NO ATURDIMENTO dos últimos anos, Úrsula dispusera de tréguas muito escassas para atender à formação papal de José Arcadio, quando ele teve que ser preparado às carreiras para ir para o seminário. Meme, sua irmã, dividida entre a rigidez de Fernanda e as amarguras de Amaranta, chegou quase ao mesmo tempo à idade prevista para mandá-la ao colégio de freiras onde fariam dela uma virtuose do clavicórdio. Úrsula se sentia atormentada por dúvidas graves em torno da eficácia dos métodos com que temperara o espírito do lânguido aprendiz de Sumo Pontífice e não jogava a culpa na sua tropeçante velhice nem nas nuvens que mal lhe permitiam vislumbrar o contorno das coisas e sim em alguma coisa que ela mesma não conseguia definir mas que imaginava confusamente como um progressivo desgaste do tempo. “Os anos de agora já não vêm como os de antigamente”, costumava dizer, sentindo que ab realidade cotidiana lhe escapava das mãos Antigamente, pensava, as crianças demoravam muito para crescer. Bastava recordar todo o tempo que fora necessário para que José Arcadio, o mais velho, partisse com os ciganos e tudo o que acontecera até que ele voltasse pintado como uma cobra e falando como um astrônomo, e as coisas que tinham acontecido em casa até que Amaranta e Arcadio esquecessem a língua dos índios e aprendessem o castelhano. Que se visse o sol e o sereno que suportara o pobre José Arcadio Buendía debaixo do castanheiro, e o quanto tivera que chorar a sua morte antes que lhe trouxessem moribundo um Coronel Aureliano Buendía que, depois de tanta guerra e depois de tanto se sofrer por ele, ainda não tinha feito cinqüenta anos. Em outra época, depois de passar o dia inteiro fazendo animaizinhos de caramelo, ainda lhe sobrava tempo para se ocupar das crianças, para ver-lhes no branco dos olhos que estavam precisando de uma poção de óleo de rícino. Agora, pelo contrário, quando já não tinha nada que fazer e andava com José Arcadio pregado às saias de manhã à noite, a qualidade ruim do tempo obrigava-a a deixar as coisas pela metade. A verdade era que Úrsula resistia ao envelhecimento mesmo quando já tinha perdido a conta da sua idade e atrapalhava em todos os lugares e tentava se meter em tudo e aborrecia os forasteiros com a perguntação de se não tinham deixado ali em casa, no tempo da guerra, um São José de gesso para que o guardassem enquanto não passava a chuva. Ninguém soube com certeza quando começou a perder a vista. Mesmo nos seus últimos anos, quando já não podia se levantar da cama, parecia simplesmente que estava vencida pela decrepitude, mas ninguém descobriu que estava cega. Ela o percebera desde o nascimento de José Arcadio. A princípio, pensou que se tratava de uma debilidade transitória e tomava escondido xarope de tutano e botava mel de abelha nos olhos, mas muito brevemente foi se convencendo de que afundava sem salvação nas trevas, a ponto de nunca ter tido uma noção muito clara da invenção da luz elétrica, porque quando instalaram os primeiros focos só pôde perceber o brilho. Não disse nada a ninguém, pois teria sido um reconhecimento público da sua inutilidade. Empenhou-se numa calada aprendizagem da distância das coisas e das vozes das pessoas, para continuar vendo com a memória quando já não o permitissem as sombras da catarata. Mais tarde havia de descobrir o auxílio imprevisto dos cheiros, que se definiram nas trevas com uma força muito mais convincente do que os volumes e a cor e a salvaram definitivamente da vergonha de uma renúncia. Na escuridão do quarto, podia enfiar a linha na agulha e bordar uma casa, e sabia quando o leite estava para ferver. Conheceu com tanta certeza o lugar em que se encontrava cada coisa que ela mesma se esquecia às vezes de que estava cega. Certa ocasião, Fernanda pôs a casa em polvorosa porque tinha perdido a aliança e Úrsula a encontrou num consolo, no quarto das crianças. Simplesmente, enquanto os outros andavam descuidadamente por todos os lados, ela os vigiava com os seus quatro sentidos, para que nunca a pegassem de surpresa, e ao fim de algum tempo descobriu que cada membro da família repetia todos os dias, sem notar, os mesmos percursos, os mesmos atos, e que quase repetia as mesmas palavras às mesmas horas. Só quando saíam dessa meticulosa rotina é que corriam o risco de perder alguma coisa. De modo que quando viu Fernanda consternada porque havia perdido a aliança, Úrsula se lembrou de que a única coisa diferente que ela fizera naquele dia tinha sido arejar as esteiras das crianças, porque Meme tinha descoberto um percevejo na noite anterior. Como as crianças assistissem à limpeza, Úrsula pensou que Fernanda havia posto a aliança no único lugar onde elas não a poderiam alcançar: o consolo. Fernanda, pelo contrário, procurou-a unicamente nos trajetos do seu itinerário cotidiano, sem saber que a procura das coisas perdidas é dificultada pelos hábitos rotineiros e é por isso que dá tanto trabalho encontrá-las.
  A educação de José Arcadio ajudou a Úrsula na tarefa extenuante de se manter a par das mínimas mudanças em casa. Quando percebia que Amaranta estava vestindo os santos do quarto, fingia que ensinava ao menino as diferenças entre as cores.
  — Vamos ver — dizia a ele — me conte de que cor está vestido São Rafael Arcanjo.
  Dessa forma, o menino lhe dava a informação que lhe negavam os olhos e muito antes que ele partisse para o seminário Úrsula já podia distinguir pela textura as diferentes cores da roupa dos santos. As vezes aconteciam acidentes imprevistos. Uma tarde, estava Amaranta bordando na varanda das begônias e Úrsula tropeçou nela.
