sábado

Capítulo XVII

      ÚRSULA teve de fazer um grande esforço para cumprir a promessa de morrer quando estiasse. Os clarões de lucidez, tão escassos durante a chuva, fizeram-se mais freqüentes a partir de agosto, quando começou a soprar o vento árido que sufocava as roseiras e petrificava as lagoas e acabou por espalhar sobre Macondo a poeira abrasadora que cobriu para sempre os enferrujados tetos de zinco e as amendoeiras centenárias. Úrsula chorou de tristeza ao descobrir que por mais de três anos tinha servido de brinquedo para as crianças. Lavou a cara borrada de tintas, tirou de cima de si os trapos coloridos, as lagartixas e os sapos ressecados, e as camândulas e antigos colares árabes que lhe haviam pendurado por todo o corpo, e pela primeira vez desde a morte de Amaranta abandonou a cama sem o auxílio de ninguém, para se incorporar de novo à vida familiar. O ânimo do coração invencível orientava-a nas trevas. Os que repararam nos seus tropeções e depararam com o seu braço arcangélico sempre levantado à altura da cabeça pensaram que a muito custo agüentava com o corpo, mas ainda não acreditaram que estava cega. Ela não precisava ver para notar que os canteiros de flores, cultivados com tanto esmero desde a primeira reconstrução, tinham sido destruídos pela chuva e arrasados pelas escavações de Aureliano Segundo, e que as paredes e o cimento do chão estavam rachados, os móveis bambos e desbotados, as portas desniveladas e a família ameaçada por um espírito de resignação e desgraça que não teria sido concebível em seu tempo. Movendo-se às apalpadelas pelos quartos vazios, percebia o ronco contínuo do cupim furando as madeiras e o tesourar da traça no guarda-roupas e o estrépito devastador das enormes formiga ruivas que tinham prosperado no dilúvio e estavam escavando o cimento da casa. Um dia abriu o baú dos santos e teve que pedir auxílio a Santa Sofía de la Piedad para se livrar das baratas que pularam de dentro e que já haviam pulverizado a roupa. “Não é possível viver neste desleixo”, dizia. “Neste caminho vamos acabar sendo devorados pelos bichos.” A partir daí não teve um minuto de descanso. De pé antes do amanhecer, recorria a quem estivesse disponível, inclusive às crianças. Pôs ao sol as escassas roupas que ainda estavam em condições de serem usadas, afugentou as baratas com inesperados ataques de inseticida, raspou as veias do cupim nas portas e janelas e asfixiou as formigas com cal virgem nas suas galerias. A febre da restauração acabou por levá-la aos quartos esquecidos. Fez desembaraçar de escombros e teias de aranha o quarto onde José Arcadio Buendía tinha queimado os miolos procurando a pedra filosofal, colocou em ordem a oficina de ourivesaria, que fora revirada pelos soldados, e por fim pediu as chaves do quarto de Melquíades para ver em que estado se encontrava. Fiel à vontade de José Arcadio Segundo, que havia proibido qualquer intromissão enquanto não houvesse um indício real de que tivesse morrido, Santa Sofia de la Piedad recorreu a toda espécie de subterfúgios para desorientar Úrsula. Mas era tão inflexível a sua determinação de não abandonar aos insetos nem o mais escondido e inútil canto da casa que derrubou quantos obstáculos lhe puseram pela frente e ao fim de três dias de insistência conseguiu fazer com que lhe abrissem o quarto. Teve que se agarrar no marco da porta para que o mau cheiro não a derrubasse, mas foram necessários apenas dois segundos para que ela se lembrasse de que ali estavam guardados os setenta e dois penicos das colegiais e que numa das primeiras noites de chuva uma patrulha de soldados tinha revistado a casa procurando José Arcadio Segundo e não pudera encontrá-lo.
      — Bendito seja Deus! — exclamou, como se o estivesse enxergando perfeitamente. — Tanto trabalho para lhe ensinar boas maneiras e você acaba vivendo como um porco.
      José Arcadio Segundo continuava relendo os pergaminhos. A única coisa visível na intrincada maranha de cabelo eram os dentes listrados de lama verde e os olhos imóveis. Ao reconhecer a voz da bisavó, virou a cabeça para a porta, tratou de sorrir e, sem saber, repetiu uma antiga frase de Úrsula.
      — Que se há de fazer — murmurou — o tempo passa.
      — É verdade — disse Úrsula — mas não tanto.
