade não só na sala de visitas, mas também em quantos saraus beneficentes, festas escolares e comemorações patrióticas foram celebrados em Macondo, sua mãe continuou convidando a todo recém-chegado que supunha capaz de apreciar as virtudes da filha. Só depois da morte de Amaranta, quando a família voltou a se fechar por algum tempo no luto, é que Meme pôde trancar o clavicórdio e esquecer a chave em algum armário, sem que Fernanda se incomodasse em verificar em que momento nem por culpa de quem ela se havia extraviado. Meme resistiu às exibições com o mesmo estoicismo com que se consagrara à aprendizagem. Era o preço da sua liberdade. Fernanda estava tão satisfeita com a sua docilidade e tão orgulhosa da admiração que a sua arte despertava que nunca se opôs a que tivesse a casa sempre cheia de amigas e passasse a tarde nas plantações e fosse ao cinema com Aureliano Segundo ou com senhoras de confiança, sempre que o filme tivesse sido autorizado no púlpito pelo Padre Antonio Isabel. Naqueles momentos de descontração é que se revelavam os verdadeiros gostos de Meme. A sua felicidade estava no outro extremo da disciplina, nas festas ruidosas, nos fuxicos de namoro, em trancar-se prolongadamente com as amigas em cantos onde aprendiam a fumar e conversavam de assuntos de homem, e onde uma vez passaram a mão em três garrafas de rum e acabaram nuas, medindo e comparando as partes do corpo. Meme não se esqueceu nunca da noite em que entrou em casa mastigando alcaçuz e, sem que percebessem a sua perturbação, sentou-se à mesa em que Fernanda e Amaranta jantavam sem se dirigir a palavra. Tinha passado duas horas tremendas no quarto de uma amiga, chorando de rir e de medo, e no outro lado da crise encontrara o estranho sentimento de valentia que lhe faltara para fugir do colégio e dizer à mãe, com estas ou com outras palavras, que ela podia muito bem tomar uma lavagem de clavicórdio. Sentada na cabeceira da mesa, tomando um caldo de galinha que lhe caía no estômago como um elixir de ressurreição, Meme viu, então, Fernanda e Amaranta envoltas no halo acusador da realidade. Teve que fazer um esforço enorme para não jogar na cara delas os seus gestos, a sua pobreza de espírito, os seus delírios de grandeza. Desde as segundas férias que sabia que o pai só vivia em casa para salvar as aparências, e conhecendo Fernanda como conhecia, e tendo dado um jeito, mais tarde, de conhecer Petra Cotes, dera razão ao pai. Ela também teria preferido ser filha da concubina. No embotamento do álcool, Meme pensava com deleite no escândalo que teria provocado se, naquele momento, tivesse expressado os seus pensamentos e foi tão intensa a satisfação intima da picardia que Fernanda percebeu.
      — O que é que há com você? — perguntou.
      — Nada — respondeu Meme. — É que só agora descobri como eu amo vocês.
      Amaranta assustou-se com a evidente carga de ódio que trazia a declaração. Mas Fernanda ficou tão comovida que pensou que ia ficar louca quando Meme acordou à meia-noite com a cabeça estalando de dor e sufocando em vômitos de bile. Deu-lhe um frasco de óleo de rícino, aplicou-lhe cataplasma no ventre e bolsas de gelo na cabeça, e obrigou-a a seguir a dieta e o repouso de cinco dias ordenados pelo novo e extravagante médico francês que, depois de examiná-la durante mais de duas horas, chegou à conclusão nebulosa de que tinha uma perturbação própria de mulher. Abandonada pela valentia, num miserável estado de desmoralização, não lhe restou outro recurso senão agüentar. Úrsula, já completamente cega, mas ainda ativa e lúcida, foi a única que intuiu o diagnóstico exato. “Para mim”, pensou, “estas são as mesmas coisas que acontecem com os bêbados.” Mas não só recusou a idéia, como também reprovou a leviandade do pensamento. Aureliano Segundo sentiu a consciência doendo quando viu o estado de prostração de Meme e prometeu a si mesmo se ocupar mais dela no futuro. Foi assim que nasceu a relação de alegre camaradagem entre o pai e a filha, que o livrou por algum tempo da amarga solidão das festanças e livrou a ela da autoridade de Fernanda sem ter que provocar a crise doméstica que já parecia inevitável. Aureliano Segundo passou a adiar qualquer compromisso para estar com Meme, para levá-la ao cinema ou ao circo, e lhe dedicava a maior parte do seu ócio. Nos últimos tempos, o estorvo da obesidade absurda que já não lhe permitia amarrar os cordões dos sapatos, e a satisfação abusiva de toda espécie de apetites, tinham começado a lhe azedar o temperamento. A descoberta da filha restituiu-lhe a antiga jovialidade e o prazer de estar com ela o ia afastando pouco a pouco da dissipação. Meme despontava para uma idade frutífera. Não era bela, como nunca o fora Amaranta, mas em compensação era simpática, simples, e tinha a virtude de causar boa impressão desde o primeiro momento. Tinha um espírito moderno que feria a antiquada sobriedade e o mal dissimulado coração avaro de Fernanda e que, pelo contrário, Aureliano Segundo sentia prazer em patrocinar. Foi ele quem resolveu tirá-la do quarto que ocupava desde menina e onde os olhos assombrados dos santos continuavam alimentando os seus terrores de adolescente, e mobiliou para ela um aposento com uma cama de dossel, uma penteadeira ampla e cortinas