  — Pelo amor de Deus — protestou Amaranta — veja por onde anda.
  — É você — disse Úrsula — quem está sentada onde não deve.
  Para ela, estava certo. Mas naquele dia começou a se dar conta de alguma coisa que ninguém havia descoberto e era que no transcurso do ano o sol ia mudando imperceptivelmente de posição e quem se sentava na varanda tinha que ir mudando de lugar pouco a pouco e sem o perceber. A partir de então, Úrsula tinha apenas que se lembrar da data para saber o lugar exato em que Amaranta estava sentada. Embora o tremor das mãos fosse cada vez mais perceptível e já não pudesse com o peso dos pés, nunca se vira a sua figura miudinha em tantos lugares ao mesmo tempo. Era quase tão diligente como quando arcava com toda a responsabilidade da casa. Entretanto, na impenetrável solidão da velhice, dispunha de tal clarividência para examinar mesmo os mais insignificantes acontecimentos da família que pela primeira vez viu com clareza as verdades que as suas ocupações de outros tempos lhe haviam impedido de ver. Na época em que preparavam José Arcadio para o seminário, já tinha feito uma recapitulação infinitesimal da vida da casa desde a fundação de Macondo e havia mudado completamente a opinião que tivera dos seus descendentes. Percebeu que o Coronel Aureliano Buendía não tinha perdido o afeto à família por causa do endurecimento da guerra, como ela acreditava antes, mas que nunca tinha amado ninguém, nem sequer a sua esposa Remedios ou as incontáveis mulheres de uma noite que haviam passado pela sua vida e muito menos ainda os seus filhos. Vislumbrou que não tinha feito tantas guerras por idealismo, como todo mundo pensava, nem tinha renunciado à vitória iminente por cansaço, como todo mundo pensava, mas que tinha ganho e perdido pelo mesmo motivo, por pura e pecaminosa soberba. Chegou à conclusão de que aquele filho por quem ela teria dado a vida era simplesmente um homem incapacitado para o amor. Uma noite, quando o tinha no ventre, ouviu-o chorar. Era um lamento tão definido que José Arcadio Buendía acordou do seu lado e se alegrou com a idéia de que a criança ia ser ventríloqua. Outras pessoas prognosticaram que seria adivinho. Ela, pelo contrário, estremeceu com a certeza de que aquele bramido profundo era um primeiro indício do temível rabo de porco e rogou a Deus que lhe deixasse morrer a criatura no ventre. Mas a lucidez da velhice lhe permitiu ver, e assim o repetiu muitas vezes, que o choro das crianças no ventre da mãe não é um anúncio de ventriloquia nem de faculdade adivinhatória, mas um sinal inequívoco de incapacidade para o amor. Aquela desvalorização da imagem do filho despertou-lhe de uma vez toda a compaixão que estava devendo a ele. Amaranta, pelo contrário, cuja dureza de coração a espantava, cuja concentrada amargura a amargava, foi revelada no último exame como a mulher mais terna que jamais pudesse haver existido e compreendeu com uma penosa clarividência que as injustas torturas a que submetera Pietro Crespi não eram ditadas por uma vontade de vingança, como todo mundo pensava, nem o lento martírio com que frustrara a vida do Coronel Gerineldo Márquez tinha sido determinado pelo fel ruim da sua amargura, como todo mundo pensava, mas sim que ambas as ações tinham sido uma luta de morte entre um amor sem medidas e uma covardia invencível, e triunfara finalmente o medo irracional que Amaranta sempre tivera do seu próprio e atormentado coração. Foi por essa época que Úrsula começou a se referir a Rebeca, a evocá-la com um velho carinho exaltado pelo arrependimento tardio e pela admiração repentina, tendo compreendido que somente ela, Rebeca, a que nunca se alimentara do seu leite e sim da terra e da cal das paredes, a que não levara nas veias o sangue do seu sangue e sim o sangue desconhecido de desconhecidos cujos ossos continuavam chocalhando na tumba, Rebeca, a do coração impaciente, a do ventre arrebatado, era a única que tinha tido a valentia sem freios que Úrsula desejara para a sua estirpe.
  — Rebeca — dizia, tateando as paredes — que injustos nós fomos com você!
  Em casa, simplesmente acreditavam que tresvariava, sobretudo desde que dera para andar com o braço direito levantado, como o Arcanjo Gabriel. Fernanda se deu conta, entretanto, de que havia um sol de clarividência nas sombras desse desvario, pois Úrsula podia dizer sem titubear quanto dinheiro se havia gasto em casa durante o último ano. Amaranta teve uma idéia semelhante certo dia em que a mãe mexia na cozinha uma panela de sopa e disse de repente, sem saber que estava sendo ouvida, que o moinho de fubá que haviam comprado dos primeiros ciganos, e que havia desaparecido desde antes que José Arcadio desse sessenta e cinco vezes a volta ao mundo, ainda estava na casa de Pilar Ternera. Também quase centenária, mas sã e ágil apesar da inconcebível gordura que espantava as crianças como em outros tempos a sua risada espantava os pombos, Pilar Ternera não se surpreendeu com o acerto de Úrsula, porque a sua própria experiência começava a indicar que uma velhice alerta pode ser mais sagaz que as averiguações das cartas.