      Ao dizê-lo, teve consciência de estar dando a mesma resposta que recebera do Coronel Aureliano Buendía na sua cela de sentenciado e mais uma vez estremeceu com a comprovação de que o tempo não passava, como ela acabava de admitir, mas girava em círculo. Nem assim, porém, deu oportunidade à resignação. Ralhou com José Arcadio Segundo como se ele fosse uma criança e se empenhou em fazê-lo tomar banho e se barbear e emprestar a sua força para acabar de restaurar a casa. A simples idéia de abandonar o quarto que lhe havia proporcionado a paz aterrorizou José Arcadio Segundo. Gritou que não havia poder humano capaz de fazê-lo sair, porque não queria ver o trem de duzentos vagões carregados de mortos que toda tarde partia de Macondo para o mar. “São todos os que estavam na estação”, gritava. “Três mil quatrocentos e oito.” Só então Úrsula compreendeu que ele estava num mundo de trevas mais impenetrável que o seu, tão intransponível e solitário como o do bisavô. Deixou-o no quarto, mas conseguiu que não voltassem a botar cadeado na porta, que fizessem a limpeza todos os dias, que jogassem os penicos no lixo e só deixassem um, e que mantivessem José Arcadio Segundo tão limpo e apresentável como estivera o bisavô no seu longo cativeiro debaixo do castanheiro. No começo, Fernanda interpretava aquela faina como um acesso de loucura senil e a muito custo reprimia a exasperação. Mas José Arcadio anunciou-lhe de Roma por essa época que pensava vir a Macondo antes de fazer os votos perpétuos e a boa notícia infundiu-lhe tal entusiasmo que de um momento para outro se viu regando as flores quatro vezes ao dia para que filho não fosse ter má impressão da casa. Foi esse mesmo incentivo que a induziu a apressar a sua correspondência com os médicos invisíveis e a repor na varanda os vasos de fetos e orégão e os de begônias, muito antes de Úrsula perceber que tinham sido destruídos pela fúria exterminadora de Aureliano Segundo. Mais tarde vendeu a baixela de prata e comprou louça de cerâmica, sopeiras e conchas de folha e talheres de alpaca, e empobreceu com eles as cristaleiras acostumadas a louça da Companhia das Índias e com os cristais da Boêmia. Úrsula tentava ir sempre mais longe. “Abram portas janelas”, gritava. “Façam carne e peixe, comprem as tartarugas maiores, que os forasteiros venham estender as esteiras nos cantos e urinar nas roseiras, que se sentem a à para comer quantas vezes quiserem e que arrotem e praguejem e sujem tudo de lama com as suas botas e façam conosco o que tiverem vontade, porque esta é a única maneira de espantar a ruína.” Mas era uma ilusão vã. Já estava velha demais e vivendo de sobra para repetir o milagre dos animaizinhos de caramelo e nenhum dos seus descendentes herdara sua fortaleza. A casa continuou fechada por ordem de Fernanda.
      Aureliano Segundo, que tornara a levar os seus baús para a casa de Petra Cotes, mal dispunha de meios para que família não morresse de fome. Com a rifa da mula, Petra Cotes e ele tinham comprado outros animais com os quais conseguiram montar um negócio rudimentar de rifas. Aureliano Segundo andava de casa em casa oferecendo os bilhetinhos que ele mesmo pintava com tinta de cor para torná-los mais atraentes e convincentes e talvez não percebesse que muitos compravam por gratidão e a maioria por compaixão. Entretanto, mesmo os mais piedosos compradores adquiriam a oportunidade de ganhar um leitão por vinte centavos ou uma novilha por trinta e dois e se entusiasmavam tanto com a esperança que na noite de terça-feira abarrotavam o quintal de Petra Cotes esperando o momento em que uma criança escolhida ao acaso tirasse da bolsa o número premiado. Aquilo não demorou em se transformar numa feira semanal, pois desde o entardecer se instalavam no quintal mesas de frituras e tendas de bebidas, e muitos dos favorecidos sacrificavam ali mesmo o animal ganho, com a condição de que os outros dessem a música e a aguardente, de modo que sem tê-lo desejado Aureliano Segundo encontrou-se de repente tocando outra vez o acordeão e participando de modestos torneios de voracidade. Estas humildes réplicas das farras de outros tempos serviram para que o próprio Aureliano Segundo descobrisse o quanto tinha decaído o seu ânimo e até que ponto tinha secado o seu gênio de tocador de cumbia. Era um homem mudado. Os cento e vinte quilos que chegara a ter na época em que fora desafiado pela Elefanta tinham-se reduzido a setenta e oito; a cândida e estofada cara de tartaruga se transformara em cara de iguana, e sempre estava próxima do aborrecimento e do cansaço. Para Petra Cotes, entretanto, nunca tinha sido melhor homem do que no momento, talvez porque confundisse com o amor a compaixão que ele lhe inspirava e o sentimento de solidariedade que em ambos a miséria tinha despertado. A cama desmantelada deixou de ser lugar de exaltações e se transformou em refúgio de confidências. Liberados dos espelhos repetidores que tinham vendido para comprar animais de rifa e dos damascos e veludos concupiscentes que a mula comera, ficavam acordados até muito tarde com a inocência de dois avós insones, aproveitando para fazer cálculos e contar centavos o tempo que antes esbanjavam em se esbanjarem a si próprios. As vezes eram surpreendidos pelos primeiros galos fazendo e desfazendo montinhos de moedas, tirando um pouco daqui para botar ali, de modo a que este chegasse para contentar Fernanda, aquele