de veludo, sem perceber que estava fazendo uma segunda versão do dormitório de Petra Cotes. Era tão pródigo com Meme que nem sequer sabia quanto dinheiro lhe dava, porque ela mesma o tirava dos seus bolsos; e a mantinha em dia com quanta novidade embelezadora chegasse aos armazéns da companhia bananeira. O quarto de Meme se encheu de pedra-pomes para lustrar as unhas, enroladores de cabelo, polidores de dentes, colírios para fazer o olhar lânguido, e tantos e tão inovadores cosméticos e aparelhos de beleza que cada vez que Fernanda entrava no dormitório se escandalizava com a idéia de que a penteadeira da filha devia ser igual à das matronas francesas. Entretanto, Fernanda andava nessa época com o tempo dividido entre apequena Amaranta Úrsula, que era caprichosa e doentia, e uma emocionante correspondência com os médicos invisíveis. Por isso, quando notou a cumplicidade do pai com a filha, a única promessa que arrancou de Aureliano Segundo foi a de que nunca levaria Meme à casa de Petra Cotes. Era uma advertência sem sentido, porque a concubina estava tão amolada com a camaradagem do amante com a filha que não queria saber de nada com ela. Atormentava-a um temor desconhecido, como se o instinto lhe indicasse que Meme, bastando querer, poderia conseguir o que Fernanda não pudera: privá-la de um amor que já considerava assegurado até a morte. Pela primeira vez, Aureliano Segundo teve que agüentar as caras fechadas e as violentas ladainhas da concubina, e temeu até que os seus levados e trazidos baús fizessem o caminho de volta para a casa da esposa. Isto não aconteceu. Ninguém conhecia melhor um homem que Petra Cotes o seu amante, e ela sabia que os baús ficariam no lugar para onde tivessem sido mandados, porque se havia uma coisa que Aureliano Segundo detestava era complicar a vida com retificações e mudanças. De modo que os baús ficaram onde estavam e Petra Cotes se empenhou em reconquistar o homem afiando as únicas armas com que a filha não podia lutar. O que foi também um trabalho desnecessário, porque Meme nunca tivera o propósito de intervir nos assuntos particulares do pai e certamente se o fizesse seria em favor da concubina. Não lhe sobrara tempo para amolar ninguém. Ela mesma varria o quarto e arrumava a cama, como lhe ensinaram as freiras. De manhã se ocupava da sua roupa, bordando na varanda ou cosendo na velha máquina de manivela de Amaranta. Enquanto os outros faziam a sesta, praticava o clavicórdio durante duas horas, sabendo que o sacrifício diário manteria Fernanda calma. Pelo mesmo motivo, continuava oferecendo concertos em bazares eclesiásticos e festas escolares, embora as solicitações fossem cada vez menos freqüentes. Á tardinha se arrumava, punha as suas roupas simples e as suas duras botinas e, se não tinha nada para fazer com o pai, ia à casa de suas amigas, onde ficava até a hora do jantar. Era excepcional que Aureliano Segundo não fosse buscá-la para levá-la ao cinema.
      Entre as amigas de Meme havia três jovens norte-americanas que tinham rompido o cerco do galinheiro eletrificado e feito amizade com as moças de Macondo. Uma delas era Patricia Brown. Agradecido à hospitalidade de Aureliano Segundo, o Sr. Brown abriu as portas da sua casa a Meme e a convidou para os bailes de sábado, que eram os únicos em que os ianques se misturavam com os nativos. Quando Fernanda soube, esqueceu-se por um momento de Amaranta Úrsula e dos médicos invisíveis e armou todo um melodrama. “Imagine”, disse a Meme, “o que vai pensar o coronel no túmulo. Procurava, é claro, o apoio de Úrsula. Mas a anciã cega, ao contrário do que todos esperavam, considerou que não havia nada de reprovável em Meme assistir aos bailes e cultivar amizade com as norte-americanas da sua idade, desde que conservasse a firmeza do seu caráter e não se deixasse converter à religião protestante. Meme captou muito bem o pensamento da tataravó e, no dia seguinte aos bailes, se levantava mais cedo do que de costume para ir à missa. A oposição de Fernanda persistiu até o dia em que Meme a desarmou com a notícia de que os norte-americanos queriam ouvi-la tocar clavicórdio. O instrumento foi tirado uma vez mais de casa e levado para a do Sr. Brown, onde efetivamente a jovem concertista recebeu os aplausos mais sinceros e as felicitações mais entusiastas. A partir de então não só a convidavam para os bailes, mas também para os banhos dominicais na piscina e para almoçar uma vez por semana. Meme aprendeu a nadar como uma profissional, a jogar tênis e a comer presunto de Virgínia com fatias de abacaxi. Entre bailes, piscina e tênis, viu-se de repente falando inglês. Aureliano Segundo se entusiasmou tanto com os progressos da filha que comprou de um caixeiro viajante uma enciclopédia inglesa em seis volumes e com numerosas ilustrações a cores que Meme lia nas horas vagas. A leitura ocupou a atenção que antes destinava aos fuxicos de namoro ou aos segredos experimentais com as suas amigas, não porque o impusesse como disciplina, mas porque já tinha perdido todo o interesse em comentar mistérios que eram do domínio público. Recordava a bebedeira como uma aventura infantil e lhe parecia tão divertida que contou a Aureliano Segundo, a quem pareceu mais divertida ainda. “Se a sua mãe soubesse”, disse