  Entretanto, quando Úrsula percebeu que o tempo não lhe havia chegado para consolidar a vocação de José Arcadio deixou-se aturdir pela consternação. Começou a cometer erros tentando ver com os olhos as coisas que a intuição lhe permitia ver com maior claridade. Certa manhã jogou na cabeça do menino o conteúdo de um tinteiro, pensando que era água-de-colônia. Ocasionou tantas dificuldades com a teimosia de intervir em tudo, que se sentiu transtornada por crises de mau humor, e tentava vencer as trevas que finalmente a estavam tolhendo como uma camisa de teias de aranha. Foi então que lhe ocorreu que a sua inabilidade não era a primeira vitória da decrepitude e da escuridão, mas uma falha do tempo. Pensava que antigamente, quando Deus não fazia com os meses e os anos as mesmas trapaças que faziam os turcos ao medir uma jarda de percal, as coisas eram diferentes. Agora não apenas as crianças cresciam mais depressa, mas até os sentimentos evoluíam de outro modo. Nem bem Remedios, a bela, subira ao céu de corpo e alma, já Fernanda, sem consideração, andava resmungando pelos cantos que ela levara os lençóis. Nem bem haviam esfriado os corpos dos Aurelianos nas tumbas e já Aureliano Segundo tinha outra vez a casa tomada, cheia de bêbados que tocavam acordeão e se encharcavam de champanha, como se não tivessem morrido cristãos e sim cachorros, e como se aquela casa de loucos, que tantas dores de cabeça e tantos animaizinhos de caramelo tinha custado, estivesse predestinada a se converter numa lixeira de perdição. Lembrando-se destas coisas enquanto aprontavam o baú de José Arcadio, Úrsula se perguntava se não era preferível se deitar logo de uma vez na sepultura e lhe jogarem a terra por cima, e perguntava a Deus, sem medo, se realmente acreditava que as pessoas eram feitas de ferro para suportar tantas penas e mortificações; e perguntando e perguntando ia atiçando a sua própria perturbação e sentia desejos irreprimíveis de se soltar e não ter papas na língua como um forasteiro e de se permitir afinal um instante de rebeldia, o instante tantas vezes desejado e tantas vezes adiado, para cortar a resignação pela raiz e cagar de uma vez para tudo e tirar do coração os infinitos montes de palavrões que tivera que engolir durante um século inteiro de conformismo.
  — Porra! — gritou.
  Amaranta, que começava a colocar a roupa no baú, pensou que ela tinha sido picada por um escorpião.
  — Onde está? — perguntou alarmada.
  — O quê?
  — O animal! — esclareceu Amaranta.
  Úrsula pôs o dedo no coração.
  — Aqui — disse.
  Numa quinta-feira às duas da tarde, José Arcadio foi para o seminário. Úrsula havia de evocá-lo sempre como o imaginou ao se despedir dele, lânguido e sério e sem derramar uma lágrima, como ela lhe havia ensinado, sufocando de calor dentro do traje de pelúcia verde com botões de cobre e um laço engomado no colarinho. Deixou a sala de jantar impregnada da penetrante fragrância de água-de-colônia que ela lhe jogava na cabeça para poder seguir o seu rastro pela casa. Enquanto durou o almoço de despedida, a família dissimulou o nervosismo com expressões de júbilo e celebrou com exagerado entusiasmo os casos do Padre Antonio Isabel. Mas quando levaram o baú forrado de veludo com cantoneiras de prata foi como se tivessem tirado de casa um ataúde. O único que se negou a participar da despedida foi o Coronel Aureliano Buendía.
  — Esta era a última amolação que estava nos faltando — resmungou — um Papa!
  Três meses depois, Aureliano Segundo e Fernanda levaram Meme para o colégio e voltaram com um cravo que ocupou o lugar da pianola. Foi por essa época que Amaranta começou a tecer a sua própria mortalha. A febre da bananeira tinha apaziguado. Os antigos habitantes de Macondo se achavam segregados pelos estrangeiros, trabalhosamente reduzidos aos seus precários recursos de antigamente, mas reconfortados em todo caso pela impressão de terem sobrevivido a um naufrágio.
  Em casa, continuaram recebendo convidados para almoçar e, realmente, não se restabeleceu a antiga rotina enquanto não foi embora, anos depois, a companhia bananeira. Entretanto, houve mudanças radicais no tradicional sentido de hospitalidade, porque agora era Fernanda quem impunha as suas leis. Com Úrsula relegada às trevas e com Amaranta abstraída no trabalho do sudário, a antiga aprendiz de rainha teve liberdade para selecionar os comensais e lhes impor as rígidas normas que os pais lhe haviam inculcado. Sua severidade fez da casa um reduto de costumes restaurados, numa aldeia convulsionada pela vulgaridade com que os forasteiros desbaratavam as suas fáceis fortunas. Para ela, sem mais sutilezas, gente de bem era a que não tinha nada que ver com a companhia bananeira. Até José Arcadio Segundo, seu cunhado, foi vítima do seu zelo discriminatório, porque no arrebatamento da primeira hora tornou a leiloar os seus estupendos galos de briga e se empregou de capataz na companhia bananeira.
 
  — Que não volte a pisar nesta casa — disse Fernanda —enquanto tiver a sarna dos forasteiros.