para os sapatos de Amaranta Úrsula, este outro para Santa Sofia de la Piedad, que não estreava um vestido desde seu tempo de mocinha, este para mandar fazer o caixão se Úrsula morresse, este para o café que subia um centavo por libra de três em três meses, este para o açúcar que cada vez adoçava menos, este para a lenha que ainda estava molhada pelo dilúvio, este outro para o papel a tinta de cores dos bilhetes, e aquele que sobrava para ir amortizando o valor da vitela de abril, da qual milagrosamente salvaram a pele, porque teve carbúnculo sintomático quando estavam vendidos quase todos os números da rifa. Eram tão puras aquelas missas de pobreza que sempre destinavam a melhor parte a Fernanda, e nunca o fizeram por remorso ou por caridade, mas porque o bem-estar dela lhes importava mais que o seu próprio. O que na verdade acontecia, embora nenhum dos dois percebesse, era que ambos pensavam em Fernanda como na filha que gostariam de ter e não tiveram a ponto de em certa ocasião se terem resignado a comer angu durante três dias para que ela pudesse comprar uma toalha holandesa. Entretanto, por mais que se matassem de trabalho, por mais dinheiro que surrupiassem e por mais truques que imaginassem, os seus anjos da guarda dormiam de cansaço enquanto eles punham e tiravam moedas tentando apenas que desse para viver. Na insônia que lhes traziam as contas ruins perguntavam-se o que tinha acontecido no mundo para que os animais não parissem com o mesmo desconcerto de antes por que o dinheiro se esvaía das mãos e por que o povo que há pouco tempo queimava maços de notas na cumbia considerava um assalto à mão armada cobrar doze centavos pela rifa de seis galinhas. Aureliano Segundo pensava sem dizer que o mal não estava no mundo, mas em algum lugar oculto do misterioso coração de Petra Cotes, onde acontecera alguma coisa durante o dilúvio que tornara os animais estéreis e o dinheiro fugidio. Intrigado com esse enigma, penetrou tão profundamente os sentimentos dela que procurando o interesse encontrou o amor, pois tentando fazer com que ela o amasse acabou por amá-la. Petra Cotes, por outro lado, amava-o mais à medida que sentia aumentar o seu carinho, e foi assim que na plenitude do outono voltou a acreditar na superstição juvenil de que a pobreza era uma servidão de amor. Ambos evocavam agora como um estorvo as farras desatinadas, a riqueza aparatosa e a fornicação sem freios, e se lamentavam de quanta vida lhes custara encontrar o paraíso da solidão partilhada. Loucamente apaixonados ao fim de tantos anos de cumplicidade estéril, gozavam o milagre de se amarem tanto na mesa como na cama, e chegaram a ser tão felizes que quando já eram dois anciãos esgotados continuavam brincando como coelhinhos e brigando como cachorros.
     
      As rifas nunca mais deram nada. No começo, Aureliano Segundo se ocupava durante três dias da semana, fechado no seu antigo escritório de criador de gado em desenhar bilhete por bilhete, pintando com um certo primor uma vaquinha vermelha, um porquinho verde ou um grupo de galinhas azuis, conforme fosse o animal rifado, e modelava com uma boa imitação das letras de imprensa o nome que pareceu bom a Petra Cotes para batizar o negócio: Rifas da Divina Providência. Mas, com o tempo, ficou tão cansado de desenhar até dois mil bilhetes por semana que mandou fazer os animais, o nome e os números em carimbos de borracha, e então o trabalho se reduziu a umedecê-los em almofadinhas de cores diferentes. Nos últimos anos ocorreu-lhes substituir os números por adivinhações, de modo a que o prêmio se repartisse entre todos os que acertassem, mas o sistema acabou por ser tão complicado e se prestar a tantas desconfianças que desistiram na segunda tentativa.
      Aureliano Segundo andava tão ocupado tentando consolidar o prestígio das suas rifas que mal lhe sobrava tempo para ver as crianças. Fernanda colocou Amaranta Úrsula numa escolinha particular onde não se recebiam mais de seis alunas, mas se negou a permitir que Aureliano freqüentasse a escola pública. Achava que já tinha cedido demais ao aceitar que abandonasse o quarto. Além disso, nas escolas dessa época só se recebiam filhos legítimos de casamentos católicos e, na certidão de nascimento que tinham prendido com um alfinete de fralda na camisolinha de Aureliano quando o mandaram para casa, ele estava registrado como enjeitado. De modo que ficou trancado, à mercê da vigilância caritativa de Santa Sofia de la Piedad e das alternativas mentais de Úrsula, descobrindo o estreito mundo da casa conforme o explicavam as avós. Era fino, orgulhoso, de uma curiosidade que exasperava os adultos, mas ao contrário do olhar inquisitivo e às vezes clarividente que tivera o coronel na sua idade, o seu era piscador e um pouco distraído. Enquanto Amaranta Úrsula estava no jardim de infância, ele caçava minhocas e torturava insetos no jardim. Mas uma vez em que Fernanda o surpreendeu guardando escorpiões numa caixa para pô-los na esteira de Úrsula, prendeu-o no antigo quarto de Meme, onde se distraiu das suas horas solitárias repassando as figurinhas da enciclopédia. Ali o encontrou Úrsula numa tarde em que andava aspergindo a casa com água benta e um ramo de urtigas, e apesar de ter estado com ele muitas vezes, perguntou-lhe quem era.
      — Sou Aureliano Buendía — disse ele.
      — É verdade — ela respondeu. — Já é hora de começar a aprender ourivesaria.