a ela, sufocando de rir, como dizia sempre que ela lhe fazia uma confidência. Ele lhe havia feito prometer que com essa mesma intimidade pô-lo-ia a par do seu primeiro namoro e Meme lhe havia contado que simpatizava com um cabelo-de-fogo norte-americano que tinha vindo passar as férias com os pais. “Que horror”, riu Aureliano Segundo. “Se a sua mãe soubesse.” Mas Meme contou também que o rapaz tinha regressado ao seu país e não dera mais sinal de vida. A sua maturidade de espírito assegurou a paz doméstica. Aureliano Segundo, então, dedicava mais horas a Petra Cotes e, embora já o corpo e a alma não estivessem para farras como as de antes, não perdia ocasião de promovê-las e desencafuar o acordeão, que já tinha algumas teclas amarradas com cordões de sapatos. Em casa, Amaranta bordava a sua interminável mortalha e Úrsula se deixava arrastar pela decrepitude até o fundo das trevas, onde a única coisa que continuava sendo visível era o espectro de José Arcadio Buendía debaixo do castanheiro. Fernanda consolidou a sua autoridade. As cartas mensais ao filho José Arcadio não traziam mais sequer uma linha de mentira e só escondia dele a sua correspondência com os médicos invisíveis, que lhe haviam diagnosticado um tumor benigno no intestino grosso e a estavam preparando para uma intervenção telepática.
      Ter-se-ia dito que na cansada mansão dos Buendía havia paz e felicidade rotineira para muito tempo, se a intempestiva morte de Amaranta não tivesse promovido um novo escândalo. Foi um acontecimento inesperado. Embora estivesse velha e afastada de todos, ainda parecia firme e reta e com a saúde de ferro que sempre tivera. Ninguém mais soube do seu pensamento, desde a tarde em que recusou definitivamente o Coronel Gerineldo Márquez e se trancou no quarto chorando. Quando saiu, tinha esgotado todas as suas lágrimas. Não foi vista chorando com a subida ao céu de Remedios, a bela, nem com o extermínio dos Aurelianos, nem com a morte do Coronel Aureliano Buendía, que era a pessoa a quem mais amara neste mundo, embora só o pudesse demonstrar quando encontraram o cadáver debaixo do castanheiro. Ela ajudou a levantar o corpo. Vestiu-o com os seus enfeites de guerreiro, barbeou-o, penteou-o, e engomou-lhe o bigode melhor do que ele mesmo o fazia nos seus anos de glória. Ninguém pensou que houvesse amor naquele ato, porque estavam acostumados com a familiaridade de Amaranta para com os ritos da morte. Fernanda se escandalizava com o fato de ela não entender as relações do catolicismo com a vida, mas unicamente as suas relações com a morte, como se não fosse uma religião mas um prospecto de convencionalismos funerários. Amaranta estava perdida por demais no labirinto das suas lembranças para entender aquelas sutilezas apologéticas. Tinha chegado à velhice com todas as suas saudades vivas. Quando escutava as valsas de Pietro Crespi sentia a mesma vontade de chorar que tivera na adolescência, como se o tempo e as suas punições não tivessem servido para nada. Os rolos de música que ela mesma jogara no lixo, com o pretexto de que estavam apodrecendo com a umidade, continuavam girando e percutindo os marteletes na sua memória. Tinha tentado afogá-los na paixão pantanosa que se permitira com o seu sobrinho Aureliano José e tinha tentado se refugiar na proteção serena e viril do Coronel Gerineldo Márquez, mas não conseguira derrotá-los nem com o ato mais desesperado da sua velhice, quando banhava o pequeno José Arcadio, três anos antes de que o mandassem para o seminário, e o acariciava não como faria uma avó com um neto, mas como teria feito uma mulher com um homem, como se contava que faziam as matronas francesas, e como ela quisera fazer com Pietro Crespi, aos doze, aos quatorze anos, quando o vira com a sua malha de balé e a varinha mágica com que marcava o compasso do metrônomo. Ás vezes lhe doía ter deixado com a sua passagem aquele riacho de miséria e às vezes sentia tanta raiva que espetava os dedos nas agulhas, porém mais lhe doía e com mais raiva ficava e mais lhe amargava o fragrante e bichado goiabal de amor que ia arrastando até a morte.* Do mesmo jeito como o Coronel Aureliano Buendía pensava na guerra sem o poder evitar, Amaranta pensava em Rebeca. Mas enquanto seu irmão tinha conseguido esterilizar as lembranças, ela só tinha conseguido avivá-las. A única coisa que rogou a Deus durante muitos anos foi que não lhe impingisse o castigo de morrer antes de Rebeca. Cada vez que passava pela sua casa e notava os progressos da destruição, se satisfazia com a idéia de que Deus a estava ouvindo. Uma tarde, quando costurava na varanda, teve a certeza de que estaria sentada nesse lugar, nessa mesma posição e sob essa mesma luz quando lhe trouxessem a notícia da morte de Rebeca. Sentou-se para esperá-la como quem espera uma carta e a verdade é que em certa época arrancava botões para tornar a pregá-los de modo a que a ociosidade não que se aproximava o fim irremediável, ia compreendendo que só um milagre permitiria que prolongasse o trabalho para além da morte de Rebeca; mas a própria concentração lhe proporcionou a calma que lhe faltava para aceitar a idéia de uma frustração. Foi então que entendeu o círculo vicioso dos peixinhos de ouro do Coronel Aureliano Buendía.