  Foi tal o recolhimento imposto na casa que Aureliano Segundo se sentiu definitivamente mais cômodo com Petra Cotes. Primeiro, com o pretexto de aliviar o trabalho da esposa, transferiu as festas. Em seguida, com o pretexto de que os animais estavam perdendo a fecundidade, transferiu os estábulos e as cavalariças. Por último, com o pretexto de que na casa da concubina fazia menos calor, transferiu o pequeno escritório onde cuidava dos negócios. Quando Fernanda percebeu que era uma viúva de marido vivo, já era tarde demais para que as coisas voltassem ao seu estado anterior. Aureliano Segundo mal comia em casa e as únicas aparências que continuava guardando, como a de dormir com a esposa, não bastavam para convencer ninguém. Certa noite, por descuido, a manhã o surpreendeu na cama de Petra Cotes. Fernanda, ao contrário do que ele esperava, não lhe fez a menor censura nem soltou o mais leve suspiro de ressentimento, mas nesse mesmo dia mandou para a casa da concubina os seus dois baús de roupa. Mandou-os em pleno sol e com ordens para que fossem levados pelo meio da rua, para que todo mundo os visse, acreditando que o marido extraviado não pudesse suportar a vergonha e voltasse ao redil com a cabeça humilhada. Mas aquele gesto heróico foi apenas uma prova a mais de quão mal Fernanda conhecia não só o gênio de seu marido como também a índole de uma comunidade que nada tinha que ver com a de seus pais, porque todos os que viram os baús passarem disseram a si mesmos que afinal essa era a culminância natural de uma história cujas intimidades ninguém ignorava, e Aureliano Segundo celebrou a liberdade presenteada com uma farra de três dias. Para maior desvantagem da esposa, enquanto ela começava a entrar numa maturidade pesada com as suas sombrias roupas até os tornozelos, os seus camafeus anacrônicos e o seu orgulho fora do lugar, a concubina parecia estalar numa segunda juventude, metida em vistosos trajes de seda natural e com os olhos pintados pela candeia da reivindicação. Aureliano Segundo voltou a se entregar a ela com a fogosidade da adolescência, como antes, quando Petra Cotes não o amava por ele mesmo, mas porque o confundia com o seu irmão gêmeo e se deitava com ambos ao mesmo tempo, pensando que Deus lhe dera a fortuna de ter um homem que fazia o amor como se fossem dois. Era tão premente a paixão restaurada que em mais de uma ocasião eles se olharam nos olhos quando se dispunham a comer e, sem se dizerem nada, tamparam os pratos e foram morrer de fome e de amor no quarto. Inspirado nas coisas que tinha visto nas suas furtivas visitas às matronas francesas, Aureliano Segundo comprou para Petra Cotes uma cama com dossel de arcebispo e pôs cortinas de veludo nas janelas e cobriu o teto e as paredes do quarto com grandes espelhos de cristal de rocha. Era visto então como mais farrista e desmiolado do que nunca. Pelo trem, que chegava todos os dias às onze, recebia caixas e mais caixas de champanha e de conhaque. Na volta da estação arrastava para a cumbia* improvisada quanto ser humano encontrava pelo caminho, nativo ou forasteiro, conhecido ou por conhecer, sem distinções de nenhuma espécie. Até o fugidio Sr. Brown, que só conversava em língua estranha, deixou-se seduzir pelos tentadores gestos que lhe fazia Aureliano Segundo e várias vezes se embebedou para morrer na casa de Petra Cotes e fez até com que os ferozes cães policiais que o acompanhavam a todas as partes dançassem canções texanas que ele mesmo mastigava de qualquer maneira ao compasso do acordeão.
  — Afastem-se vacas — gritava Aureliano Segundo no paroxismo da festa. — Afastem-se que a vida é curta.
 
  Nunca teve melhor semblante, nem foi mais querido, nem esteve mais arrebatada a parição dos seus animais. Sacrificaram-se tantas reses, tantos porcos e galinhas nas intermináveis festas que a terra se tornou negra e lodosa de tanto sangue. Aquilo era um eterno depósito de ossos e tripas, um monturo de sobras, e tinha que se estar queimando cartuchos de dinamite a toda hora para que os urubus não bicassem os olhos dos convidados. Aureliano Segundo tornou-se gordo, violáceo, atartarugado, em conseqüência de um apetite somente comparável ao de José Arcadio quando regressara da volta ao mundo. O prestígio da sua desenfreada voracidade, da sua imensa capacidade de esbanjamento, da sua hospitalidade sem precedentes ultrapassou os limites do pantanal e atraiu os glutões melhor qualificados do litoral. De todas as partes chegavam comilões fabulosos para tomar parte nos irracionais torneios de capacidade e resistência que se organizavam na casa de Petra Cotes. Aureliano Segundo foi o garfo invicto até o sábado de infortúnio em que apareceu Camila Sagastume, uma fêmea totêmica conhecida no país inteiro pelo bom nome de A Elefanta. O duelo se prolongou até o amanhecer de terça-feira. Nas primeiras vinte e quatro horas, tendo despachado uma vitela com aipim, inhame e banana assada e além disso uma caixa e meia de champanha, Aureliano Segundo estava certo da vitória. Via-se mais entusiasta, mais vital que a imperturbável adversária, possuidora de um estilo evidentemente mais profissional, mas por isso mesmo menos emocionante para o amontoado público que entupiu a casa. Enquanto Aureliano Segundo comia às dentadas, desbocado pela ansiedade do triunfo, A Elefanta seccionava a carne com a arte de um cirurgião e a comia sem pressa e até com um certo prazer. Era gigantesca e maciça, mas contra a corpulência colossal prevalecia a ternura da feminilidade e tinha um rosto tão formoso, umas mãos tão finas e bem cuidadas, e um encanto pessoal tão irresistível que quando Aureliano Segundo a viu entrar em casa comentou em voz baixa que teria preferido não fazer o torneio na mesa e sim na cama. Mais tarde, quando a viu consumir o lombo da vitela sem violar uma só regra da melhor urbanidade, comentou seriamente que aquele delicado, fascinante e insaciável proboscídeo era de certa maneira a mulher ideal. Não estava enganado. A fama de chata que precedeu A Elefanta carecia de fundamento. Não era trituradora de bois, nem mulher barbada num circo grego, como se dizia, mas diretora de uma academia de canto. Tinha aprendido a comer sendo já uma respeitável mãe de família, procurando um método para que os seus filhos se alimentassem melhor e não por meio de estimulantes artificiais do apetite, mas por meio da absoluta tranqüilidade do espírito. A sua teoria, demonstrada na prática, se fundamentava no princípio de que uma pessoa que tivesse perfeitamente arrumados os assuntos da sua consciência podia comer sem trégua até que o cansaço a vencesse. De modo que foi devido a razões morais, e não por interesse esportivo, que deixou a academia e o lar para competir com um homem cuja fama de grande comilão sem princípios tinha dado a volta ao país. Desde a primeira vez que o viu, percebeu que Aureliano Segundo não seria traído pelo estômago, mas pelo temperamento. Ao fim da primeira noite, enquanto A Elefanta continuava impávida, Aureliano Segundo estava se esgotando de tanto falar e rir. Dormiram quatro horas. Ao acordar, cada um bebeu o suco de cinqüenta laranjas, oito litros de café e trinta ovos crus. Na segunda madrugada, depois de muitas horas sem dormir e tendo despachado dois porcos, um cacho de bananas e quatro caixas de champanha, A Elefanta suspeitou que Aureliano Segundo, sem o saber, tinha descoberto o mesmo método que ela, mas pelo caminho absurdo da irresponsabilidade total. Era, pois, mais perigoso do que ela pensara. Entretanto, quando Petra Cotes trouxe para a mesa dois perus assados, Aureliano Segundo estava a um passo da congestão.