      Voltou a confundi-lo com o filho, porque o vento cálido que sucedera ao dilúvio e infundira no cérebro de Úrsula os clarões eventuais de lucidez tinha acabado de passar. Não voltou a recobrar a razão. Quando entrava no quarto, lá encontrava Petronila Iguarán, com as incômodas anquinhas e o casaquinho de miçangas que usava nas visitas de cerimônia, e encontrava Tranquilina Maria Miniata Alacoque Buendía, sua avó, abanando-se com uma pena de pavão na sua cadeira de balanço de entrevada, e seu bisavô Aureliano Arcadio Buendía com o seu falso dólmã da guarda vice-real, e Aureliano Iguarán, seu pai, que tinha inventado uma oração para que secassem e caíssem os carrapatos das vacas, e a tímida da sua mãe, e o primo com o rabo de porco, e José Arcadio Buendía e seus filhos mortos, todos sentados em cadeiras encostadas na parede, como se não estivessem numa visita, mas num velório. Ela alinhavava uma conversa colorida, comentando assuntos de lugares distantes e tempos sem coincidência, de modo que quando Amaranta Úrsula voltava da escola e Aureliano se cansava da enciclopédia, encontravam-na sentada na cama, falando sozinha, e perdida num labirinto de mortos. “Fogo!”, gritou uma vez aterrorizada e, por um instante, semeou o pânico pela casa, mas o que estava anunciando era o incêndio de uma cavalariça que tinha presenciado aos quatro anos de idade. Chegou a misturar de tal modo o passado com a atualidade que nos dois ou três clarões de lucidez que teve antes de morrer ninguém soube ao certo se falava do que sentia ou do que recordava. Pouco a pouco foi-se reduzindo, fetizando-se, mumificando-se em vida, a ponto de nos últimos meses ser uma ameixa seca perdida dentro da camisola, e o braço sempre levantado acabou por parecer com a pata de um macaco. Ficava imóvel vários dias e Santa Sofia de la Piedad tinha que sacudi-la para se convencer de que estava viva e a sentava no colo para alimentá-la com colherinhas de água com açúcar. Parecia uma anciã recém-nascida. Amaranta Úrsula e Aureliano levavam-na e traziam-na pelo quarto, deitavam-na no altar para ver que era pouco maior que o Deus Menino e, numa tarde, esconderam-na num armário da despensa onde as ratazanas poderiam tê-la comido. Num Domingo de Ramos entraram no quarto enquanto Fernanda estava na missa e carregaram Úrsula pela nuca e pelos tornozelos.
      — Coitada da tataravozinha — disse Amaranta Úrsula— morreu de velhice.
      Úrsula se sobressaltou.
      — Estou viva! — disse.
      — Olha só — disse Amaranta Úrsula, escondendo o riso — nem sequer respira.
      — Estou falando! — gritou Úrsula.
      — Nem sequer fala — disse Aureliano. — Morreu como um passarinho.
      Então Úrsula se rendeu à evidencia. “Meu Deus”, exclamou em voz baixa. “Quer dizer que isto é a morte.” Começou uma oração interminável, atropelada, profunda, que se prolongou por mais de dois dias e que na terça-feira tinha degenerado numa barafunda de súplicas a Deus e de conselhos práticos para que as formigas ruivas não derrubassem a casa, para que nunca deixassem apagar a lâmpada diante do retrato de Remedios e para que cuidassem de que nenhum Buendía viesse a casar com alguém do mesmo sangue, porque filhos nasciam com rabo de porco. Aureliano Segundo tratou de aproveitar o delírio para que ela lhe confessasse onde estava enterrado o ouro, mas outra vez as súplicas foram inúteis “Quando aparecer o dono”, Úrsula disse, “Deus há de iluminá-lo para que o encontre.” Santa Sofia de la Piedad teve a certeza de que a encontraria morta de um momento para o outro, porque observava por esses dias uma certa confusão na natureza: as rosas cheiravam a quenopódio, caíra-lhe uma cuia de grãos-de-bico no chão e os grãos ficaram em ordem geométrica perfeita, em forma de estrela-do-mar, e certa noite vira passar no céu uma fila de discos luminosos alaranjados
      Amanheceu morta na quinta-feira santa. Na última vez em que a ajudaram a fazer as contas da sua idade, na época da companhia bananeira, calcularam-na entre os cento e quinze e os cento e vinte e dois anos. Enterraram-na num caixãozinho que era pouco maior que a cestinha em que fora trazido Aureliano e muito pouca gente assistiu ao enterro, em parte porque não eram muitos os que se lembravam dela e em parte porque nesse meio-dia fez tanto calor que os pássaros desorientados se arrebentavam como perdigotos contra as paredes e rasgavam as telas metálicas das janelas para morrer nos quartos.
      No começo todo mundo pensou que fosse uma peste. As donas-de-casa se extenuavam de tanto varrer pássaros mortos, sobretudo na hora da sesta, e os homens os jogavam no rio às carradas. No Domingo da Ressurreição, o centenário Padre Antonio Isabel afirmou no púlpito que a morte dos pássaros obedecia à má influência do Judeu Errante, que ele mesmo tinha visto na noite anterior. Descreveu-o como um híbrido do de bode cruzado com fêmea herege, uma besta infernal cujo alento calcinava o ar e cuja visita determinaria a concepção de monstros pelas recém-casadas.