      O mundo se reduziu à superfície da sua pele e o interior ficou a salvo de toda a amargura. Doeu-lhe não ter tido aquela revelação muitos anos antes, quando ainda seria possível purificar as lembranças e reconstruir o Universo sob uma luz nova e evocar sem estremecer o cheiro de alfazema de Pietro Crespi ao entardecer e resgatar Rebeca do seu ambiente de miséria, não por ódio nem por amor, mas pela compreensão sem limite da solidão. O ódio que percebeu certa noite nas palavras de Meme não a comoveu porque a ofendesse, mas porque se sentiu repetida em outra adolescência que parecia tão limpa como devia ter parecido a sua e que, entretanto, já estava viciada pelo rancor. Mas na época já era tão profunda a conformidade com o seu destino que nem sequer a inquietou a certeza de que estavam fechadas todas as possibilidades de retificação. O seu único objetivo foi terminar a mortalha. Em vez de retardá-la com preciosismos inúteis, como fizera a princípio, apressou o trabalho. Uma semana antes, calculou que daria o último ponto na noite de quatro de fevereiro e, sem revelar o motivo, sugeriu a Meme que antecipasse um concerto de clavicórdio que tinha previsto para o dia seguinte, mas ela não lhe fez caso. Amaranta procurou então uma maneira de se atrasar quarenta e oito horas e até pensou que a morte a estava satisfazendo, porque na noite de quatro de fevereiro uma tempestade desarranjou a rede elétrica. Mas no dia seguinte, às oito da manhã, deu o último ponto no trabalho mais primoroso que mulher alguma terminara jamais e anunciou sem o menor dramatismo que morreria ao entardecer. Preveniu não só a família como toda a população, porque Amaranta se metera na cabeça que poderia reparar toda uma vida de mesquinharia com um último favor ao mundo, e pensou que nenhum era melhor do que levar cartas aos mortos.
      A notícia de que Amaranta Buendía zarpava ao crepúsculo, levando o correio da morte, foi divulgada em Macondo antes do meio-dia e, às três da tarde, já havia na sala um caixote cheio de cartas. Os que não quiseram escrever deram a Amaranta recados verbais que ela anotou numa caderneta, com o nome e a data de morte do destinatário. “Não se preocupe”, tranqüilizava os remetentes. “A primeira coisa que farei ao chegar será perguntar por ele, e então darei o seu recado.” Parecia uma farsa. Amaranta não revelava nenhuma perturbação, nem o mais leve sinal de dor e até parecia um pouco rejuvenescida pelo dever cumprido. Estava tão erecta e esbelta como sempre. Não fossem as maçãs do rosto endurecidas e a falta de alguns dentes, pareceria muito menos velha do que era na realidade. Ela mesma ordenou que se pusessem as cartas numa caixa lacrada e indicou a maneira como deveria ser colocada no túmulo para preservá-la melhor da umidade. De manhã tinha chamado um carpinteiro que lhe tomou as medidas para o ataúde, de pé, na sala, como se fossem para um vestido.
      Despertou-se-lhe um tal dinamismo nas últimas horas, que Fernanda pensou que estivesse zombando de todos. Úrsula, com a experiência de que os Buendía morriam sem doença, não pôs em dúvida que Amaranta tivesse tido o presságio da morte, mas em todo caso atormentou-a o temor de que na azáfama das cartas e na ansiedade de que chegassem logo, os ofuscados remetentes não a fossem enterrar viva. De modo que se empenhou em esvaziar a casa, brigando aos gritos com os intrusos e, às quatro da tarde, tinha conseguido. A essa hora, Amaranta acabava de repartir as suas coisas entre os pobres e só tinha deixado sobre o severo ataúde de tábuas sem lixar a muda de roupa e os chinelos simples de pelúcia que haveria de calçar na morte. Não passou por alto essa precaução, ao recordar que quando o Coronel Aureliano Buendía morreu tinham tido que comprar um par de sapatos novos, porque só lhe restavam as pantufas que usava na oficina. Pouco antes das cinco, Aureliano Segundo veio buscar Meme para o concerto e se surpreendeu de que a casa estivesse preparada para o funeral. Se alguém parecia vivo a essa hora era a serena Amaranta, a quem o tempo chegara até para tirar os calos. Aureliano Segundo e Meme se despediram dela com adeuses de brincadeira e lhe prometeram que no sábado seguinte dariam uma festa de ressurreição. Atraído pelas vozes públicas de que Amaranta Buendía estava recebendo cartas para os mortos, o Padre Antonio Isabel chegou às cinco com o viático e teve que esperar mais de quinze minutos para que a moribunda saísse do banho. Quando a viu aparecer com uma camisola de morim e o cabelo solto nas costas, o decrépito pároco pensou que fosse uma brincadeira e despachou o coroinha. Pensou, entretanto, em aproveitar a ocasião para confessar Amaranta depois de quase vinte anos de reticência.