  — Se não agüenta, não coma mais — disse A Elefanta.
  — Ficamos empatados.
  Disse isso de coração, compreendendo que também ela não podia comer mais sequer um bocado, pelo remorso de estar propiciando a morte do adversário. Mas Aureliano Segundo interpretou aquilo como um novo desafio e engoliu o peru até muito além da sua incrível capacidade. Perdeu a consciência. Caiu de bruços sobre o prato de ossos, espumando pela boca como um cão raivoso e sufocando em grunhidos de agonia. Sentiu, em meio às trevas, que o atiravam do alto de uma torre para um precipício sem fundo e, num último clarão de lucidez, percebeu que no fim daquela interminável queda a morte o estava esperando.
  — Levem-me para junto de Fernanda — conseguiu dizer.
  Os amigos que o deixaram em casa acreditaram que ele havia cumprido a promessa à esposa de não morrer na cama da concubina. Petra Cotes havia engraxado as botinas de verniz que ele queria calçar no ataúde e já estava procurando alguém que as levasse quando vieram lhe dizer que Aureliano Segundo estava fora de perigo. Restabeleceu-se, efetivamente, em menos de uma semana, e quinze dias depois estava celebrando com uma festança sem precedentes o acontecimento da sobrevivência. Continuou vivendo na casa de Petra Cotes, mas visitava Fernanda todos os dias e às vezes ficava para almoçar com a família, como se o destino tivesse invertido a situação e o tivesse deixado como esposo da concubina e amante da esposa.
  Foi um descanso para Fernanda. No tédio do abandono, as suas únicas distrações eram os exercícios de clavicórdio na hora da sesta e as cartas dos seus filhos. Nas detalhadas missivas que lhes mandava de quinze em quinze dias, não havia uma só linha de verdade. Ocultava-lhes os sofrimentos. Escamoteava-lhes a tristeza de uma casa que apesar da luz sobre as begônias, apesar da sufocação das duas da tarde, apesar das freqüentes brisas de festa que chegavam da rua, ficava cada vez mais parecida com a mansão colonial de seus pais. Fernanda vagava sozinha entre três fantasmas vivos e o fantasma morto de José Arcadio Buendía, que às vezes vinha se sentar com uma atenção inquisitiva na penumbra da sala enquanto ela tocava cravo. O Coronel Aureliano Buendía era uma sombra. Desde a última vez que saiu à rua para propor uma guerra sem futuro ao Coronel Gerineldo Márquez, mal abandonava a oficina para urinar debaixo do castanheiro. Não recebia outra visita senão a do barbeiro, de três em três semanas. Alimentava-se de qualquer coisa que Úrsula levasse para ele uma vez por dia e, embora continuasse fabricando peixinhos de ouro com a mesma paixão de antigamente, deixou de vendê-los quando percebeu que as pessoas não os compravam como jóias, mas como relíquias históricas. Tinha feito no quintal uma fogueira com as bonecas de Remedios, que decoravam o seu quarto desde o dia do casamento. A vigilante Úrsula percebeu o que o filho estava fazendo, mas não pôde impedir.
  — Você tem um coração de pedra — disse a ele.
  — Isto não é caso do coração — disse ele. — O quarto está ficando cheio de traças.
  Amaranta tecia a sua mortalha. Fernanda não entendia por que ela escrevia cartas ocasionais a Meme e até lhe mandava presentes, mas, pelo contrário, não queria nem ouvir falar de José Arcadio. “Vão morrer sem saber por que, respondeu Amaranta quando ela lhe fez a pergunta através de Úrsula, e aquela resposta semeou no seu coração um enigma que nunca pôde esclarecer. Alta, espigada, altiva, sempre vestida com abundantes anáguas de escumilha e com um ar de distinção que resistia aos anos e às más recordações, Amaranta parecia trazer na testa a cruz da virgindade. Realmente a trazia na mão, na venda negra que não tirava nem para dormir e que ela mesma lavava e passava. Sua vida se escoava a bordar o sudário. Afirmava-se que bordava durante o dia e desbordava durante a noite, e não com a esperança de vencer deste modo a solidão, mas, ao contrário, para sustentá-la.