      Não foram muitos os que prestaram atenção à sua conversa apocalíptica, porque o povo estava convencido de que o pároco tresvariava por causa da idade. Mas uma mulher acordou todo mundo na madrugada de quarta-feira, porque encontrara uns rastos de bípede de casco fendido. Eram tão verdadeiros e inconfundíveis que os que foram vê-los não puseram em dúvida a existência de uma criatura horrível semelhante à descrita pelo pároco e se associaram para montar armadilhas nos quintais. Foi assim que levaram a efeito a captura. Duas semanas depois da morte de Úrsula, Petra Cotes e Aureliano Segundo acordaram sobressaltados com um choro de bezerro descomunal que chegava da vizinhança. Quando se levantaram, já um grupo de homens estava soltando o monstro das afiadas varas que tinham posto no fundo de uma fossa coberta com folhas secas, e ele já deixara de berrar. Pesava como um boi, apesar da sua estatura não ser maior que a de um adolescente, e das suas feridas manava um sangue verde e viscoso. Tinha o corpo coberto por um pêlo áspero, cheio de carrapatos miúdos, e a pele petrificada por uma crosta de caracas, mas ao contrário da descrição do pároco, as suas partes humanas eram mais de anjo doente do que de homem, porque as mãos eram limpas e hábeis, os olhos grandes e crepusculares, e tinha nas omoplatas os cotocos cicatrizados e calosos de asas potentes, que deve-riam ter sido desbastadas com machado de lavrador. Penduraram-no pelos tornozelos numa amendoeira da praça para que ninguém ficasse sem vê -lo e quando começou a apodrecer incineraram-no numa fogueira, porque não se pôde determinar se a sua natureza bastarda era de animal para jogar no rio ou de cristão para sepultar. Nunca se verificou se na realidade foi por causa dele que morreram os pássaros, mas as recém-casadas não conceberam os monstros anunciados, nem diminuiu a intensidade do calor.
      Rebeca morreu no final desse ano. Argénida, sua criada de toda a vida, pediu ajuda às autoridades para derrubar a porta do quarto onde a sua patroa estava trancada há três dias, e a encontraram na cama solitária, enroscada como um camarão, com a cabeça pelada pela calvície e o polegar metido na boca. Aureliano Segundo se encarregou do enterro e tentou restaurar a casa para vendê-la, mas a destruição estava tão encarniçada sobre ela que as paredes descascavam quando se acabavam de pintar e não houve argamassa bastante grossa para impedir que o mato triturasse o chão e a hera apodrecesse as vigas.
      Tudo estava assim desde o dilúvio. A inércia das pessoas contrastava com a voracidade do esquecimento que pouco a pouco ia consumindo sem piedade as lembranças, ao extremo de por esses tempos, num novo aniversário do tratado de Neerlândia, chegarem a Macondo uns emissários do Presidente da República para entregar finalmente a condecoração várias vezes recusada pelo Coronel Aureliano Buendía e perderam uma tarde inteira procurando alguém que lhes indicasse onde poderiam encontrar algum dos seus descendentes. Aureliano Segundo esteve tentado a recebê-la, pensando que era uma medalha de ouro maciço, mas Petra Cotes persuadiu-o da indignidade quando os emissários já preparavam as comunicações oficiais e os discursos para a cerimônia. Também por essa época voltaram os ciganos, os últimos herdeiros da ciência de Melquíades, e encontraram o povoado tão acabado e seus habitantes tão afastados do resto do mundo que tornaram a entrar nas casas arrastando ferros imantados, como se na verdade fossem a última descoberta dos sábios babilônicos, tornaram a concentrar os raios solares com a lupa gigantesca e não faltou quem ficasse de boca aberta vendo caírem as panelas e rolarem os caldeirões e quem pagasse cinqüenta centavos para se assombrar com uma cigana que tirava e botava a dentadura postiça. Um desengonçado trem amarelo, que não trazia nem levava ninguém e que mal se detinha na estação deserta, era a única coisa que restava do trem multitudinário no qual o Sr. Brown enganchava o seu vagão com teto de vidro e poltronas de bispo e dos trens fruteiros de cento e vinte vagões que demoravam uma tarde inteira para passar. Os delegados da Cúria que tinham vindo investigar a comunicação sobre a estranha mortandade dos pássaros e o sacrifício do Judeu Errante encontraram o Padre Antonio Isabel brincando de cabra-cega com as crianças e, pensando que a sua comunicação era produto de uma alucinação senil, levaram-no para um asilo. Pouco depois mandaram o Padre Augusto Ángel, um cruzado da nova fornada, intransigente, audaz, temerário, que tocava pessoalmente os sinos várias vezes por dia para que não se entorpecessem os espíritos e que andava de casa em casa acordando os dorminhocos para que fossem à missa, mas antes de completar um ano já estava vencido também pela negligência que se respirava no ar, pela poeira ardente que envelhecia e obstruía tudo, e pela moleza que causavam as almôndegas do almoço no calor insuportável da sesta.Depois da morte de Úrsula, a casa voltou a cair num abandono do qual não a poderia resgatar nem mesmo uma vontade tão resoluta e vigorosa como a de Amaranta Úrsula, que muitos anos depois, sendo uma mulher sem preconceitos, alegre e moderna, com os pés bem firmados na terra, abriu portas e janelas para espantar a ruína, restaurou o jardim, exterminou as formigas ruivas que já andavam em pleno dia pela varanda, e tratou inutilmente de despertar o esquecido espírito de hospitalidade. A paixão claustral de Fernanda construiu um dique intransponível nos cem anos torrenciais de Úrsula. Não só se negou a abrir as portas quando passou o vento árido, como também mandou pregar as janelas com cruzes de madeira, obedecendo à ordem paterna de se enterrar em vida. A dispendiosa correspondência com os médicos invisíveis terminou em fracasso. Depois de numerosos adiamentos, trancou-se no quarto na data e hora marcadas, coberta somente por um lençol branco e com a cabeça para o Norte e, à