      Amaranta respondeu, simplesmente, que não precisava de assistência espiritual de nenhuma espécie porque tinha a consciência limpa. Fernanda se escandalizou. Sem se importar que a ouvissem, perguntou em voz alta que pecado terrível teria cometido Amaranta para preferir uma morte sacrílega à vergonha de uma confissão. Então Amaranta se deitou e obrigou Úrsula a dar testemunho público da sua virgindade.
      — Que ninguém tenha ilusões — gritou, para que a ouvisse Fernanda. — Amaranta Buendía se vai desde mundo como veio.
      Não voltou a se levantar. Recostada em almofadões, como se na verdade estivesse doente, teceu as suas longas tranças e enrolou-as sobre as orelhas, exatamente como a morte lhe dissera que deveria estar no ataúde. Em seguida pediu a Úrsula um espelho e pela primeira vez em mais de quarenta anos viu o seu rosto devastado pela idade e pelo martírio e se surpreendeu do quanto se parecia com a imagem mental que tinha de si mesma. Úrsula compreendeu pelo silêncio da alcova que tinha começado a escurecer.
      — Despeça-se de Fernanda — suplicou a ela. — Um minuto de reconciliação tem mais mérito do que toda uma vida de amizade.
      — Já não vale a pena — respondeu Amaranta.
      Meme não pôde deixar de pensar nela quando acenderam as luzes do improvisado cenário e começou a segunda parte do programa. Na metade da peça alguém lhe deu a notícia no ouvido e o ato foi suspenso. Quando chegou em casa, Aureliano Segundo teve que abrir caminho aos empurrões por entre a multidão para ver o cadáver da velha donzela, feia e de má cor, com a venda negra na mão e envolta na mortalha primorosa. Estava exposto na sala junto ao caixote do correio.
      Úrsula não voltou a se levantar depois das nove noites de Amaranta. Santa Sofia de la Piedad tomou conta dela. Levava-lhe a comida no quarto e a água da bilha para que se lavasse e a mantinha a par de quanto se passava em Macondo. Aureliano Segundo a visitava com freqüência e lhe levava roupas que ela punha perto da cama, junto com as coisas mais indispensáveis para o viver diário, de modo que em pouco tempo tinha construído para si um mundo ao alcance da mão. Conseguiu despertar um grande afeto na pequena Amaranta Úrsula, que era idêntica a ela, e a quem ensinou a ler. A sua lucidez, a habilidade para se bastar a si mesma faziam pensar que estava naturalmente vencida pelo peso dos cem anos mas, embora fosse evidente que andava mal da vista, ninguém suspeitou que estivesse completamente cega. Dispunha então de tanto tempo e de tanto silêncio interior para vigiar a vida da casa que foi ela a primeira a perceber a calada angústia de Meme.
      — Venha cá — disse a ela. — Agora que estamos sozinhas, confesse a esta pobre velha o que há contigo. Meme fugiu da conversa com um riso entrecortado.Úrsula não insistiu, mas acabou de confirmar as suas suspeitas porque Meme não voltou a visitá-la. Sabia que se arrumava mais cedo do que de costume, que não tinha um instante de sossego enquanto esperava a hora de sair à rua, que passava noites inteiras rolando na cama no quarto contíguo e que a atormentava o voejar de uma borboleta. Em certa ocasião, ouviu-a dizer que ia se encontrar com Aureliano Segundo e Úrsula se surpreendeu de que Fernanda fosse tão curta de imaginação que não suspeitasse de nada quando o marido chegou em casa perguntando pela filha. Era evidente demais que Meme andava com assuntos sigilosos, com compromissos urgentes, com ansiedades reprimidas, desde muito antes da noite em que Fernanda alvoroçou a casa porque a tinha encontrado aos beijos com um homem no cinema.
      A própria Meme andava na época tão ensimesmada que acusou Úrsula de havê-la denunciado. Na realidade, ela se denunciara a si mesma. Há muito tempo que deixava à sua passagem um caudal de pistas que teriam despertado o mais adormecido e, se Fernanda demorara tanto para descobri-las, foi porque também ela estava obscurecida pelas suas relações secretas com os médicos invisíveis. Mesmo assim acabou por perceber os profundos silêncios, os sobressaltos intempestivos, as alternativas de humor e as contradições da filha. Empenhou-se numa vigilância dissimulada, mas implacável. Deixou-a estar com as suas amigas de sempre, ajudou-a a se vestir para as festas de sábado e jamais lhe fez uma pergunta impertinente que pudesse alertá-la. Tinha já muitas provas de que Meme fazia coisas diferentes das que anunciava e, no entanto, não deixou vislumbrar as suas suspeitas na espera da ocasião decisiva. Certa noite, Meme avisou que ia ao cinema com o pai. Pouco depois, Fernanda ouviu os foguetes da farra e o inconfundível acordeão de Aureliano Segundo no rumo da casa de Petra Cotes. Então se vestiu, entrou no cinema e, na penumbra das cadeiras, reconheceu a filha. A perturbadora emoção do acerto lhe impediu de ver o homem que a estava beijando, mas chegou a perceber a sua voz trêmula no meio dos assovios e das gargalhadas ensurdecedoras do público. “Sinto muito, amor”, ouviu-o dizer, e tirou Meme da sala sem lhe dizer uma palavra e submeteu-a à vergonha de levá-la pela barulhenta Rua dos Turcos e trancou-a à chave no quarto.