 
  A maior preocupação que tinha Fernanda nos seus anos de abandono era de que Meme viesse passar as primeiras férias e não encontrasse Aureliano Segundo em casa. A congestão pôs fim a esse temor. Quando Meme voltou, seus pais se tinham posto de acordo não só para que a menina acreditasse que Aureliano Segundo continuava sendo m esposo domesticado, como também para que ela não notasse a tristeza da casa. Todos os anos, durante dois meses, Aureliano Segundo representava o papel de marido exemplar e promovia festas com sorvetes e biscoitinhos, que a alegre e vivaz estudante amenizava com o cravo. Era já evidente que tinha herdado muito pouco do temperamento da mãe. Parecia mais uma segunda versão de Amaranta, quando esta ainda não conhecia a amargura e andava alvoroçando a casa com os seus passos de dança, aos doze, aos quatorze anos, antes que a paixão secreta por Pietro Crespi torcesse definitivamente o rumo do seu coração. Mas, ao contrário de Amaranta, ao contrário de todos, Meme não revelava ainda a sina solitária da família e parecia inteiramente de acordo com o mundo, mesmo quando se fechava na sala às duas da tarde para praticar o clavicórdio com uma disciplina inflexível. Era evidente que gostava de casa, que passava o ano todo sonhando com o alvoroço de adolescentes que a sua chegada provocava, e que não andava muito longe da vocação festiva e dos desregramentos hospitaleiros do pai. O primeiro signo dessa herança calamitosa se revelou nas terceiras férias, quando Meme apareceu em casa com quatro freiras e sessenta e oito colegas de classe, a quem convidara para passar uma semana com a família, por iniciativa própria e sem avisar.
  — Que desgraça! — lamentou-se Fernanda. — Esta criatura é tão bárbara quanto o pai!
  Foi preciso pedir camas e redes aos vizinhos, estabelecer nove turnos na mesa, fixar horários para o banho e conseguir quarenta banquetas emprestadas para que as meninas de uniformes azuis e botinas de homem não andassem o dia inteiro trançando de um lado para o outro. O convite foi um desastre, porque as ruidosas colegiais mal acabavam de tomar café já tinham que começar os turnos para o almoço e em seguida para o jantar, e em toda a semana só puderam fazer um passeio às plantações. Ao anoitecer, as freiras estavam esgotadas, incapazes de se move r, de dar uma ordem a mais, e o tropel de adolescentes incansáveis ainda estava no quintal cantando desafinados hinos escolares. Um dia, por pouco não atropelam Úrsula, que se empenhava em ser útil exatamente onde mais atrapalhava. Outro dia, as freiras armaram um escândalo porque o Coronel Aureliano Buendía urinou debaixo do castanheiro sem se preocupar com o fato de as colegiais estarem no quintal. Amaranta esteve a ponto de semear o pânico, porque uma das freiras entrou na cozinha quando ela estava temperando a sopa e a única coisa que lhe ocorreu foi perguntar o que eram aqueles punhados de pó branco.
  — Arsênico — disse Amaranta.
  Na noite da chegada, as estudantes se atrapalharam de tal maneira tratando de ir ao reservado antes de se deitar que à uma da madrugada ainda estavam entrando as últimas. Fernanda então comprou setenta e dois penicos, mas só conseguiu transformar o problema noturno num problema matinal, porque desde o amanhecer havia diante do reservado uma longa fila de moças, cada uma com o seu penico na mão, esperando a vez para lavá-lo. Embora algumas sofressem de febre e várias ficassem com as mordidas dos mosquitos inflamadas, a maioria demonstrou uma resistência inquebrantável diante das dificuldades mais penosas e mesmo na hora de mais calor corriam no jardim. Quando finalmente foram embora, as flores estavam destruídas, os móveis partidos e as paredes cobertas de desenhos e letreiros, mas Fernanda perdoou-lhes os estragos diante do alívio da partida. Devolveu as camas e banquetas emprestadas e guardou os setenta e dois penicos no quarto de Melquíades. O cômodo enclausurado, em torno do qual girara em outros tempos a vida espiritual da casa, ficou conhecido a partir de então como o quarto dos penicos. Para o Coronel Aureliano Buendía, esse era o nome mais apropriado, porque enquanto o resto da família continuava se assombrando de que a peça de Melquíades fosse imune ao pó e à destruição, ele a via transformada numa lixeira. De qualquer maneira, não lhe parecia importar quem estava com razão, e se soube do destino do quarto foi porque Fernanda esteve passando e perturbando o seu trabalho durante uma tarde inteira para guardar os penicos.
  Por esses dias reapareceu José Arcadio Segundo em casa. Passava de longe pela varanda, sem cumprimentar ninguém, e se trancava na oficina para conversar com o coronel. Apesar de não poder vê -lo, Úrsula estudava ruído das suas botas de capataz e se surpreendia com a distância irremediável que separava da família, inclusive do irmão gêmeo, com quem brincava na infância os engenhosos truques de confusão e com o qual já não tinha nenhum traço em comum. Era comprido, solene, e tinha um ar pensativo, e uma tristeza de sarraceno, e um brilho lúgubre no rosto cor de outono. Era o que mais se parecia com a mãe, Santa Sofía de la Piedad. Úrsula reprovava em si a tendência a se esquecer dele ao falar da família, mas quando o sentiu de novo em casa e percebeu que o coronel o admitia na oficina durante as horas de trabalho, voltou a examinar as suas velhas lembranças e confirmou a crença de que em algum momento da infância ele se confundira com o irmão gêmeo, porque era ele e não o outro quem devia se chamar Aureliano. Ninguém conhecia os pormenores da sua vida. Em certa época, sabia-se que não tinha residência fixa, que criava galos na casa de Pilar Ternera e que às vezes ficava para dormir ali, mas que quase sempre passava a noite nos quartos das matronas francesas. Andava à deriva, sem afetos, sem ambições, como uma estrela errante no sistema planetário de Úrsula.