uma da madrugada, sentiu que lhe taparam a cara com um lenço embebido num líquido gelado. Quando acordou, o sol brilhava na janela e ela tinha uma enorme costura em forma de arco que começava na virilha e terminava no esterno. Mas antes de que cumprisse o repouso prescrito recebeu uma carta desconcertada dos médicos invisíveis, que diziam tê-la revistado durante seis horas sem encontrar nada que correspondesse aos sintomas tantas vezes e tão escrupulosamente descritos por ela. Na realidade, o seu hábito pernicioso de não chamar as coisas pelo nome tinha dado origem a uma nova confusão, pois a única coisa que os cirurgiões telepáticos encontraram foi um caimento de útero que podia ser corrigido com o uso de um pessário. A desiludida Fernanda tentou obter uma informação mais precisa, mas os correspondentes ignotos não tornaram a responder as suas cartas. Sentiu-se tão angustiada pelo peso de uma palavra desconhecida que decidiu amordaçar a vergonha para perguntar o que era um pessário e só então soube que o médico francês se pendurara numa viga três meses antes e tinha sido enterrado contra a vontade do povo por um antigo companheiro de armas do Coronel Aureliano Buendía Então, confiou-se a seu filho José Arcadio e este lhe mandou os pessários de Roma com um folheto explicativo, que ela jogou na privada depois de aprendê-lo de memória para que ninguém viesse a conhecer a natureza dos seus quebrantos. uma precaução inútil, porque as únicas pessoas que viviam casa mal reparavam nela. Santa Sofía de la Piedad vagava numa velhice solitária, cozinhando o pouco que comiam e dedicada quase por completo ao cuidado de José Arcadio Segundo. Amaranta Úrsula, herdeira de certos encantos de Remedios, a bela, ocupava em fazer as suas tarefas escolares o que antes perdia em atormentar Úrsula e começava a manifestar um bom juízo e uma consagração aos estudos que fizeram renascer em Aureliano Segundo a boa esperança que inspirara Meme. Prometera mandá-la terminar os estudos e Bruxelas, de acordo com um costume estabelecido no tempo da companhia bananeira, e essa ilusão levara-o a tentar ver as terras devastadas pelo dilúvio. As poucas vezes em era visto em casa agora, era por causa de Amaranta Úrsula pois com o tempo se tinha transformado num estranho para Fernanda e o pequeno Aureliano ia ficando esquivo e ensimesmado à medida que se aproximava da puberdade. Aureliano Segundo confiava na velhice para abrandar o coração de Fernanda, para que o menino pudesse se incorporar a vida de um povoado onde certamente ninguém se daria o trabalho de fazer especulações desconfiadas sobre a sua origem. Mas o próprio Aureliano parecia preferir a clausura e a solidão e não revelava a menor malícia para conhecer o mundo que começava na porta da rua. Quando Úrsula fez abrir o quarto de Melquíades, ele ficou rondando, bisbilhotando pela porta entreaberta, e ninguém percebeu em que momento terminou vinculado a José Arcadio Segundo por um afeto recíproco. Aureliano Segundo descobriu essa amizade muito tempo depois de iniciada, quando ouviu o menino falando da matança da estação. Aconteceu num dia em que alguém se lamentou na mesa da ruína em que afundara o povoado desde que a companhia bananeira o abandonara e Aureliano contradisse com uma maturidade e um conhecimento de adulto. O seu ponto de vista, contrário à interpretação geral, era que Macondo tinha sido um lugar próspero e bem encaminhado até que o perturbasse, corrompesse e explorasse a companhia bananeira, cujos engenheiros provocaram o dilúvio como um pretexto para fugir aos compromissos com os trabalhadores. Falando de maneira tão racional que a Fernanda pareceu uma paródia sacrílega de Jesus entre os doutores, o menino descreveu com detalhes precisos e convincentes como o exército metralhara mais de três mil trabalhadores encurralados na estação e como carregara os cadáveres num trem de duzentos vagões e os atirara ao mar. Convencida como a maioria das pessoas da verdade oficial de que não tinha acontecido nada, Fernanda se escandalizou com a idéia de que o menino tivesse herdado os instintos anarquistas do Coronel Aureliano Buendía e ordenou-lhe que se calasse. Aureliano Segundo, pelo contrário, reconheceu a versão do seu irmão gêmeo. Na realidade, apesar de to do mundo considerá-lo louco, José Arcadio Segundo era naquele tempo o habitante mais lúcido da casa. Ensinou o pequeno Aureliano a ler e a escrever, iniciou-o no estudo dos pergaminhos e incutiu-lhe uma interpretação tão pessoal do que significou para Macondo a companhia bananeira que muitos anos depois, quando Aureliano se incorporasse ao mundo, haveria de se pensar que contava uma versão alucinada, porque era radicalmente contrária à falsa que os historiadores tinham admitido e consagrado nos textos escolares. No quartinho isolado, aonde nunca chegou o vento árido, nem a poeira, nem o calor, ambos recordavam a visão atávica de um ancião de chapéu de asas de corvo que falava do mundo de costas para a janela, muitos anos antes que eles nascessem. Ambos descobriram ao mesmo tempo que ali sempre era março e sempre era segunda-feira, e então compreenderam que José Arcadio Buendía não estava tão louco como contava a família e sim que era o único que dispusera de lucidez bastante para vislumbrar a verdade de que também o tempo sofria tropeços e acidentes e podia, portanto, se estilhaçar e deixar num quarto uma fração eternizada. José Arcadio Segundo conseguira, além disso, classificar as letras criptográficas dos pergaminhos. Estava certo de que correspondiam a um alfabeto de quarenta e sete a cinqüenta e três caracteres que, separados, pareciam aranhazinhas e carrapatos e que, na primorosa caligrafia de Melquíades, pareciam peças de roupa postas para secar num varal. Aureliano se lembrava de haver visto uma tabela semelhante na enciclopédia inglesa, de modo que a levou ao quarto para compará-la com a de José Arcadio Segundo. Eram iguais, realmente.