      No dia seguinte, às seis da tarde, Fernanda reconheceu a voz do homem que foi visitá-la. Era jovem, citrino, com uns olhos escuros e melancólicos que não a teriam surpreendido tanto se tivesse conhecido os ciganos e um ar de sonho que a qualquer mulher de coração menos rígido teria bastado para entender os motivos da filha. Vestia um linho muito usado, sapatos branco-zinco defendidos desesperadamente por solas superpostas, e trazia na mão um chapéu de palhinha comprado no sábado anterior. Em toda a sua vida nunca estivera nem estaria mais assustado do que naquele momento, mas tinha uma dignidade e um domínio que o punham a salvo da humilhação e uma excelência legítima que só fracassava nas mãos calosas e nas unhas lascadas pelo trabalho rude. A Fernanda, entretanto, bastou vê-lo uma vez para intuir a sua condição de trabalhador braçal. Percebeu que usava a sua única roupa de domingo e que debaixo da camisa tinha a pele carcomida pela sarna da companhia bananeira. Não permitiu que falasse. Não permitiu sequer que ele passasse da porta, que um momento depois teve de fechar, porque a casa estava cheia de borboletas amarelas.
      — Vá embora — disse a ele. — Não tem nada que fazer no meio de gente decente.
      Chamava-se Mauricio Babilonia. Tinha nascido e crescido em Macondo e era aprendiz de mecânico nas oficinas da companhia bananeira. Meme o conhecera por acaso, numa tarde em que fora com Patricia Brown buscar o automóvel para dar um passeio pelas plantações.
      Como o chofer estava doente, encarregaram-no de levá-las e Meme pôde por fim satisfazer a sua vontade de se sentar junto ao volante para observar de perto o sistema de manejo. Ao contrário do chofer titular, Mauricio Babilonia lhe fez uma demonstração prática. Isso foi na época em que Meme começou a freqüentar a casa do Sr. Brown e ainda se considerava indigno de damas dirigir um automóvel. De modo que se conformou com a informação teórica e não voltou a ver Mauricio Babilonia por vários meses. Mais tarde haveria de recordar que durante o passeio chamou-lhe a atenção a sua beleza varonil, salvo a brutalidade das mãos, mas depois tinha comentado com Patricia Brown o mal-estar que lhe produzira a sua segurança um pouco altiva. No primeiro sábado em que foi ao cinema com seu pai, voltou a ver Mauricio Babilonia com o seu costume de linho, sentado a pouca distância deles, e percebeu que ele se desinteressava do filme para se virar para olhá-la, não tanto para vê-la como para que ela notasse que ele a estava olhando. Meme se aborreceu com a vulgaridade daquele sistema. Finalmente, Mauricio Babilonia se aproximou para cumprimentar Aureliano Segundo e só então Meme soube que se conheciam, porque ele tinha trabalhado na primitiva instalação elétrica de Aureliano Triste e tratava seu pai com uma atitude de subalterno. Essa comprovação aliviou-a do desprazer que lhe causava a sua altivez. Não se tinham visto a sós, nem se tinham dito uma palavra diferente do cumprimento, na noite em que sonhou que ele a salvava de um naufrágio e ela não experimentava nenhum sentimento de gratidão e sim de raiva. Era como lhe ter dado uma oportunidade que ele desejava, sendo que Meme queria o contrário, não só com Mauricio Babilonia como também com qualquer outro homem que se interessasse por ela. Por isso ficou tão indignada que depois do sonho, em vez de detestá-lo, teria experimentado uma urgência irresistível de vê-lo. A ansiedade se fez mais intensa no correr da semana e no sábado já era tão premente que teve que fazer um esforço enorme para que Mauricio Babilonia não notasse, ao cumprimentá-la no cinema, que o coração lhe saía pela boca. Ofuscada por uma confusa sensação de prazer e raiva, estendeu-lhe a mão pela primeira vez, e só então Mauricio Babilonia se permitiu apertá-la. Meme chegou, numa fração de segundo, a se arrepender do impulso mas o arrependimento se transformou imediatamente numa satisfação cruel, ao comprovar que também a mão dele estava suada e gelada. Nessa noite, compreendeu que não teria um instante de sossego enquanto não demonstrasse a Mauricio Babilonia quão vã era a sua aspiração, e passou a semana voejando em torno dessa ansiedade. Recorreu a toda espécie de artimanhas inúteis para que Patricia Brown a levasse para buscar o automóvel. Por último, valeu-se do cabelo-de-fogo norte-americano, que por essa época estava passando as férias em Macondo e, com o pretexto de conhecer os novos modelos de automóveis, fez-se levar às oficinas. Desde o momento em que o viu, Meme deixou de enganar a si mesma, e compreendeu que o que acontecia na realidade era que não podia mais suportar o desejo de estar a sós com Mauricio Babilonia e se indignou com a certeza de que este compreendera isso ao vê-la chegar.
      — Vim ver os novos modelos — disse Meme.