  Realmente, José Arcadio Segundo não era membro da família, nem o seria jamais de outra, desde a madrugada distante em que o Coronel Gerineldo Márquez o levara ao quartel, não para que visse um fuzilamento, mas para que não se esquecesse para o resto da vida do sorriso triste e um pouco irônico do fuzilado. Aquela não era apenas a sua lembrança mais antiga, mas também a única da sua meninice. A outra, a de um ancião com um casaco anacrônico e um chapéu de asas de corvo que contava maravilhas diante de uma janela deslumbrante, não conseguia situar em nenhuma época. Era uma lembrança incerta, inteiramente desprovida de ensinamentos ou saudade, ao contrário da lembrança do fuzilado que, na realidade, tinha definido o rumo da sua vida e regressava à sua memória, cada vez mais nítida à medida que envelhecia, como se o transcurso do tempo a viesse aproximando. Úrsula tratou de aproveitar José Arcadio Segundo para que o Coronel Aureliano Buendía abandonasse o seu enclausuramento. “Convença-o a ir ao cinema”, dizia a ele. “Embora não goste dos filmes, terá pelo menos uma ocasião de respirar ar puro.” Mas não tardou a perceber que ele era tão insensível às suas súplicas quanta teria sido o coronel e que estavam encouraçados pela mesma impermeabilidade aos afetos. Embora nunca soubesse, nem o soubesse ninguém, do que falavam nas prolongadas entrevistas na oficina, entendeu que eram eles os únicos membros da família que pareciam vinculados por afinidades. A verdade é que nem José Arcadio Segundo poderia tirar o coronel do seu enclausuramento. A invasão escolar fora demais para os limites da sua paciência. Com o pretexto de que o quarto nupcial estava à mercê das traças apesar da destruição das apetitosas bonecas de Remedios, pendurou uma rede na oficina e agora só a abandonava para ir ao quintal fazer as suas necessidades. Úrsula não conseguiu alinhavar com ele uma conversa trivial. Sabia que ele não olhava os pratos de comida, mas que os punha no canto da mesa enquanto terminava o peixinho e não se importava se a sopa criasse crostas de gordura e se a carne esfriasse. Endureceu-se cada vez mais desde que o Coronel Gerineldo Márquez se negou a segui-lo numa guerra senil. Fechou-se com tranca dentro de si mesmo e a família acabou por pensar nele como se tivesse morrido. Não se voltou a ver nele nenhuma reação humana até um onze de outubro em que saiu à porta da rua para ver o desfile de um circo. Aquele tinha sido para o Coronel Aureliano Buendía um dia igual a todos os dos seus últimos anos. As cinco da madrugada foi acordado pelo alvoroço dos sapos e dos grilos do lado de fora da parede. A chuvinha persistia desde sábado e ele não teria tido necessidade de ouvir o seu minucioso cochicho nas folhas do jardim, porque de todo jeito tê-la-ia sentido no frio dos ossos. Estava, como sempre, vestido com a manta de lã e com as ceroulas de algodão cru que continuava usando por comodidade, embora por causa do seu empoeirado anacronismo ele mesmo as chamasse de “cuecas de godo”. Pôs as calças justas, mas não deu os laços nem colocou no colarinho da camisa o botão de ouro que usava sempre, porque tinha o propósito de tomar um banho. Em seguida pôs a manta na cabeça, como um capuz, penteou com os dedos o bigode caído e foi urinar no quintal. Faltava tanto para que saísse o sol que José Arcadio Buendía ainda cochilava debaixo da coberta de sapé já podre por causa da chuva. Ele não o viu, como não o havia visto nunca, nem ouviu a frase incompreensível que lhe dirigiu o espectro de seu pai quando acordou sobressaltado pelo jato de urina quente que lhe salpicava os sapatos. Deixou o banho para mais tarde, não por causa do frio e da umidade, mas por causa da névoa opressiva de outubro. De volta à oficina sentiu o cheiro de pavio do fogo que Santa Sofía de la Piedad estava acendendo e esperou na cozinha que o café fervesse, para levar a sua caneca sem açúcar. Santa Sofía de la Piedad perguntou-lhe, como todas as manhãs, em que dia da semana estavam e ele respondeu que era terça-feira, onze de outubro. Vendo a impávida mulher dourada pelo brilho do fogo, que nem nesse nem em nenhum outro momento da sua vida parecia existir por completo, lembrou-se de repente de que um onze de outubro, em plena guerra, acordou-o a certeza brutal de que a mulher com quem tinha dormido estava morta. Estava, realmente, e não se esquecia da data porque ela também lhe havia perguntado uma hora antes em que dia estavam. Apesar da evocação, desta vez também não teve consciência de até que ponto o tinham abandonado os presságios, e enquanto o café fervia continuou pensando por pura curiosidade, mas sem o mais insignificante traço de nostalgia, na mulher cujo nome nunca soube e cujo rosto não viu com vida porque tinha chegado à sua rede tropeçando no escuro. Entretanto, no vazio de tantas mulheres como as que chegaram à sua vida da mesma forma, não se lembrou de que foi ela a que no delírio do primeiro encontro estava quase por naufragar nas próprias lágrimas e apenas uma hora antes de morrer jurara amá-lo até a morte. Não voltou a pensar nela, nem em nenhuma outra, depois que entrou na oficina com a xícara fumegante e acendeu a luz para contar os peixinhos de ouro que guardava num pote de lata. Havia dezessete. Desde que decidira não vendê-los, continuava fabricando dois peixinhos por dia, e quando completava vinte e cinco voltava a fundi-los no crisol para começar a fazê-los de novo. Trabalhou a manhã inteira, absorto, sem pensar em nada, sem se dar conta de que às dez aumentara a chuva e alguém passava diante da oficina gritando que fechassem as portas para que a casa não inundasse, e sem se dar conta sequer de si mesmo até que Úrsula entrou com o almoço e apagou a luz.