      Na época em que teve a idéia da loteria de adivinhações, Aureliano Segundo acordava com um nó na garganta, como se estivesse reprimindo a vontade de chorar. Petra Cotes interpretou isso como um dos tantos transtornos provocados pela má situação e todas as manhãs, durante mais de um ano, pincelava-lhe o céu da boca com mel de abelha e lhe dava xarope de rábano. Quando o nó da garganta se fez tão apertado que lhe custava esforço respirar, Aureliano Segundo visitou Pilar Ternera para ver se ela conhecia alguma erva que lhe trouxesse alívio. A inquebrantável avó, que tinha chegado aos cem anos à frente de um bordelzinho clandestino, não confiou nas superstições terapêuticas, mas consultou as cartas sobre o problema. Viu o cavalo de ouro com a garganta ferida pelo aço do valete de espadas e deduziu que Fernanda estava tentando fazer o marido voltar para casa mediante o desprestigiado sistema de fincar alfinetes no seu retrato, mas provocara-lhe um tumor interno pelo mau conhecimento da feitiçaria. Como Aureliano Segundo não tinha outros retratos além os do casamento e as cópias estavam completas no álbum familiar, continuou procurando por toda a casa durante as distrações esposa e finalmente encontrou, no fundo do guarda-roupa meia dúzia de pessários nas suas caixinhas originais. Pensando que as rodinhas de borracha vermelha eram objetos de bruxaria, guardou uma no bolso para que Pilar Ternera a visse. Esta não pôde explicar a sua natureza, mas lhe parece tão suspeita que por via das dúvidas mandou trazer a meia dúzia e queimou-a numa fogueira que fez no quintal. Para esconjurar o suposto malefício de Fernanda, ordenou a Aureliano Segundo que sangrasse uma galinha choca e a enterrasse debaixo do castanheiro, e ele o fez de tão boa fé que quando acabou de dissimular com folhas secas a terra revolvida já sentia que respirava melhor. Por Outro lado, Fernanda interpretou o desaparecimento como uma represália dos médicos invisíveis e coseu na parte interior da camisola um bolsinho redobrado onde guardou os pessários novos que lhe mandou o filho.
      Seis meses depois de enterrar a galinha, Aureliano Segundo acordou à meia-noite com um acesso de tosse e sentindo que o estrangulavam por dentro com presas de caranguejo. Compreendeu então que, por muitos pessários mágicos que destruísse e muitas galinhas de esconjuro que esfaqueasse, a única e triste verdade era que estava morrendo. Não disse nada a ninguém. Atormentado pelo medo de morrer sem mandar Amaranta Úrsula para Bruxelas, trabalhou como nunca, e em vez de uma, fez três rifas semanais. Desde muito cedo era visto percorrendo o povoado, mesmo nos bairros mais afastados e miseráveis, tentando vender os bilhetinhos com uma ansiedade que só era concebível num moribundo. “Aqui está a Divina Providência”, apregoava. “Não a deixem escapar, que só aparece uma vez em cada cem anos.” Fazia comovedores esforços para parecer alegre, simpático, loquaz, mas bastava ver o seu suor e a sua palidez para saber que não podia com a alma. As vezes se desviava para prédios vazios, onde ninguém o visse, e se sentava um momento para descansar das tenazes que o despedaçavam por dentro. Ainda à meia-noite estava no bairro de tolerância, tentando consolar com prédicas de boa sorte as mulheres solitárias que choravam junto às vitrolas. “Este número não sai há quatro meses”, dizia, ‘mostrando os bilhetinhos. “Não o deixe escapar, que a vida é mais curta do que a gente pensa.” Acabaram por perder-lhe o respeito, por zombar dele, e já nos últimos meses não o chamavam de “Seu” Aureliano, como o tinham feito sempre, mas o chamavam, na sua própria cara, de “Seu” Divina Providência A sua voz foi-se enchendo de notas falsas, desafinando, e acabou por se apagar num ronco de cachorro, mas ainda assim teve força de vontade para não deixar que decaísse a expectativa pelos prêmios no quintal de Petra Cotes. Entretanto, à medida que ficava sem voz e percebia que em pouco tempo já não poderia suportar a dor, ia compreendendo que não era com porcos e cabritos rifados que a sua filha chegaria a Bruxelas, de modo que concebeu a idéia de fazer a fabulosa rifa das terras destruídas pelo dilúvio, que bem podiam ser restauradas por quem dispusesse de capital. Foi uma iniciativa tão espetacular que o próprio alcaide se ofereceu para anunciá-la por decreto e se formaram sociedades para comprar bilhetes a cem pesos cada um, que se esgotaram em menos de uma semana. Na noite da rifa, os ganhadores fizeram uma festa aparatosa, comparável apenas às dos bons tempos da companhia bananeira, e Aureliano Segundo tocou no acordeão pela última vez as canções esquecidas de Francisco, o Homem, mas já não pôde cantá-las.