      — É um bom pretexto — disse ele.
      Meme percebeu que estava se queimando na luz da sua altivez e procurou desesperadamente uma maneira de humilhá-lo. Mas ele não lhe deu tempo. “Não se assuste”, disse em voz baixa. “Não é a primeira vez que uma mulher fica louca por um homem.” Sentiu-se tão desamparada que abandonou a oficina sem ver os novos modelos e passou a noite de extremo a extremo rolando na cama e chorando de indignação. O cabelo-de-fogo norte-americano, que realmente começava a lhe interessar, pareceu-lhe um bebê de fraldas. Foi então que entendeu as borboletas amarelas que precediam as aparições de Mauricio Babilonia. Vira-as antes, sobretudo na oficina mecânica, e pensara que estavam fascinadas pelo cheiro da pintura. Alguma vez tê-las-ia sentido voejar sobre a sua cabeça -na penumbra do cinema. Mas quando Mauricio Babilonia começou a persegui-la como um espectro que só ela identificava na multidão, compreendeu que as borboletas amarelas tinham alguma coisa que ver com ele. Mauricio Babilonia estava sempre na platéia dos concertos, no cinema, na missa, e ela não necessitava vê -lo para descobri-lo, porque o indicavam as borboletas. Uma vez, Aureliano Segundo se impacientou tanto com o sufocante movimento de asas que ela sentiu o impulso de confiar-lhe o seu segredo como lhe havia prometido, mas o instinto lhe indicou que desta vez ele não ia rir como de costume: “Que diria a sua mãe se soubesse.” Certa manhã, enquanto podavam as rosas, Fernanda lançou um grito de espanto e quis tirar Meme do lugar em que estava e que era o mesmo lugar do jardim de onde Remedios, a bela, subira aos céus. Tivera por um instante a impressão de que o milagre ia se repetir na sua filha, porque tinha-se perturbado com um repentino movimento de asas. Eram as borboletas. Meme as viu como se tivessem nascido de repente na luz e seu coração deu um baque. Nesse momento, entrava Mauricio Babilonia com um pacote que, segundo disse, era um presente de Patricia Brown. Meme engoliu o rubor, assimilou a perturbação, e até conseguiu um sorriso natural para pedir-lhe o favor de colocá-lo no parapeito, porque tinha os dedos sujos da terra. A única coisa que Fernanda notou no homem que poucos meses depois haveria de expulsar de casa sem se lembrar de que o tivesse visto alguma vez foi a textura biliosa da pele.
      — É um homem muito esquisito — disse Fernanda. —Está escrito na testa que vai morrer.
      Meme pensou que sua mãe tinha ficado impressionada com as borboletas. Quando acabaram de podar o roseiral, lavou as mãos e levou o pacote para o quarto para abri-lo. Era uma espécie de brinquedo chinês; composto de cinco caixas concêntricas e, na última, um cartão laboriosamente desenhado por alguém que mal sabia escrever: A gente se vê sábado no cinema. Meme sentiu o terror tardio de que a caixa tivesse estado tanto tempo no parapeito, ao alcance da curiosidade de Fernanda, e, embora a lisonjeasse a audácia e o engenho de Mauricio Babilonia, comoveu-a a sua ingenuidade de esperar que ela não faltasse ao encontro. Meme já sabia que Aureliano Segundo tinha um compromisso no sábado à noite. Entretanto, o fogo da ansiedade abrasou-a de tal modo no correr da semana que no sábado convenceu o pai a deixá-la sozinha no cinema e voltar para buscá-la no final da sessão. Uma borboleta noturna voejou sobre a sua cabeça enquanto as luzes estiveram acesas. E então aconteceu. Quando as Luzes se apagaram, Mauricio Babilonia se sentou do seu lado. Meme se sentiu debater num pântano de desespero, do qual só poderia ser resgatada, como acontecera no sonho, por aquele homem cheirando a óleo de motor que mal distinguia na penumbra.
      — Se você não tivesse vindo — ele disse — não teria me visto nunca mais.
      Meme sentiu o peso da sua mão no joelho e soube que ambos chegavam naquele instante ao outro lado do desamparo.
      — O que me choca em você — sorriu — é que sempre diz exatamente o que não devia dizer.