  — Que chuva! — disse Úrsula.
  — Outubro — disse ele.
  Ao dizê-lo, não levantou a vista do primeiro peixinho do dia, porque estava engastando os rubis dos olhos. Só quando o terminou e o pôs com os outros no pote é que começou a tomar a sopa. Em seguida comeu, muito devagar, o pedaço de carne ensopada com cebola, o arroz branco e as fatias de banana frita, tudo junto no mesmo prato. O seu apetite não se alterava nem nas melhores nem nas mais duras circunstâncias. Ao fim do almoço experimentou a derrota da ociosidade. Por uma espécie de superstição científica, nunca trabalhava, nem lia, nem tomava banho, nem fazia amor, antes de que transcorressem duas horas de digestão, e era uma crença tão arraigada que várias vezes atrasou operações de guerra para não submeter a tropa aos riscos de uma congestão. De modo que se deitou na rede, tirando a cera dos ouvidos com um canivete e, em poucos minutos, adormeceu. Sonhou que entrava numa casa vazia, de paredes brancas, e que se inquietava com a angústia de ser o primeiro ser humano que entrava nela. No sonho recordou que havia sonhado o mesmo na noite anterior e em muitas noites dos últimos anos, e soube que a imagem se apagaria de sua memória ao acordar, porque aquele sonho teimoso tinha a virtude de não ser recordado a não ser dentro do mesmo sonho. Um momento depois, com efeito, quando o barbeiro bateu na porta da oficina, o Coronel Aureliano Buendía acordou com a impressão de que involuntariamente tinha adormecido por breves segundos e que não tinha tido tempo de sonhar nada.
  — Hoje não — disse ao barbeiro. — Volte na sexta-feira. Tinha uma barba de três dias, salpicada de pelos brancos, mas achava melhor não se barbear, pois na sexta-feira ia cortar o cabelo e podia fazer tudo ao mesmo tempo. O suor pegajoso da sesta indesejável reviveu nas suas axilas as cicatrizes dos furúnculos. Havia estiado, mas ainda não saíra o sol. O Coronel Aureliano Buendía emitiu um arroto sonoro que devolveu ao paladar a acidez da sopa e que foi como uma ordem do organismo para que jogasse a manta nos ombros e fosse ao reservado. Ali permaneceu mais do que o tempo necessário, agachado sobre a densa fermentação que subia do caixote de madeira, até que o costume lhe indicou que era hora de reiniciar o trabalho. Durante o tempo que durou a espera voltou a se lembrar de que era terça-feira e de que José Arcadio Segundo não tinha estado na oficina porque era dia de pagamento nas fazendas da companhia bananeira. Essa lembrança, como todas as dos últimos anos, passou sem que viesse ao caso pensar na guerra. Lembrou-se de que o Coronel Gerineldo Márquez lhe havia prometido, certa vez, conseguir um cavalo com uma estrela branca na testa e que nunca se voltara a falar disso. Em seguida, derivou para episódios dispersos, mas os evocou sem qualificá-los, porque de tanto não poder pensar em outra coisa tinha aprendido a pensar a frio, para que as lembranças iniludíveis não lhe estragassem nenhum sentimento. De volta à oficina, vendo que o ar começava a secar, decidiu que era um bom momento para tomar um banho, mas Amaranta se havia antecipado a ele. De modo que começou o segundo peixinho do dia. Estava engatando o rabo quando o sol saiu com tanta força que a claridade rangeu como uma canoa. O ar lavado pela chuvinha de três dias se encheu de tanajuras. Então caiu em si, percebendo que tinha vontade de urinar e estava adiando até que acabasse de armar o peixinho. Ia para o quintal, às quatro e dez, quando ouviu os instrumentos longínquos, as batidas do bumbo e a alegria das crianças, e pela primeira vez desde a juventude pisou conscientemente numa armadilha da saudade e reviveu a prodigiosa tarde de ciganos em que o seu pai o levou para conhecer o gelo. Santa Sofía de la Piedad abandonou o que estava fazendo na cozinha e correu para a porta.— É o circo — gritou.
  Em vez de se dirigir ao castanheiro, o Coronel Aureliano Buendía foi também para a porta da rua e se misturou com os curiosos que contemplavam o desfile. Viu uma mulher vestida de ouro no cangote de um elefante. Viu um dromedário triste. Viu um urso vestido de holandesa que marcava o compasso da música com uma concha e uma caçarola. Viu os palhaços virando cambalhotas no final do desfile e viu outra vez a cara da sua solidão miserável quando tudo acabou de passar e não ficou senão o luminoso espaço na rua e o ar cheio de tanajuras e uns quantos curiosos próximos ao precipício da incerteza. Então foi para o castanheiro, pensando no circo, e enquanto urinava tentou continuar pensando no circo, mas já não encontrou a lembrança. Meteu a cabeça entre os ombros, como um frango, e ficou imóvel com a testa apoiada no tronco do castanheiro. A família não soube de nada até o dia seguinte, às onze da manhã, quando Santa Sofia de la Piedad foi jogar o lixo no quintal e lhe chamou a atenção o fato de estarem baixando os urubus.
sábado
Capítulo XIII
Foto tirada por Patrick Curry.
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