      Dois meses depois, Amaranta Úrsula foi para Bruxelas. Aureliano Segundo entregou-lhe não só o dinheiro da rifa extraordinária, mas também o que tinha conseguido economizar nos meses anteriores e o muito escasso que obtivera na venda da pianola, do clavicórdio e de outros cacarecos caídos em desgraça. Segundo os seus cálculos, esses fundos chegavam para os estudos, de modo que só ficava faltando o valor da passagem de volta. Fernanda se opôs à viagem até o último momento, escandalizada com a idéia de que Bruxelas estivesse tão próxima da perdição de Paris, mas se tranqüilizou com uma carta que o Padre Ángel lhe deu para uma pensão de jovens católicos dirigida por religiosas, onde Amaranta Úrsula prometeu viver até o final dos estudos. Além disso, o pároco conseguiu que ela viajasse aos cuidados de um grupo de franciscanas que iam para Toledo, onde esperavam encontrar gente de confiança para mandá-la para a Bélgica. Enquanto se adiantava a apressada correspondência que tornou possível esta coordenação, Aureliano Segundo, ajudado por Petra Cotes, ocupou-se da bagagem de Amaranta Úrsula. Na noite em que prepararam um dos baús nupciais de Fernanda, as coisas estavam tão bem arrumadas que a estudante sabia de cor quais eram as roupas e os chinelos de pelúcia com que devia fazer a travessia do Atlântico, e o sobretudo de lã azul com botões de cobre e os sapatos de couro com que devia desembarcar.
      Sabia também como devia andar para não cair n’água quando subisse a bordo pela prancha, que em nenhum momento devia se separar das freiras nem sair do camarote se não fosse para comer e que por nenhum motivo devia responder às perguntas que os desconhecidos de qualquer sexo lhe fizessem em alto-mar. Levava um vidrinho de gotas para enjôo e um caderno escrito pelo próprio punho e letra do Padre Angel, com seis orações para esconjurar a tempestade. Fernanda fabricou-lhe um cinturão de lona para que guardasse o dinheiro e indicou-lhe a forma de usá-lo ajustado ao corpo, de modo que não tivesse que tirá-lo nem mesmo para dormir. Tentou dar-lhe de presente o penico de ouro lavado com água sanitária e desinfetado com álcool, mas Amaranta Úrsula recusou-o temendo que as suas companheiras de colégio zombassem dela. Poucos meses depois, na hora da morte, Aureliano Segundo haveria de se lembrar dela como a vira da última vez, tentando abaixar sem conseguir o vidro empoeirado do vagão de segunda classe, para escutar as últimas recomendações de Fernanda. Vestia um traje de seda cor-de-rosa com um raminho de flores artificiais no broche do ombro esquerdo; os sapatos de couro com fivela e salto baixo, e as meias de seda com ligas elásticas na batata da perna. Tinha o corpo miúdo, o cabelo solto e comprido e os olhos vivos que Úrsula tivera na sua idade, e a forma como se despedia sem chorar, mas também sem sorrir, revelava a mesma força de caráter. Andando junto com o vagão à medida que acelerava e levando Fernanda pelo braço para que não fosse tropeçar, Aureliano Segundo mal pôde corresponder com um aceno de mão, quando a filha lhe mandou um beijo com a ponta dos dedos. Os esposos permaneceram imóveis sob o sol abrasador, olhando como o trem ia se confundindo com o ponto negro do horizonte e de braço dado pela primeira vez desde o dia do casamento.
      A nove de agosto, antes que se recebesse a primeira carta de Bruxelas, José Arcadio Segundo conversava com Aureliano no quarto de Melquíades e sem que viesse ao caso disse:
      — Lembra-te sempre de que eram mais de três mil e que os jogaram ao mar. Em seguida caiu de bruços sobre os pergaminhos e morreu com os olhos abertos. Nesse mesmo instante, na cama de Fernanda, o seu irmão gêmeo chegou ao fim do prolongado e terrível martírio dos caranguejos de ferro que lhe carcomiam a garganta. Uma semana antes voltara para casa, sem voz, sem fôlego, e quase só pele e ossos, com os seus baús errantes e o seu acordeão de perdulário, para cumprir a promessa de morrer junto à esposa. Petra Cotes ajudou-o a juntar as suas roupas e despediu-o sem derramar uma lágrima, mas se esqueceu de lhe dar os sapatos de verniz que ele queria trazer no ataúde. De modo que quando soube que tinha morrido, vestiu-se de negro, embrulhou as botinas num jornal e pediu permissão a Fernanda para ver o cadáver. Fernanda não a deixou passar da porta.
      — Ponha-se no meu lugar — suplicou Petra Cotes. Imagine o quanto eu o amei para agüentar esta humilhação.
      — Não há humilhação que uma concubina não mereça — replicou Fernanda. — De maneira que pode esperar morra outro dos tantos para calçar-lhe estas botinas.
      Em cumprimento da sua promessa, Santa Sofía de la Piedad degolou com uma faca de cozinha o cadáver de José Arcadio Segundo para se assegurar de que não o enterrassem vivo. Os corpos foram colocados em ataúdes idênticos e ali se viu que tornavam a ser idênticos na morte como tinham até a adolescência. Os velhos companheiros de farra de Aureliano Segundo puseram sobre o caixão uma coroa que tinha uma fita roxa com um letreiro: Afastem-se, vacas, que a vida é curta. Fernanda se indignou tanto com a irreverência mandou jogar a coroa no lixo. No tumulto da última hora os bêbados tristes que o tiraram de casa confundiram os ataúdes e os enterraram em túmulos trocados.




Foto tirada por Patrick Curry.