      Ficou louca por ele. Perdeu o sono e o apetite e se afundou tão profundamente na solidão que até o pai se transformou num estorvo para ela. Elaborou um intrincado nó de compromissos falsos para desorientar Fernanda, perdeu de vista as amigas, pulou por cima dos convencionalismos para encontrar-se com Mauricio Babilonia a qualquer hora e em qualquer parte. No princípio, incomodava-a a sua rudeza. Na primeira vez em que se viram a sós, nos prados desertos atrás da oficina mecânica, ele a arrastou sem misericórdia a um estado animal que a deixou extenuada. Demorou algum tempo para se dar conta de que também aquela era uma forma da ternura e foi então que perdeu o sossego e não vivia senão para ele, transtornada pela ansiedade de se fundir no seu entorpecedor bafo de óleo esfregado com água sanitária. Pouco antes da morte de Amaranta, tropeçou de repente com um espaço de lucidez dentro da loucura e tremeu diante da incerteza do futuro. Então ouviu falar de uma mulher que fazia prognósticos pelas cartas e foi visitá-la em segredo. Era Pilar Ternera. Desde que esta a viu entrar, soube dos recônditos motivos de Meme. “Sente-se”, disse-lhe. “Eu não preciso do baralho para averiguar o futuro de um Buendía.” Meme ignorava, e ignorou sempre, que aquela pitonisa centenária era sua bisavó. Tampouco teria acreditado, depois do agressivo realismo com que ela lhe revelou que a ansiedade do namoro não encontrava repouso a não ser na cama. Era o mesmo ponto de vista de Mauricio Babilonia, mas Meme se recusava a lhe dar crédito, pois no fundo supunha que ele estava inspirado em algum mau critério de operário braçal. Ela pensava então que uma forma de amor derrotava a outra, porque fazia parte da índole dos homens repudiar a fome uma vez satisfeito o apetite. Pilar Ternera não só dissipou o erro como também lhe ofereceu a velha cama de lona onde ela concebera Arcadio, o avô de Meme, e onde concebera depois a Aureliano José. Ensinou-lhe, além.disso, como prevenir a concepção indesejável mediante a vaporização de cataplasmas de mostarda e deu receitas de beberagens que em casos de contratempo faziam expulsar “até os remorsos de consciência”. Aquela entrevista infundiu em Meme o mesmo sentimento de valentia que experimentara na tarde da bebedeira. A morte de Amaranta, entretanto, obrigou-a a adiar a decisão. Enquanto duraram as nove noites, ela não se afastou um só instante de Mauricio Babilonia, que andava confundido com a multidão que invadira a casa. Vieram logo o luto prolongado e o enclausuramento obrigatório e se separaram por algum tempo. Foram dias de tanta agitação interior, de tanta ansiedade irreprimível e tantos desejos reprimidos, que na primeira tarde em que Meme conseguiu sair foi diretamente à casa de Pilar Ternera. Entregou-se a Mauricio Babilonia sem resistência, sem pudor, sem formalismos e com uma vocação tão fluida e uma intuição tão sábia que um homem mais desconfiado que o seu poderia confundir com uma requintada experiência. Amaram-se duas vezes por semana durante mais de três meses, protegidos pela cumplicidade inocente de Aureliano Segundo, que acreditava sem malícia as meias-liberdades da filha, só para vê -la liberada da rigidez da mãe. Na noite em que Fernanda os surpreendeu no cinema, Aureliano Segundo se sentiu angustiado pelo peso da consciência e visitou Meme no quarto onde a trancara Fernanda, confiando em que ela se desafogaria com as confidências que lhe estava devendo. Mas Meme se negou a tudo. Estava tão segura de si mesma, tão aferrada à sua solidão, que Aureliano Segundo teve a impressão de que já não existia nenhum vínculo entre eles, que a camaradagem e a cumplicidade não eram mais do que uma ilusão do passado. Pensou em falar com Mauricio Babilonia, acreditando que a sua autoridade de antigo patrão fá-lo-ia desistir dos seus propósitos, mas Petra Cotes convenceu-o de que aquilo era assunto de mulher, de modo que ficou flutuando num limbo de indecisão, e mal sustentado pela esperança de que a clausura terminasse com as angústias da filha. Meme não deu nenhuma amostra de aflição. Pelo contrário, do quarto contíguo Úrsula percebeu o ritmo sossegado do seu sono, a serenidade dos seus afazeres, a ordem das suas refeições e a boa saúde da sua digestão. A única coisa que intrigou Úrsula depois de quase dois meses de castigo foi que Meme não tomasse banho de manhã, como todos faziam, mas às sete da noite. Uma vez pensou em preveni-la contra os escorpiões, mas Meme era tão esquiva com ela, pela convicção de que a tinha denunciado, que preferiu não perturbá-la com impertinências de tataravó. As borboletas amarelas invadiam a casa desde o entardecer. Todas as noites, ao sair banheiro, Meme encontrava Fernanda desesperada, matando borboletas com a bomba de inseticida. “Isto é uma desgraça”, dizia. “Toda a vida me disseram que as borboletas noturnas chamam o azar.” Certa noite, enquanto Meme estava no banheiro, Fernanda entrou no seu quarto por acaso via tantas borboletas que mal se podia respirar. Apanhou pano qualquer para espantá-las e seu coração gelou de pavor ao relacionar os banhos noturnos da filha com os cataplasmas de mostarda que rolaram pelo chão. Não esperou por momento oportuno, como fizera da primeira vez. No dia seguinte, convidou para almoçar o novo alcaide que, como tinha descido do páramo, e pediu a ele que ordenasse uma guarda noturna para o quintal, porque tinha a impressão de estavam roubando as galinhas. Nessa noite, a guarda abateu Mauricio Babilonia quando levantava as telhas para entrar banheiro onde Meme o esperava, nua e tremendo de amor entre os escorpiões e as borboletas, como havia feito quase todas as noites dos últimos meses. Um projétil incrustado coluna vertebral reduziu-o à cama pelo resto da vida. Morreu de velho na solidão, sem uma queixa, sem um protesto, uma só tentativa de deslealdade, atormentado pelas lembranças e pelas borboletas amarelas que não lhe concederam um instante de paz e publicamente repudiado como ladrão galinhas.




Foto tirada por Patrick Curry.